O Serviço Nacional de Saúde (SNS) já passou por várias transformações ao longo dos tempos, tendo sido inúmeras as modalidades de organização testadas, com melhores ou piores resultados.
A mais recente alteração anunciada diz respeito aos novos modelos organizacionais e generaliza as Unidades Locais de Saúde (ULS), criando 31 novas, que integram os hospitais e os centros de saúde debaixo de uma única gestão, já a partir de janeiro de 2024. O país ficará inteiramente coberto por 39 ULS.
No entanto, segundo Diogo Fernandes da Silva, médico especialista de Saúde Pública e cofundador da Nobox (um projeto construído com o objetivo de capacitar os profissionais de saúde com mais competências de liderança através de formações inovadoras), em declarações ao Notícias ao Minuto, "o potencial impacto positivo [desta medida] dependerá de como for gerido este processo de mudança, ou seja, da implementação".
O médico especialista considera ainda a decisão da reforma "repentina porque foi anunciada no início deste ano, sem que fosse explicado o processo de como ia ser feito", elaborando que "não houve nenhum dado concreto que tenha sido apresentado que [a] justifique".
Além disso, Diogo Fernandes da Silva aponta a "falta de esperança num futuro bom no SNS" como "um dos principais motivos que limitarão a participação dos profissionais de saúde nesta mudança".
O seu potencial impacto positivo dependerá de como for gerido este processo de mudança
Tendo em conta a nova organização dos cuidados de saúde com as Unidades Locais de Saúde alargadas a todo o país (31 novas) em janeiro, como é que vê esta grande reforma do SNS?
A implementação das Unidades Locais de Saúde (ULS) em todo o país representa uma iniciativa ambiciosa para tentar modernizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Esta reforma visa proporcionar não só uma resposta mais eficaz às necessidades de saúde da população atual e futura, procurando, na teoria, dar mais ferramentas e autonomia às instituições de saúde para que consigam alinhar melhor o sistema aos desafios demográficos, padrões de doenças atuais e expectativas crescentes dos pacientes, mas também tem o objetivo de melhorar a gestão orçamental em saúde, com um orçamento por capitação, ou seja, por pessoa.
Contudo, o seu potencial impacto positivo dependerá de como for gerido este processo de mudança, ou seja, da implementação.
O principal objetivo do modelo é criar uma estrutura mais integrada e adaptável
Qual é o objetivo do modelo no sistema de saúde e o que é que vai alterar nas dinâmicas dos profissionais?
O principal objetivo do modelo é criar uma estrutura mais integrada e adaptável, ou seja, incluir na mesma organização os cuidados de saúde primários e hospitalares, de forma a que seja possível ter uma visão e uma resposta mais completa e integrada de toda a jornada de cuidado aos doentes.
Ou seja, atualmente um doente com uma patologia que exige cuidados hospitalares e também acompanhamento no médico de família acaba muitas vezes perdido, com, por exemplo, referenciações demoradas e ineficientes e constantes falhas de articulação no diagnóstico e tratamento do doente entre as diferentes entidades, muitas vezes com objetivos de produção desarticulados e até contraditórios entre si.
Este modelo abre portas a que o processo de prestação de cuidados seja mais colaborativo e contínuo, assim como mais eficiente, procurando atuar na saúde das populações como um todo, garantindo uma resposta preventiva e de acompanhamento familiar mais robusta com os cuidados de saúde primários, integrada com cuidados hospitalares quando necessários.
É muito comum que mudanças organizacionais desta magnitude falhem durante o processo de implementação
Considera que a reforma traz vantagens para os profissionais de saúde? E para os utentes?
A reforma pode trazer vantagens para os profissionais de saúde, caso a inovação clínica e organizacional que promete seja de facto concretizada. O que é que isto quer dizer? É muito comum que mudanças organizacionais desta magnitude (mesmo com todo o seu potencial positivo) falhem durante o processo de implementação.
Neste caso, o grande receio é que esta reforma se foque apenas em processos de otimização da gestão de aspetos não clínicos (estruturas de suporte), ignorando as áreas clínicas, onde o potencial é maior, mas também mais difícil de atingir.
Se o processo de gestão de mudança for gerido de forma a ouvir, envolver e mobilizar os profissionais de saúde, criaremos as bases para que estes participem nos processos de inovação necessários para melhorar a prestação de cuidados.
Caso o processo de implementação consiga comprometer-se com inovação clínica e promoção de integração de cuidados com o envolvimento dos profissionais, então os doentes poderão esperar cuidados mais articulados, mais rápidos e com mais qualidade, ou seja, uma jornada de cuidados mais contínua.
Não houve nenhum dado concreto que tenha sido apresentado que justifique automaticamente a decisão da universalização deste modelo
Disse, anteriormente, em entrevista, que "a universalização do modelo das ULS a todo o país foi repentina". Porquê?
O modelo ULS não é novo e já existem várias ULS em funcionamento há cerca de 20 anos, com resultados bastante díspares entre si. Não houve nenhum dado concreto que tenha sido apresentado que justifique automaticamente a decisão da universalização deste modelo, cujo sucesso depende muito da forma como é implementado.
Adicionalmente, foi repentina também porque foi anunciada no início deste ano, sem que fosse explicado o processo de como ia ser feito, tendo o diploma sobre as ULS só sido publicado no mês passado.
Naturalmente, isto levantou muitas dúvidas e questões, que foram ficando por responder durante bastante tempo e que tornam mais difícil a tarefa de implementação das ULS já em 2024.
É difícil as equipas anteciparem melhorias significativas na organização, quando muitas enfrentam realidades em que tentam apenas sobreviver
Acha que as equipas de saúde estão preparadas para colocar em prática o novo modelo ou terá de ser feita uma mudança na gestão das organizações e equipas?
Dados os desafios colocados pela falta de recursos humanos e materiais, é difícil as equipas anteciparem melhorias significativas na organização, quando muitas enfrentam realidades em que tentam apenas sobreviver.
Além disso, as equipas e profissionais de saúde não fazem ainda ideia do que irá mudar concretamente. Conhecem o modelo das ULS e sabem o que pode trazer de bom. Mas neste momento, com tanta incerteza, estão mais preocupados com o que vai acontecer durante a transição e com as consequências negativas que as alterações poderão ter nas coisas práticas do dia a dia, como pagamentos, ligação entre sistemas informáticos, locais de trabalho, condições laborais, entre muitos outros aspetos ainda por clarificar.
A questão é que o potencial das ULS não reside nestes aspetos que vão acabar por absorver muita da atenção inicial. A grande inovação advém da teórica maior facilidade na integração de cuidados e gestão do doente como um todo, para a qual é crucial o envolvimento das equipas clínicas - os únicos capazes de repensar e inovar na otimização e articulação da prestação de cuidados.
Surgem dúvidas relativamente ao processo de contratualização e orçamento dos vários serviços e da capacidade e autonomia das administrações das ULS
Uma vez que considerou que há profissionais de saúde com "muitas dúvidas e preocupações a que ninguém procurou ainda responder", quais destaca serem os maiores receios e porque existem?
Genericamente há um clima de ceticismo em relação à inovação organizacional, e para o qual o atual clima na área da saúde contribui. Mesmo para os profissionais que conseguem entender os benefícios deste modelos, as dúvidas e receios que surgem advêm da incerteza associada ao processo de implementação, que ainda é muito pouco conhecido.
Surgem dúvidas relativamente ao processo de contratualização e orçamento dos vários serviços e da capacidade e autonomia das administrações das ULS para promover maior articulação entre cuidados primários e hospitalares, sobre a possibilidade de centralização excessiva da atenção nos cuidados hospitalares, com prejuízo do trabalho nas unidades de saúde familiares, ou até preocupação sobre as lideranças e hierarquias.
Mas também surgem preocupações mais práticas como possíveis mudanças dos locais de trabalho, horários ou situações contratuais.
Será um enorme desafio logístico e estratégico, agravado pelo atual período eleitoral
Com a nova reforma, as ULS passarão a 39 a partir de janeiro. Como será feita esta transição e qual será o seu impacto na Saúde?
A transição para 39 ULS já em janeiro será um enorme desafio logístico e estratégico, agravado pelo atual período eleitoral. Nesta fase, o foco será ao nível macro das organizações, com alterações nas estruturas de liderança e definição dos novos papéis a desempenhar, acompanhado da convergência de alguns departamentos estruturais, o que no imediato não trará grandes alterações.
Contudo, apesar de importante, esta fase em nada se compara com o trabalho que dela advém. O objetivo da reforma é que esta provoque uma reflexão e melhoria na prestação de cuidados, pelo que será importante garantir que são criadas as estruturas, sistemas e ferramentas para iniciar este processo de transformação ao longo do tempo.
Para iniciar este trabalho é fundamental a criação e capacitação de equipas específicas para a integração de cuidados (com representantes das várias áreas), a identificação de áreas onde a integração de cuidados pode ter mais impacto, e a criação de programas de apoio para inovação e implementação de projetos de integração de cuidados.
As ULS passam a ter mais autonomia e controlo sobre toda a jornada de prestação de cuidados
As ULS vão realmente permitir a inovação no setor da saúde pública?
Na teoria, com o financiamento por capitação (ou seja, por pessoa) e a integração dos cuidados primários e hospitalares na mesma estrutura, são criadas as condições para que a inovação seja incentivada.
As ULS passam a ter mais autonomia e controlo sobre toda a jornada de prestação de cuidados, mas também têm uma maior responsabilidade para garantir a melhor gestão e otimização do orçamento, para que traga o maior valor possível para os doentes e para a comunidade.
Assim, estas novas estruturas devem esforçar-se por procurar adaptar as suas respostas clínicas àquilo que irá trazer mais resultados para a sociedade, não só a curto prazo, mas especialmente a médio e longo prazo, abrindo-se portas para uma verdadeira aposta em cuidados preventivos e literacia da população, para focar os cuidados hospitalares nas situações mais críticas.
Será necessário um esforço adicional pela Direção Executiva e futuro Governo para conseguir restaurar a confiança dos médicos e restantes profissionais
Acha que, havendo um dos sindicatos dos médicos (FNAM) ainda de costas voltadas para o Ministério da Saúde, a implementação de um novo regime a poucos meses de novas eleições pode gerar resistência por parte dos profissionais na adaptação ao processo?
Naturalmente todo o processo de negociação com os sindicatos não contribuiu para este processo, servindo apenas para desgastar ainda mais a relação entre médicos e Governo. Mesmo o acordo "intercalar" conseguido pode ser insuficiente, porque muitas das reivindicações ficaram por responder.
Será necessário um esforço adicional pela Direção Executiva e futuro Governo para conseguir restaurar a confiança dos médicos e restantes profissionais, para que estes sintam que ainda há esperança de melhorar a situação do SNS e sintam vontade e capacidade para participar nesta mudança.
Parece-nos que a falta de esperança num futuro bom no SNS (ou seja, não só em termos de condições de trabalho) é um dos principais motivos que limitarão a participação dos profissionais de saúde nesta mudança.
A falta de esperança num futuro bom no SNS é um dos principais motivos que limitarão a participação dos profissionais de saúde nesta mudança
Na última reunião com os sindicatos, no final de novembro, o Ministério entendeu não ter condições (após saída de António Costa) para negociar matérias com aplicação em 2025 e 2026, tais como a redução para as 35 horas semanais dos médicos. Em que é que isto pode afetar o funcionamento do novo modelo?
Com o lançamento das ULS nestas condições governativas, é lógico recear que decisões estruturais não possam ser tomadas e consequentemente o propósito das ULS possa ser perturbado nesta fase inicial.
Não obstante, além de aspetos específicos das negociações com os médicos, parece-nos que a falta de esperança num futuro bom no SNS (ou seja, não só em termos de condições de trabalho) é um dos principais motivos que limitarão a participação dos profissionais de saúde nesta mudança.
Sem lhes dar um propósito, um rumo, uma visão, é inevitável que após tantos anos - sem esquecer o desgaste de uma pandemia tão recente - os profissionais vejam reformas como a anunciada com ceticismo e resistência, pelo que terá de lhes ser devolvida, de forma honesta, a esperança de que algo de facto mudará desta vez.
A verdade é que, no final, o sucesso dependerá da forma como este novo modelo é recebido, integrado e posto em prática pelas equipas de saúde.
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