Nas últimas semanas, a notícia de várias alegadas tentativas de suicídio, depois de duas mortes, entre alunos de uma escola do distrito de Viseu deixou a comunidade escolar em alerta.
A primeira morte ocorreu em maio, no fim do ano letivo. A segunda em setembro, no início de outro. Seguiram-se mais quatro episódios de tentativa de suicídio ou, pelo menos, de pensamentos suicidas, como relata o Jornal de Notícias. Todos entre adolescentes de duas turmas de cursos tecnológicos do mesmo estabelecimento de ensino.
A escola já estará, juntamente com a Câmara, Unidade de Saúde e Guarda Nacional Republicana (GNR) a trabalhar em conjunto com uma equipa multidisciplinar para ajudar os alunos afetados, tendo a equipa de psicólogos sido até reforçada com elementos da autarquia e da Unidade Local de Saúde Dão-Lafões. E, segundo o Público, o Centro de Apoio Psicológico de Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM também foi ativado e "prestou o apoio psicológico necessário e adequado".
Apoio psicológico é "essencial" para evitar "contágio"
Ao Notícias ao Minuto, o psicólogo Miguel Ricou, salientou a importância desse apoio. "É essencial que estas crianças tenham acesso a estes profissionais, que possam falar, para que os psicólogos possam fazer, de alguma forma, a sua intervenção".
Um apoio que deve ser, segundo o presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, o mais abrangente possível para evitar uma "irradiação" um "contágio difícil de conter".
Entretanto, as situações, que começaram por ser investigadas pela GNR, passaram para a alçada da Polícia Judiciária (PJ), confirmou o Notícias ao Minuto junto de ambas as autoridades. O Ministério Público (MP) também abriu um inquérito ao caso.
Bullying? Aluno esteve meses sem ir às aulas
Assustados com a situação, estão os educadores. Ao Correio da Manhã, uma mãe disse mesmo que tem “medo de que a filha seja a próxima vítima”.
"Tanto a minha filha como todos os outros alunos da secundária sentem que estão em perigo […]. Os pais têm medo porque não sabem o que poderá acontecer", disse, revelando que "em todo o agrupamento sempre aconteceram episódios graves de bullying" e que não há respostas por parte do diretor.
Em maio, noticiava o mesmo jornal, a mãe de um aluno de 17 anos – faixa etária atingida pela atual tragédia – terá mesmo feito queixa à GNR depois de o filho ter sido, alegadamente, ameaçado de morte por colegas de turma, que lhe terão apontado uma navalha ao pescoço. O jovem terá ficado até com medo de ir para a escola, permanecendo durante meses em casa.
Na altura, a denunciante garantiu ao matutino que havia mais casos de violência na mesma escola sobre outros alunos, mas que estes tinham receio de denunciar.
Já o diretor do agrupamento, António Luís Ferreira, terá, segundo a mãe desse aluno, desvalorizado a situação em questão, garantindo que o estudante em causa "nunca se adaptou à turma" e estava "a arranjar estratégias para não ir às aulas".
O Notícias ao Minuto entrou em contacto com este responsável, que indicou que tem "indicações rigorosas para não prestar declarações" sobre estes processos.
A verdade é que as críticas às faltas de respostas a estas alegadas situações de bullying não partem só destas duas mães. O pai do jovem que se suicidou em setembro revelou ao Correio da Manhã que, apesar de nada indicar o que o filho estava prestes a fazer, "os casos de bullying sempre ocorreram no agrupamento" em questão e que, neste momento, não descarta qualquer hipótese.
O encarregado de educação lamenta ainda o rumo da investigação. "Não nos tranquiliza, faltam respostas", disse à publicação.
O que se passou ao certo não se sabe. Pelo menos ainda. Além de situações de bullying, há quem fale de desafios, jogos na internet, consumo de estupefacientes.
"A adolescência é difícil. As pessoas estão à procura delas próprias"
Ao Notícias ao Minuto, o psicólogo Miguel Ricou sublinhou que "a adolescência é uma fase difícil porque é uma fase em que as pessoas estão à procura delas próprias, procuram identificações, passam por períodos difíceis de crises, precisam de se sentir valorizadas, procuram motivações" e, às vezes, "surgem motivações sombrias".
"Existem, infelizmente, alguns perigos na internet. Há sociopatas. É preciso que os pais estejam atentos, que tenham acesso às redes dos miúdos, que saibam o que andam a fazer. Não é proibir o acesso, mas é necessário implementar períodos sem internet. Para arranjarem outras formas de interagir e desenvolverem mecanismos, ferramentas. Enquanto sociedade temos de ter consciência disso. Estas coisas acontecem, há pessoas meio perturbadas por aí e que, de alguma maneira, podem fazer mal a outras", disse, reiterando a importância de "passar tempo" com os filhos, de "falar com eles, assistir ao que eles assistem, ver o que [eles] veem".
Além disso, na opinião do especialista, hoje em dia, ao contrário do que muitos podem pensar, não é mais fácil ser adolescente do que antigamente. "Os papéis sociais são mais difusos. Antes era mais fácil saber o que é que devíamos ser, o que não devíamos ser e qual era o nosso caminho", sustentou, realçando que "hoje são mais e mais diferentes".
"Por isso é fundamental que os jovens tenham acesso a ajuda, a pessoas capazes de os ajudar a compreenderem aquilo que são as suas complexidades, as suas dificuldades, as suas dimensões mais individuais, os seus fantasmas e os seus pensamentos mais cinzentos. Porque todos os temos, eles existem", fincou, alertando para a importância do acompanhamento psicológico desde cedo e do diálogo no seio familiar desde a primeira infância.
"Não adianta querer ter uma conversa em momentos de crise. Se tentarmos só nessa altura, eles não nos vão ouvir. Temos de construir uma relação, de abrir os canais de conversa. Temos de tentar compreendê-los, de perceber aquilo que são as diferenças deles, os gostos deles, as características deles. De outra maneira fechamos os canais com muita mais facilidade", notou.
A rede de amigos também é importante para a saúde mental. "Tudo o que pudermos conversar com os nossos amigos nessas idades… aliás, em qualquer uma, é bom. É sempre bom ouvir e desabafar", lembrou o psicólogo, acrescentando que mais do que dar conselhos é bom "ouvir" o outro.
"Se deixarmos as pessoas falarem, estas sentem-se compreendidas, sentem-se acompanhadas. A maior parte das dores vem da solidão. E a solidão é sentir-nos sozinhos. Se sentirmos que há pessoas que se interessam de facto por nós, já nos sentimos menos sozinhos e isso já pode ajudar", declarou.
Caso estejam perante um caso como estes, destacou Miguel Ricou, deve-se "motivar e incentivar as pessoas a pedir ajuda", assim como "tentar todos os canais que façam sentido". "Falar com os pais, com os professores, seja com quem for, porque às vezes são apenas coisas do momento, outras não", explicou, advertindo, contudo, que, se algo de mal acontecer, "não temos culpa de não conseguir estar atentos em todos os momentos da vida".
Porém, se detetarmos alguma situação fora do normal, devemos atuar. "Às vezes, chegar num momento certo é fundamental. E se conseguimos chegar, já é uma maravilha, porque se calhar conseguimos salvar alguém de alguma coisa feia e que lhe faz mal", referiu, lembrando que há muitas "histórias felizes, que acabaram bem", de pessoas que um dia pensaram no suicídio, mas que hoje vivem a sua vida em pleno.
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Se estiver a sofrer com alguma doença mental, tiver pensamentos autodestrutivos ou simplesmente necessitar de falar com alguém, deverá consultar um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral. Poderá ainda contactar uma destas entidades (todos estes contactos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende):
Atendimento psicossocial da Câmara Municipal de Lisboa
800 916 800 (24h/dia)
SOS Voz Amiga - Linha de apoio emocional e prevenção ao suicídio
800 100 441 (entre as 15h30 e 00h30, número gratuito)
213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660 (entre as 16h e as 00h00)
Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h)
808 237 327 (entre as 15h e as 22h, número gratuito) | 210 027 159
SOS Estudante - Linha de apoio emocional e prevenção ao suicídio
239 484 020 - 915246060 - 969554545 (entre as 20h e a 1h)
Telefone da Esperança
222 080 707 (entre as 20h e as 23h)
Telefone da Amizade
228 323 535 | 222 080 707 (entre as 16h e as 23h)
Aconselhamento Psicológico do SNS 24 - No SNS24, o contacto é assumido por profissionais de saúde
808 24 24 24 selecionar depois opção 4 (24h/dia)
Linha Nacional de Prevenção do Suicídio e Apoio Psicológico (24h/dia)
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