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Fentanil? "Opioides não podem pura e simplesmente ser diabolizados"

O Notícias ao Minuto falou com o médico João Goulão, presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), sobre a dependência de fentanil em Portugal.

Fentanil? "Opioides não podem pura e simplesmente ser diabolizados"

Em Portugal, 12 pessoas pediram ajuda ao Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) para serem tratadas devido à dependência de fentanil, segundo revelou o jornal Expresso, na semana passada.

O Notícias ao Minuto conversou com o médico João Goulão, presidente do Conselho Diretivo do ICAD, sobre este analgésico opioide, cujo consumo é já considerado uma "epidemia" nos Estados Unidos.

Por cá, o fentanil é "motivo principal do pedido de ajuda" em "apenas" quatro dos 12 casos reportados pelo semanário e o médico alerta para a necessidade de "não diabolizar" o uso de opioides, que são "extremamente úteis e mesmo indispensáveis na prática clínica".

Analgésicos opioides são extremamente úteis e mesmo indispensáveis na prática clínica. É importante que não [os] diabolizemos

O que faz do fentanil um analgésico tão perigoso?

Primeiro que tudo, gostaria de dizer que os analgésicos opioides são extremamente úteis e mesmo indispensáveis na prática clínica. É importante que não diabolizemos os opioides que são utilizados pelos médicos no controlo da dor severa, seja em situações oncológicas ou outras, desde que seja de acordo com indicações muito precisas.

O que aponta alguns riscos na utilização do fentanil é o facto de ser muito potente. Tem uma potência analgésica que é 50 a 100 vezes superior à da morfina e tem um fim de vida curto, tem um tempo de ação muito curto, com um início de ação muito rápido, mas também com desaparecimento da circulação bastante rápido.

A diferença entre a dose, quando se trata de abuso, que proporciona o efeito procurado pelos utilizadores e a dose potencialmente perigosa, e mesmo letal, é bastante baixa. Há uma margem de segurança bastante baixa, o que pode conduzir à ocorrência de pressão no centro respiratório e à ocorrência de overdoses. Os riscos têm a ver com isso, mas gostaria muito de dizer que os analgésicos opioides são muito importantes para a prática clínica e não podem pura e simplesmente ser diabolizados ou haver alguma tentativa de os banir. Pelo contrário. É fundamental que todas as pessoas que têm necessidade de aceder a estes fármacos o possam fazer.

Referiu que o fentanil é mais potente do que a morfina. E no caso da heroína? 

Há estimativas que apontam também para ser 50 vezes mais potente do que a heroína.

Em que situações costuma ser receitado?

Pode ser utilizado no tratamento da dor severa. Particularmente, no controlo da dor oncológica, causada pelo cancro, mas também para outras situações agudas de dor intensa, como dores osteoarticulares. Mas, neste caso, não pode ser banalizado nem pensado como a primeira linha para o controlo dessas situações.

Por outro lado, é usado como adjuvante de procedimentos anestésicos, seja em medicina humana, seja em medicina veterinária. Há utilizações variadas e variadíssimas formas de apresentação também, uma vez que o fentanil pode ser administrado por via oral, através de pensos, injeções intramusculares ou intravenosas ou mesmo raquidianas. Há uma flexibilidade muito grande na utilização deste fármaco. 

Aquilo que nós conhecemos são 12 pedidos de ajuda, 12 pedidos de tratamento por pessoas que se sentiram dependentes deste fármaco

Disse-me há pouco que, em alguns casos, o fentanil não podia ser utilizado como medicamento de primeira linha. Quais são então as outras opções?

Quando pensamos, por exemplo, em dores osteoarticulares é habitual que haja uma tentativa do controlo da dor, seja através de anti-inflamatórios, analgésicos não esteroides, não opioides. Há uma vasta variedade de medicamentos que podem ser utilizados antes de se optar por um opioide para esse tipo de dor. 

Foram registados 12 casos de dependência pelo ICAD, mas podem haver muito mais… 

Aquilo que nós conhecemos são 12 pedidos de ajuda, 12 pedidos de tratamento por pessoas que se sentiram dependentes deste fármaco. Em apenas quatro casos é o motivo principal do pedido de ajuda e, nos restantes casos, o fentanil aparece com outras substâncias que também utilizam. Nestes casos, há uma preponderância, de facto, do desenvolvimento de dependência a partir da utilização lícita, ou seja, através da prescrição de médicos. É aquilo a que chamamos a ocorrência de uma dependência motivada por intervenção clínica. Mas nada nos garante que não haja outros, estes são os que conhecemos e que pediram ajuda.

O que leva as pessoas a pedir ajuda?

Pedem ajuda as pessoas que conhecem a rede de serviços dedicada aos comportamentos aditivos e dependências, que tem sido gerida, nos últimos anos, pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS) e que daqui a uns tempos voltará a ser coordenada pelo ICAD. 

O que leva as pessoas a pedirem ajuda é o reconhecimento que os profissionais desta área têm desenvolvido, sobretudo na abordagem de problemas relacionados com outras substâncias, como a cocaína, a heroína ou mesmo o álcool, e mais recentemente nos comportamentos aditivos sem substâncias, como o jogo ou a dependência de ecrãs. É uma rede de serviços dedicada às dependências que tem provas dadas e que é reconhecida pelos utilizadores e pelas pessoas que carecem deste tipo de cuidados.

Tememos também é que o acesso ao fentanil através de outras fontes venha a ganhar expressão, nomeadamente através do mercado ilícito (...) mas em Portugal, para já, não foram ainda detetadas, de forma significativa, situações de acesso ao fentanil por esta via

Como se faz o tratamento da dependência ao fentanil?

O tratamento não difere muito do tratamento que ocorre, por exemplo, na dependência de heroína. São dependências do mesmo tipo, dependências do tipo opiáceas.

[O tratamento] Pode começar pela utilização de fármacos de manutenção, como a metadona ou a buprenorfina, sempre coadjuvados com intervenção psicoterapeuta e com o esforço de reintegração social. Isto pode ser feito em ambulatório, como pode ser feito através de internamentos: internamentos de curta duração para desabituação física e internamentos de longa duração em comunidade terapêutica para que as pessoas reaprendam a viver libertas da sua dependência. Há um vasto leque de respostas que estão disponíveis nos serviços dedicados a esta matéria.

Prevê-se que possa vir a ser um problema de saúde pública como é, por exemplo, nos Estados Unidos?

É possível. É algo para o qual temos estado atentos. Mas, para já, a ocorrência destas situações de dependência são, ao que parece, predominantemente ocasionadas por prescrição clínica. Não parece ser um volume de situações que nos faça temer o desenvolvimento de uma epidemia semelhante ao que acontece nos Estados Unidos ou no Canadá.

De qualquer forma, aquilo que tememos também é que o acesso ao fentanil através de outras fontes venha a ganhar expressão, nomeadamente através do mercado ilícito e que passe a circular nesses mercados de forma semelhante ao que acontece com outras substâncias como a heroína, a cocaína, etc. E também a possibilidade de aceder ao fentanil de origens clandestinas, que é possível adquirir através da internet e da darkweb, fazendo encomendas online e recebendo essas encomendas descaracterizadas em casa sem sequer passar pelos tais circuitos de tráfico clássicos, que é o que parece acontecer nos Estados Unidos, em grande volume. Neste momento, já não será a partir de prescrições que esta dependência acontece, mas sim através do mercado ilícito.

Em alguns países europeus, já se vai assistindo também a esta nova realidade, mas em Portugal, para já, não foram ainda detetadas, de forma significativa, situações de acesso ao fentanil por esta via.

Como é que o ICAD reage à notícia de que a Direção-Geral da Saúde [DGS] vai rever a circular relativa ao uso de medicamentos opioides fortes?

Reagimos favoravelmente. É importante que seja mantida a informação atualizada com base nos mais recentes dados científicos disponíveis e no sentido de ter um equilíbrio entre o acesso a este tipo de medicamentos por parte de todas as pessoas que dele necessitam, mas acautelando as situações de abuso de prescrição fora das indicações cientificamente suportadas. Vemos favoravelmente esse anúncio por parte da DGS.

Fentanil? DGS vai rever regras após notícia sobre casos de dependência

Expresso noticiou hoje que 12 pessoas já pediram ajuda em Portugal para serem tratadas por dependência de fentanil.

Lusa | 17:43 - 19/01/2024

Houve abuso na prescrição em algum dos 12 casos registados pelo ICAD?

Não lhe sei dizer. Não tenho [informações], além daquilo que consta em algumas notícias que foram saindo. Mas não tenho conhecimento direto. Há um comentário de um colega Centro das Taipas, em Lisboa, que dizia que parecia ter sido intempestiva a prescrição no caso de um dos doentes, mas não conheço pormenores suficientes.

Maior restrição? Já houve tempos em que o acesso à medicação opiácea passava pela utilização de uma receita especial (...) Não sei o que é a que DGS terá em mente, mas aguardemos que sejam emitidas novas recomendações ou confirmadas as atuais

No futuro, poderá existir restrições mais apertadas na prescrição deste medicamento?

É importante manter o tal equilíbrio entre a disponibilidade deste tipo de fármacos para todas as pessoas que necessitam dele e o evitar o desenvolvimento de situações de dependência, mas é necessário também desenvolver literacia não só para os utentes, mas também para o pessoal de Saúde para que sejam asseguradas as melhores práticas na administração destes medicamentos. Não sei se passará por situações de maior restrição. Já houve tempos em que o acesso à medicação opiácea passava pela utilização de uma receita especial, com registo e com cópias que permitiam rastrear eventuais situações de abuso de prescrição.

Não sei o que é a que DGS terá em mente, mas aguardemos que sejam emitidas novas recomendações ou confirmadas as recomendações atuais. O anúncio é de que a DGS vai rever a circular e não necessariamente alterá-la.

A circular de 2008 refere que "parecem não se confirmar os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos". Neste sentido, a quem compete fazer o acompanhamento dos efeitos deste tipo de medicamento?

A farmacovigilância de todos os medicamentos tem competências repartidas, entre o Infarmed e a própria Direção-Geral da Saúde. Mas estou seguro de que, ao fazer esta revisão, nós próprios, com competências na área das dependências, seremos consultados acerca do número e circunstâncias dos casos de dependências identificados e isto pode ser tido em conta na reformulação da circular.

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