"Maria foi 200 vezes às urgências. Só aí sentia que não a iam abandonar"

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o psiquiatra João Carlos Melo, que acaba de lançar 'Renascer das Cinzas', um livro que escreveu em coautoria com uma paciente que sofre de Perturbação Boderline, Mentira Patológica e Perturbação Factícia.

João Carlos Melo

© Facebook / João Carlos Melo

Natacha Nunes Costa
26/06/2025 09:05 ‧ há 3 horas por Natacha Nunes Costa

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João Carlos Melo

O psiquiatra João Carlos Melo acaba de lançar mais um livro, desta vez escrito a duas mãos com uma das suas pacientes, uma jovem mulher afetada por três das doenças mentais "mais dolorosas e perturbadoras" que podem afetar o ser humano: Perturbação Boderline, Mentira Patológica e Perturbação Factícia, também conhecida por Síndrome de Munchausen.

 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o especialista, que é também psicoterapeuta, grupanalista, e exerce funções no Hospital Fernando Fonseca (conhecido por Amadora-Sintra), falou do "sofrimento incalculável" destas pessoas, que leva "cerca 70% a suicidarem-se",  assim como das consequências destas doenças para as suas relações, famílias e ente-queridos.

No caso de Maria C. (nome fictício), que é acompanhada pelo profissional desde 2021, houve uma clara melhoria. Apesar de continuar a fazer psicoterapia com João Carlos Melo, é um dos "raríssimos casos de recuperação de Perturbação Factícia registados no mundo". Para esse sucesso, contribuiu muito o facto de "estar determinada a sofrer o que tivesse de sofrer para melhorar".

'Renascer das Cinzas', editado pela Bertrand, apresenta-nos assim um 'retrato cru' destas três doenças mentais ainda desconhecidas para muitos mas que, calcula-se, atinge milhares de pessoas só em Portugal.

De um lado, temos o relato de um psiquiatra que diagnostica três das "mais devastadoras e intrigantes doenças". Que tem de lidar com a mentira, sem abandonar. De dar ferramentas, sem criticar. De ser confiável, para perceber a verdadeira dimensão do problema da pessoa que tem à sua frente.

Por outro, temos Maria C. que, além de sofrer da Perturbação Boderline - um transtorno de personalidade caracterizado, entre outras coisas, pelo medo de abandono e sentimento de vazio -, sofre também de Mentira Patológica  -quando a pessoa mente muito, quase sem controlo, e sente alívio ao mentir, como se fosse uma droga - e da Síndrome de Munchausen, em que a pessoa mente em relação a doenças à procura de conforto, carinho e atenção.

Desde 2013, Maria terá recorrido pelo menos 200 vezes a urgências hospitalares e frequentado consultas de 20 especialidades e subespecialidades, tendo sido observada por cerca de 300 profissionais de saúde. Para ela, esses eram "os únicos momentos da vida em que tinha a garantia de que não iam abandoná-la". Mas o cenário mudou.

Lançou recentemente 'Renascer das Cinzas', um livro que escreveu a duas mãos com Maria C., uma jovem paciente afetada por três doenças mentais: Perturbação Boderline, Mentira Patológica e Perturbação Factícia. De quem partiu a ideia de escrever este livro? 

A ideia partiu de cada um, independentemente, e depois, aos poucos, começámos a falar sobre isso. Não sobre escrevermos um livro, mas para registarmos em documento aquilo que estava a acontecer. Depois foi evoluindo assim aos poucos, dessa maneira. O documento começou por servir para testemunharmos todo o processo de recuperação da Maria C. mas, a partir de determinada altura, começou também a ter outra função: servir de incentivo para continuarmos a lutar - ela e eu, cada um com as suas tarefas.

No livro revela que conheceu Maria C. através do LinkedIn, depois de esta lhe ter enviado uma mensagem a pedir ajuda. Ainda a acompanha?

Sim. O acompanhamento começou em 2021 e há-de continuar. Mesmo depois de recuperados os sintomas principais. No caso da Mentira Patológica e da Síndrome de Munchausen, que se manifestam sobretudo através de comportamentos, esses, neste momento, não existem. Porém, aquilo que está por detrás, que é o sofrimento, o vazio, a angústia, próprios da Perturbação Boderline, embora estejam melhor, não desapareceram, porque faz parte da condição da própria perturbação. Faz parte do funcionamento de base da pessoa. As características e a gravidade vão-se atenuando, mas esse vazio, essa angústia, esse sofrimento continua, por vezes de uma forma manifesta, outras vezes de uma forma latente. Neste momento, manifesta-se na Maria de uma forma muitíssimo menos grave. Neste momento, se por qualquer razão, eu acabasse com a psicoterapia, ela certamente teria muitas mais ferramentas para lidar com a vida, mas ia ser muito mais difícil, então é muito mais lógico, muito mais natural, que a psicoterapia continue. Agora não de uma forma tão intensiva, tão dramática, no sentido de tratar de problemas muito graves. É mais uma espécie de manutenção. Mas, enfim, continua e há-de continuar.

Isso é um problema?

Não, não é um problema porque a dependência que poderia existir vai-se modificando. No início do processo, a relação terapêutica manifestava-se com uma falta de confiança da parte dela – é tão difícil confiar em alguém, a pessoa abrir-se, entregar as suas angústias, os seus menos mais profundos – e há ali um processo de gestão que não é fácil. A partir de uma determinada altura, em que a pessoa está mesmo ligada, há ali algum grau de dependência, que é natural. Podemos fazer uma analogia com o desenvolvimento de uma criança. O bebé, de início, é muito dependente. Com o crescimento, o que é desejável acontecer é que essa dependência vá evoluindo para uma dependência menor e uma autonomia cada vez maior. A relação com a Maria não é tão intensa como no início, mas continua e há-de continuar.

Quando comecei o internato, apercebi-me de uma situação enquanto assistia às consultas do meu orientador. Havia uma mulher que era paciente dele há mais de 20 anos e isso foi uma coisa que – habituado à outra parte mais prática, mais pragmática da medicina, em que o objetivo é resolver problemas, o problema está resolvido, a pessoa tem alta - me intrigou de certo modo. E quando ele disse: 'há doentes que vamos ter até que o primeiro dos dois morra'. Isso assustou-me. Mas, naturalmente, com o decorrer da experiência, vamos relativizando as coisas e vamos percebendo que é mesmo assim, é natural, não me afeta. Seria complicado, mesmo para mim, interromper o processo com a  Maria. Não me iria sentir bem porque a pessoa continuaria a precisar. Portanto, as coisas estão a correr muito bem, dentro do esperado. No início com uma relação mais dependente e agora com uma autonomia progressiva, que tem que ver com uma maior confiança e capacidade dela para enfrentar a vida.

Porque considera que estas doenças - Perturbação Boderline, Mentira Patológica e Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchausen) - são das "mais dolorosas e perturbadoras" que podem afetar o ser humano?

As doenças mais conhecidas, como a esquizofrenia, doença bipolar, o transtorno obsessivo-compulsivo, etc. já são suficientemente conhecidas para se perceber melhor a evolução e há terapias e medicamentos específicos para elas. Para estas doenças não há. Ainda que, para a Perturbação Boderline haja psicoterapias específicas baseadas na evidência, que ajudam muito e em que a pessoa melhora muito. No entanto, há um problema: o estigma continua a existir. Nomeadamente, de uma parte da psicologia e psiquiatria em relação à Perturbação Boderline. A Mentira Patológica oficialmente ainda não é considerada uma doença, mas sê-lo-á muito em breve, de acordo com as investigações que têm sido feitas. Já a Perturbação Factícia é muito pouco conhecida ainda, apesar de ser muito mais frequente do que aquilo que se pensa.

Porque é que é pouco conhecida?

A principal razão pela qual ela ainda é muito pouco conhecida é porque as pessoas não se deixam tratar. Quando as pessoas começam a perceber que o médico começa a perceber as mentiras que a pessoa diz, a pessoa muda de hospital, de médico, é raríssimo serem tratadas. Contudo, a Mentira Patológica é muito grave e a Perturbação Factícia também. Ambas têm um carácter compulsivo. Os comportamentos acabam por ser uma 'solução' ao grande sofrimento que as pessoas têm. Uma analogia satisfatória que se pode fazer é com a toxicodependência. Uma pessoa dependente de droga, sempre que há algum problema psicológico, um momento de angústia, de desespero, de grande sofrimento, com o qual não sabe lidar, recorre à droga para apaziguar esses sintomas. Com a Perturbação Factícia e com a Mentira Patológica é a mesma coisa. É muito difícil a pessoa renunciar a estes comportamentos, escrevo isso no livro, com um exemplo específico que aconteceu. A pessoa pode estar melhor, mas se num determinado período da vida dela, há problemas graves, que provocam grande sofrimento, grande angústia, grande desespero, o que a pessoa acaba por fazer é recorrer outra vez a estes comportamentos.

Tal como se tivesse um vício, portanto...

Sim, como se fosse num toxicodependente, a pessoa fica com sintomas de privação. É um sofrimento a frio. Tão grande que leva, por aquilo que se estima, a que 70% das pessoas com Perturbação Factícia se suicidem. Não há nenhuma doença na psiquiatria que tenha um prognóstico tão mau.

E, tal como um viciado, também mentem... Até a si a Maria C. começou por mentir, como conta no livro. Como é que lidou com isso?

Sim, ela mentiu logo desde o princípio. Quando ela recorreu a mim, recorreu como aconteceu e continua a acontecer com centenas e centenas de pessoas, sobretudo jovens mulheres, que leram 'Reféns das Próprias Emoções', sobre a Perturbação Boderline. Ela começou por dizer que tinha sido acompanhada por psiquiatras que tinham diagnosticado Perturbação Boderline, mas como não era a especialidade deles, disseram que o melhor era procurar outro profissional. No entanto, ela já sabia muito bem que sofria também de Mentira Patológica. Sabia que mentia muito. E em relação à Perturbação Factícia ou Síndrome de Munchausen ela também já sabia há anos porque é uma pessoa inteligente e pesquisou o que se passava com ela. Além disso, houve muitos médicos que lhe disseram e até a maltrataram de alguma maneira devido a isso. Mas ela não me falou disso. Depois, eu fui percebendo, aos poucos, até por colegas que falaram comigo, por familiares dela, o que realmente se passava.

No início até achei que não era verdade, que estavam a exagerar, o que é normal, porque achava que esta pessoa com quem tinha estabelecido uma relação terapêutica, que estava a correr bem, não podia ter uma doença assim tão grave. Portanto, foi aos poucos que começámos a falar sobre isso. Mas ela negava sempre. Sempre. E, progressivamente, é que foi sendo possível falar disso. Mas mesmo muito aos poucos. Eu esperava que um dia ela abrisse o jogo, o livro, que ia chegar uma altura em que ela ia explicar tudo... e isso nunca aconteceu. Nunca. O que aconteceu foi ela admitir uma mentira em detrimento de outra, constantemente. Ou seja, indiretamente, admitia que primeira tinha sido mentira, mas que esta agora era verdade e com isso aconteceu uma terceira, quarta, quinta vez e por aí fora. E isto foi sendo muito aos poucos. Entretanto, a psicoterapia continuou a evoluir bem e, a partir de certa altura, começou a ser natural falar das mentiras, dos comportamentos fictícios como sintomas.

Mas nem todos lidam bem com essas mentiras...

Pois. Por exemplo, essas pessoas induzem os médicos a atitudes de rejeição, como é natural. Se estas pessoas fossem enganadas como elas enganam ficariam muito zangadas. Ninguém gosta de ser enganado, ninguém gosta que lhe mintam. Ser enganado é mais grave do que uma mentira. Uma mentira é uma pessoa dizer qualquer coisa que não é verdade, mas isso pode não afetar a relação. Mas uma pessoa que induz a outra a pensar que a realidade é de uma determinada maneira, quando, na verdade, a realidade é outra, está a enganar. No caso destas pessoas e, em particular, da Maria, o que aconteceu foi que foi abandonada e maltratada por muita gente. Curiosamente, o que é que tem acontecido ao longo do processo? Ela está a recuperar pessoas que faziam parte da vida dela, que ela tinha enganado e a quem tem pedido perdão. E isso é muito interessante e importante para ela e é uma esperança para outras pessoas.

Por muita confiança que ela tivesse em si, porque é que era assim tão difícil admitir que mentia?

Porque eram mentiras sobre tudo e, em parte, relacionadas com a Perturbação Factícia, com a Síndrome de Munchausen, com doenças. A imagem que me ocorre é: 'as pessoas são feitas como se fossem uma casa de tijolos e ela era feita como se fosse um castelo de cartas. O problema é que muitas dessas cartas eram as mentiras. Não podíamos tirar uma mentira que vinha logo outra. A possibilidade de ela ser confrontada com uma mentira deixava-a mal. Ela ficava tão perturbada, porque eram mentiras atrás de mentiras. Uma situação muito complicada, mentia para ir tapando as outras mentiras. Admitir uma mentira seria tão devastador, um sofrimento tão incalculável, que ela defendia tenazmente essas mentiras.

Esse sofrimento está relacionado com a dor que podia causar no outro? Ou é um sofrimento, digamos, que incide só sobre ela própria?

O que provoca estes comportamentos associados à Mentira Patológica e à Perturbação Factícia é o grande sofrimento interior que a pessoa tem. Um sofrimento incalculável. Ninguém sabe o que é. Ao ponto de tantas pessoas se suicidarem, tem de ser mesmo incalculável. Mas há aqui uma distinção fundamental a fazer quanto às mentiras: os psicopatas também mentem muito e manipulam muito. A diferença é que o psicopata faz isto sem nenhum tipo de culpa. Sem nenhum tipo de remorsos. Sem sentimentos pela outra pessoa.

Nestes casos, e em particular no caso da Maria, ela sofria porque sabia que provocava sofrimento. Tinha empatia para com as outras pessoas, sofria de um sentimento de culpa por as ter enganado e magoado. Isto foi uma questão fundamental para mim no início da psicoterapia. Se ela não fosse boa pessoa, se tivesse características psicopáticas, eu não teria dado continuidade à psicoterapia porque houve períodos muito difíceis, como é natural e como está descrito no livro. O facto de ela ser muito boa pessoa, ter muito bom carácter e estar muito determinada a sofrer o que tivesse de sofrer para melhorar, para ser tratada, para recuperar, também contribuíram para querer continuar a ajudá-la.

Resumidamente, o que é a Perturbação Factícia?

Quando se faz um diagnóstico diferencial em termos de sistemas de classificação e critérios de diagnóstico há determinados sintomas que são comuns a mais do que uma doença. Uma das situações é com a simulação. Vem nos critérios de diagnóstico, mesmo com a palavra simulação. As pessoas com Perturbação Factícia simulam, mas a Perturbação Factícia é uma coisa e Simulação neste sentido é outra. Vamos imaginar uma pessoa que passa fome, faz uma dieta radical para emagrecer muito, maquilha-se para parecer que tem olheiras e palidez acentuada, rapa o cabelo e as sobrancelhas e diz que tem um cancro e está a fazer quimioterapia. Se esta pessoa disser isto apenas aos médicos e familiares é Perturbação Factícia só. Mas há pessoas que usam isto para obter dividendos materiais, donativos, pensões, likes nas redes sociais, vender livros, tornarem-se uma marca. Esses outros dividendos já configuram uma outra situação, que é a Simulação e é importante distinguir as duas coisas porque ambas enganam os outros. No entanto, as pessoas com Perturbação Factícia não têm esses objetivos materiais.

Então qual é a motivação? O que os move?

A única forma que as pessoas têm na vida, a única, de ter um bocadinho de atenção, de preocupação, de carinho é a encenar doenças. Não devemos encarar isto de forma superficial. Todos nós precisamos de atenção, de carinho. Não é de admirar. Há muitas pessoas que, para terem mimo dos outros, dizem que estão doentes. Isto é normal. Um miúdo que não quer ir à escola, diz que está com dor de barriga. Isto é normal. Neste caso, não é apenas fugir de uma situação complicada ou ter um bocadinho de atenção. Não. É sentir que só com essa atenção é que a pessoa sente que existe, que tem vida, que tem existência, que consegue ser minimamente funcional nesta vida porque, senão, não consegue.

Uma das angustias maiores por detrás desta Perturbação Factícia é a angustia de abandono, que é comum à Perturbação Boderline, patologias que estão muitas vezes associadas. A Maria falou mais do que uma vez disso e ela explicou isso muito bem no livro. Enquanto houvesse um médico numa consulta, numa urgência, que estivesse preocupado, que não soubesse o que é que se passava, não ia abandoná-la. Era dos únicos momentos da vida em que ela tinha a garantia de que não iam abandoná-la. Por muitas pessoas que estas pessoas tenham na vida, família, amigos, nada nem ninguém lhes dá essa garantia.

Como é que os familiares e amigos devem agir ao desconfiarem que um ente querido sofre destes problemas, sem o afastar ou prejudicar ainda mais? 

As pessoas, de uma maneira geral, tendem a confrontar e apurar a verdade. Se uma pessoa me mente, eu vou fazer tudo para que a pessoa admita que me mentiu. Para partir de uma base de honestidade. Mas isso não é possível. Não é possível porque a pessoa não vai admitir. Perante isso, há duas hipóteses: compram uma guerra e ambos perdem ou admitem que a pessoa mentiu, mas não a confronta com isso. E essa é a única forma. Podemos dizer: 'então assim estou a alimentar a mentira'. Não. Por muito difícil que seja entender, por pouco lógico que pareça, temos de aceitar que a pessoa está a fazer aquilo porque é a única forma que tem. E dar atenção, compreensão, mimo.

E procurar ajuda?

Deve procurar ajuda, porque a própria pessoa muitas vezes não tem coragem para pedir ajuda. O objetivo deve ser tratar a pessoa e quanto mais cedo melhor. Porque a partir do momento em que a Perturbação Factícia está instalada é muito difícil mudá-la. No entanto, já tive alguns casos de jovens em que a doença estava mesmo a começar e foi possível cortar ali à partida. Aquilo que a pessoa precisa é de atenção, cuidado, relações de confiança. E da parte das outras pessoas tem de haver paciência, tem de haver resiliência para aguentar as mentiras, as resistências e tudo isso. Da parte da própria pessoa tem de haver um esforço e uma atitude de querer melhorar. Muitas pessoas querem melhorar, não sabem é como. Têm medo de ser rejeitadas. Um dos grandes objetivos do livro é, precisamente, esse: dar esperança a muitas pessoas que já a tinham perdido, como era o caso da Maria. A partir do momento em que ela percebeu que era possível melhorar e que já estava a melhorar, ela decidiu que queria ajudar outras pessoas.

É possível quantificar o número de pessoas que sofre com a Perturbação Factícia em Portugal?

É muito difícil saber porque as pessoas não colaboram no sentido em que, quando estão para ser diagnosticadas, desaparecem. Uma ideia clínica que eu tenho é que todos os médicos já tiveram com pessoas com Perturbação Factícia. Só que pouquíssimas vezes perceberam isso e quando começam a perceber deixam de ter acesso ao paciente porque ele desaparece. Aquilo que dois estudos internacionais mostram é que ronda 0,1% da população, outro 0,3% a 0,8%. Mesmo que seja o mínimo, isto corresponde a 10 mil pessoas em Portugal, que é muito, mas a maioria delas os médicos nunca diagnosticaram. As pessoas vivem em segredo, escondidas.

Apesar da recuperação de Maria C., salienta que são raríssimos os casos de recuperação pelo mundo. O que foi diferente neste caso? O que contribui para o sucesso neste caso? 

As principais razões para não haver recuperação é porque a maior parte das pessoas não pede ajuda. Tem medo de ser criticada, maltratada, abandonada e depois há algumas pessoas que não querem renunciar a essa sedução. Fazendo novamente uma analogia com a toxicodependência. Há pessoas que, sabendo que a droga faz mal, não têm nenhuma outra alternativa para o sofrimento que não continuar a consumir droga. Portanto, precisamente para não renunciar a isso, as pessoas continuam a ter estes comportamentos.

O que pode motivar este tipo de perturbações? Traumas?

Tem de haver um sofrimento de base, um temperamento de base que numa grande parte dos casos está ligado à Perturbação Boderline, angústia de abandono, vazio interior, desregulação das emoções. As pessoas têm estes comportamentos para apaziguar este sofrimento. As que têm Perturbação Factícia viveram uma ou mais experiências que foram altamente transformadoras. Elas próprias ou alguém muito próximo, foram bem tratadas, por exemplo, numa consulta, numa urgência, numa operação simples. E, nessa altura, teve uma sensação que algumas pessoas relatam, por exemplo, de experiências espirituais transcendentes. Quando a pessoa tem pela primeira vez na vida um sentimento bom, procura depois voltar a ter a mesma sensação. O problema é que isto depois tem um carácter dependente e traz, inclusivamente, sintomas de privação como uma irritação e angústia que só apazigua, por exemplo, quando vai à urgência. Aliás, às vezes, basta inscrever-se na urgência para se sentir logo melhor.

Quais são os primeiros sinais destas doenças a que devemos estar atentos?

Passam despercebidos e às vezes são interpretados de outra maneira. Há muitas pessoas, conhecidas do grande público, que vão a programas, que são tidas como grandes heróis, que se superaram, que venderam doenças incuráveis e não se mete isso em causa, se é verdade ou não. Numa família, entre amigos, quando uma pessoa aparece várias vezes doente ou quando refere determinados sintomas ou quando diz coisas que não correspondem à verdade, quando se submetem a um tratamento e este não resulta, umas vezes tem uns sintomas e outras vezes tem outros, quando há uma incongruência entre as queixas e os sinais, os exames e as análises, aí podemos estar atentos.

Mas não confrontá-los...

Sim, mas não confrontar as pessoas diretamente com isso. Há um médico internista, que foi médico da Maria, que teve um papel fundamental na ajuda e houve uma altura que ele sabia e que ela sabia que ele sabia [risos]. E ele nunca desistiu de ela ter acompanhamento. Aquilo que ela diz, de uma forma muito sentida e de gratidão, é que o mais extraordinário que ele fez e que a ajudou e salvou foi: mesmo sabendo que era mentira, não a abandonou. Isso é o mais importante de tudo. Se era mais fácil não mentir? A mentira torna-se impulsiva e há uma coisa que está sempre presente: 'a angústia do abandono'.

Leia Também: Síndrome de Munchausen: Uma doença mental que leva muitos doentes à morte

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