"Hoje, a Igreja tem a missão de salvar o ser humano deste reducionismo brutal e a Doutrina Social da Igreja, com a sua centralidade no princípio da dignidade da pessoa humana, tem esta capacidade particular", afirmou o patriarca, numa intervenção no IDL -- Instituto Amaro da Costa.
"Os quatro princípios interdependentes e sempre considerados em conjunto, que fundam a Doutrina Social da Igreja são a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade" e hoje é necessário "aplicar estes princípios à situação atual e sobretudo ver as questões que se levantam a respeito da Inteligência Artificial e outros avanços tecnológicos", avisou.
Se "a identidade mais profunda de cada religião é sempre a busca da salvação do ser humano, de que é preciso salvar o ser humano?" -- questionou o responsável do Patriarcado de Lisboa, considerando que o mundo vive numa "cultura niilista, na qual, entretanto, irrompeu a mentalidade da técnica".
Atualmente, o "ser humano é medido segundo as capacidades das máquinas", mas é necessário "evitar que sejamos reduzidos a máquinas", alertou.
"Caso contrário, esta sociedade torna-se uma sociedade que criará uma massa enorme de excluídos, descartáveis e outras pessoas que não são medidas pela técnica", afirmou Rui Valério, recordando as linhas da Doutrina Social da Igreja: "é a mesma dignidade que está na pessoa que produz muito como aquela pessoa que está numa cama de hospital e precisa ser cuidado".
Na intervenção no almoço do instituto dirigido por Manuel Monteiro, o patriarca de Lisboa recordou que a recente eleição de Leão XIV trouxe a Doutrina Social da Igreja ao debate público, com um Papa que se inspirou no fundador desse conceito para escolher o seu nome (Leão XIII).
O atual Papa "quer usar esse património doutrinal e ser um agente da revolução em curso: desenvolvimento industrial, tecnológico e Inteligência Artificial".
Rui Valério comparou a mudança do pensamento científico no final do século XIX com os tempos de hoje e recordou que levou a uma "crise antropológica" que, graças à teoria da evolução de Darwin, colocou o ser humano como "mais um animal na cadeia evolutiva".
Fazendo uma análise da história do pensamento humano, Rui Valério salientou que o que ficou "foi sempre uma experiência existencial de vazio: o ser humano diante do espelho acaba, por fim, a ver um nada que vai preencher".
Sobre a Inteligência Artificial e o risco de o seu comportamento parecer "demasiado humano", Rui Valério defendeu que é "preciso recuperar a radical distinção entre o que é a inteligência humana e a inteligência artificial", porque "uma igualdade entre ambas só pode nascer de uma compreensão errada do que é a inteligência".
"A nossa sociedade materialista tende a ver a inteligência apenas como uma função e não como capacidade que distingue o ser humano", disse.
A "compreensão do ser humano nasce no momento em que reconhecemos que toda a pessoa transporta em si um desígnio, uma vocação, uma inclinação para construir um mundo, uma sociedade e uma vida de acordo com os transcendentais do ser: o bom, o belo, o verdadeiro e o uno", defendeu Rui Valério.
"Em cada ser humano reside e existe esta dinâmica", explicou, recordando também a ética e a dimensão antropológica como fatores diferenciadores.
"Cada ser humano é bom, é belo, é verdadeiro e acalenta este desejo de unidade. São afirmações que são transversais a todos os textos religiosos e da sabedoria humana" e "não há em nenhuma dessas expressões uma conceção negativista, derrotista, deturpada do ser humano", afirmou.
Contudo, "desde a Revolução industrial o ser humano, na sua fragilidade, foi colocado diante do poder da tecnologia" e "hoje todos somos avaliados com os mesmos padrões com que uma máquina é avaliada", salientou Rui Valério, alertando para a responsabilidade particular da União Europeia, que tem na sua base "raízes cristãs fundamentais".
"A dignidade da pessoa humana é o fundamento de toda a União Europeia, juntamente com a busca da paz e da reconciliação entre os povos, a solidariedade e a subsidiariedade e ainda a justiça social e o bem comum", alertou
"Em nome da laicidade, cai-se tantas vezes no laicismo. Os Estados e as estruturas políticas são laicas, mas as pessoas não", pelo que são "necessários católicos na política que impregnem as legislações dos valores cristãos e também de uma leitura histórica verdadeira, para que a Europa não deixe de ser aquilo que foi e pode continuar a contribuir para o bem dos povos", afirmou.
Leia Também: Abusos sexuais na Igreja. Somam-se 78 pedidos de compensação financeira