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Viver numa tenda pode ser única solução para família com criança autista

A família de João Aguiam recebeu uma ordem de despejo, há cerca de um ano, por atrasos no pagamento da renda. João tem uma filha autista e viver numa tenda, num parque de campismo, pode ser a única saída habitacional para esta família.

Viver numa tenda pode ser única solução para família com criança autista

© João Aguiam

Carolina Pereira Soares
09/10/2025 09:50 ‧ há 12 horas por Carolina Pereira Soares

João Aguiam mora com a família na mesma casa há 12 anos. O casal e os dois filhos, um menino e uma menina diagnosticada com autismo não-verbal, fizeram dentro daquelas quatro paredes toda uma vida, que agora está prestes a terminar tal como a conhecem.

 

Há cerca de um ano, o senhorio da habitação que a família arrenda, na Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira, rescindiu o contrato devido a falhas de pagamento da renda - uma situação para a qual o próprio João diz ter alertado o proprietário, explicando que não conseguia pagar renda, pôr comida na mesa e pagar os cuidados necessários para a filha.

"Ele tem toda a razão. Eu não retiro razão nenhuma porque infelizmente nós entrámos em incumprimento com eles", admite João em conversa com o Notícias ao Minuto. "Eu tiro da minha boca… Eu tiro da minha boca [para dar aos meus filhos]. E não pude pagar para não faltar à minha filha e não faltar ao meu filho. Não é por não querer pagar aos meus senhorios. É porque o país está num estado em que não ajuda e torna-nos dependentes", lamenta, visivelmente emocionado.

A situação chegou agora a um desfecho, mas já se vinha a arrastar numa sequência de problemas, que deixaram a família a ponderar ir viver no parque de campismo de Vila Franca de Xira… numa tenda.

Em 2023, um cliente tentou agredir João no trabalho

Os problemas começaram em dezembro de 2023, com um acidente de trabalho no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL). Era um dia normal para João, portageiro no MARL, com o habitual tráfego de viaturas a passar nas portagens do mercado, quando um cliente se exaltou e saiu da viatura.

"Ele partiu o vidro da cabine onde eu me encontrava, ofendeu-me verbalmente. Eu levei com vidros na cara", relata.

A companhia de seguros do MARL, para situações de acidentes de trabalho, terá considerado depois que não tinha responsabilidades na situação (dado que os ferimentos de João foram leves), e que o agredido deveria colocar baixa, se assim o quisesse.

"Os senhores acham que acontecer o que aconteceu é uma coisa normal. Psicologicamente, eles acham que eu não fui afetado, ou pelo menos acharam no parecer deles", afirma.

João meteu a baixa. Ficou em casa um mês a recuperar da situação e depois regressou ao trabalho - e, tanto quanto possível, à normalidade. Ou, pelo menos, tentou.

"Passado um tempo de eu me ter apresentado no posto de trabalho, a médica de trabalho disse que eu não estava apto para desempenhar as minhas funções, nem trabalhar em locais de stress, nem propícios a violência", revela João, recordando os meses que se seguiram ao incidente. 

Mesmo com este parecer, "a minha entidade paternal achou por bem que eu teria de cumprir o meu horário de trabalho, na íntegra, mas não desempenhava as minhas funções".

"Está a ver a quando eles castigam as crianças e encostam-nas contra a parede? Quando eles não nos querem na empresa? Eles fizeram-me isso. Eles puseram-me a olhar para o meu colega a trabalhar durante oito horas." E o João a olhar ficava, até não aguentar mais a situação e, de novo, ficar de baixa: "Isto em junho".

Quatro meses depois, regressou novamente. Desta vez, não como portageiro ou "a olhar" para o colega; passou antes a desempenhar "algumas funções administrativas" e a dar "apoio ao colega que se encontra a gerir a parte da loja do atendimento ao cliente".

João e a companheira operados. Ambos ficam de baixa

João trabalhou outros cinco meses, até ser forçado a entrar, mais uma vez, de baixa: a companheira, Marina, teve de ser operada.

Talvez, numa situação comum, João pudesse ter continuado a trabalhar e a ser o ‘ganha-pão’ do agregado familiar… Mas, nesta família, a pequena Isabel, de seis anos, sofre de autismo não-verbal de nível três e precisa de cuidados constantes. Por norma, essa responsabilidade recai sobre Marina, que trabalha como mulher a dias oito horas por semana, para poder dar apoio à filha. Mas, estando ela a recuperar de uma cirurgia, foi João quem teve de assumir esse papel, metendo baixa por assistência à família.

Entretanto, o próprio João teve de ser submetido a uma cirurgia, que "vai fazer daqui a uns dias um mês", devido a uma hérnia, e encontra-se outra vez de baixa, a recuperar.

É toda uma situação que contribuiu para que o dinheiro se tornasse mais escasso - agravado pelo facto de os pagamentos da Segurança Social não chegarem a hora certa.

"Quando nós temos baixas que são renovadas de três em três meses ou mensalmente, o que acaba por ocorrer é que estamos a ser constantemente a chamados a juntas médicas [para comprovar a incapacidade]. E cada vez que ocorrem, a Segurança Social bloqueia o valor, normalmente, até essa data e fica a aguardar a decisão da junta médica [para realizar o pagamento]", relata.,

"Criam situações em que não se recebe até ao dia 16 ou mesmo até o final do mês", revela João.

Por tudo isto, a família encontra-se agora a retirar as coisas de casa, pouco a pouco, e a levá-las para uma garagem, que foi obrigada a arrendar por 270 euros por mês. Móveis, eletrodomésticos e tudo o que não couber na (eventual futura) tenda no parque de campismo de Vila Franca de Xira, irá para essa garagem.

"Muita gente não vai confiar em mim" para arrendar uma casa

João ainda não desistiu da procura por casa, mas, como explica, não é uma tarefa fácil.

"Muita gente não vai confiar em mim, neste caso, devido à situação que eu estou a passar. Quando apresento um IRS de 3.500 ou 4.500 ou 5.000 euros, o que seja, e tenho de apresentar o resto em comprovativos da Segurança Social por motivo de baixa. E tenho de justificar à pessoa", esclarece.

"Posso-lhe dizer que aqui há alguns T1 a 1.000 euros por mês. Depois pedem três meses de renda, fiadores, etc… Coisas que eu não consigo apresentar."

E habitação social, casas a renda acessível? Segundo João, não existem em Vila Franca de Xira - ou, pelo menos, foi isso que a Câmara lhe disse. Tem direito apenas a um mês de renda e a um mês de caução como apoio.

"O apoio dado no terreno não pode ser apoio de caução e rendas. Nenhum cidadão comum que aufere o salário mínimo nacional, que até não é o meu caso, consegue fazer face a esta situação imobiliária", fez sobressair João num e-mail endereçado ao presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.

"Em breve, possivelmente, terei de ir para o parque de campismo da minha área de residência, que vai custar quase o valor de uma renda", continuou na nota. "É triste que ao final de 48 anos de idade tenha de me estar a rebaixar."

"Quando digo isto é porque sei da existência de várias habitações que estão fechadas e não são atribuídas a cidadãos do concelho. Existem verbas para fazer festas e outros eventos - que não duvido que sejam interessantes e importantes a nível cultural - mas é muito importante criar condições aos habitantes do concelho." 

O Notícias ao Minuto questionou a autarquia de Vila Franca de Xira sobre a falta de habitações sociais no concelho, mas não obteve qualquer resposta até ao momento.

"Acho que não é digno, seja para mim, seja para qualquer outro cidadão. Nós, neste momento, quando vamos à procura de um apoio e dizemos que não temos para onde ir, ou nos é dada uma solução habitacional numa instituição - o qual é impensável para a minha filha - ou então tenho de procurar eu, pelo meu próprio meio, uma habitação para a qual tenho de apresentar rendimentos - os quais não tenho."

Fora da zona de Vila Franca também não é fácil encontrar habitação social, até porque, muitas vezes, os concelhos usam como requisito o número de anos que o requerente vive na autarquia. Loures, onde se situa o MARL, por exemplo, é um deles.

Já na plataforma 'Habitar Lisboa', à qual João recorreu, a família também não teve sorte.

"O mais provável é eu ter de gastar dinheiro numa tenda, quando eu não tenho dinheiro. Uma tenda de 300 ou 400 euros, que vou ter de pagar a crédito. Quando tenho de pagar, por exemplo, o arrendamento da garagem, que são 270 euros. Torna as coisas um bocadinho complicadas.  E eu sou pai de dois e os dois comem. E têm de comer todos os dias."

João diz não compreender como é possível não ter apoio numa situação destas - ou, pelo menos, não ter apoio suficiente e ver-se obrigado a ir para um parque de campismo com uma criança que, além da neurodivergência, também tem problemas motores e só consegue fazer curtos trajetos.

O prazo da ordem de despejo terminou no passado dia 9 de setembro, há já um mês - e esta data já tinha sido adiada após um processo em tribunal. Mais dia, menos dia, a família vai ser forçada a abandonar a casa.

Leia Também: Ministro revela quando vão "sentir-se diferenças" nos preços das casas

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