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Habitação? "Não podemos confundir soluções do Governo com esmolas"

Maria João Berhan, uma das porta-vozes da manifestação, salienta que, neste momento, em Portugal "cerca de 20% da população vive abaixo do limiar da pobreza" e "mais de metade são pessoas que trabalham". "Neste momento, trabalha-se para se continuar pobre", enfatiza.

Habitação? "Não podemos confundir soluções do Governo com esmolas"
Notícias ao Minuto

10:30 - 29/09/23 por Daniela Carrilho

País Habitação

"Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar", é o que menciona o Artigo 65.º Constituição da República Portuguesa, mas infelizmente não é a realidade que se vive em Portugal nos dias de hoje.

"É um problema de justiça nunca antes visto", alerta, em entrevista ao Notícias ao Minuto, Maria João Berhan, membro do coletivo Habita (Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade) e uma das porta-vozes de uma manifestação que terá lugar este sábado, dia 30 de setembro, a propósito deste flagelo.

Sob o mote 'Casa para Viver' e 'Planeta para Habitar', o protesto acontece em vários locais do país - cujos pontos de encontro pode consultar aqui - e vai gritar a plenos pulmões que ter casa é um direito em qualquer parte do mundo.

Esta manifestação visa chamar a atenção para as "grandes desigualdades" no mundo, porque "toda a gente tem de viver e toda a gente tem de viver numa casa". Por isso, afirma também a representante do coletivo Habita, "ambas as crises se traduzem num ataque às condições mais básicas da vida das pessoas".

Governo dá mais facilmente apoio às empresas que querem perpetuar este estado de coisas do que se orienta para resolver a vida das pessoas

A manifestação marcada para sábado quer chegar onde? O que se pretende com o protesto?

A manifestação tem dois motes - 'Casa para Viver' e 'Planeta para Habitar'. Esta é uma junção histórica, não é fortuita, não é fútil e quer pôr tudo em causa. Infelizmente, esquecem-se que os problemas têm uma ligação e, neste caso, é exatamente o que está por trás da enorme crise de habitação, que é uma coisa antiga e profunda do nosso país e no mundo e tem exatamente as mesmas raízes de emergência que estamos a atravessar com as alterações climáticas e que põem problemas de justiça e de grande desigualdade.

O sistema que é baseado no lucro e apenas vê qual é o lucro que pode retirar de qualquer operação, obviamente que descarta as consequências para a vida das pessoas. No caso da habitação, sabemos que temos no país um negócio imobiliário orientado para o luxo e para as classes altas, esquecendo que a grande maioria da população residente neste momento não consegue aceder a uma casa (decente) que possa pagar e por isso estamos a assistir a um aumento da autoconstrução - que é o que habitualmente chamaríamos de barracas -, de pessoas a viver na rua e de um fenómeno que já era suficientemente grave em Portugal, que é a sobrelotação, ou seja, duas, três ou mais famílias a partilharem um único apartamento.

As pessoas mais afetadas por esta crise, que vivem em habitação precária mas também em habitação social de má qualidade e que nunca teve manutenção, são as que estão mais expostas aos extremos de temperatura, frio e calor, que lhes trazem inúmeras doenças. Todos nós já vimos imagens de paredes carregadas de bolor e que levam a que as pessoas que vivem lá dentro estejam permanentemente com infeções respiratórias graves, que lhes diminuem a saúde e lhes encurtam a vida.

Temos esta noção de que um mesmo problema ataca a vida das pessoas por vários lados e é bom que as coisas deixem de ser quadradinhos estanques, por isso é que dizemos no nosso manifesto que tudo isto tem de mudar agora: é acabar com os despejos, é baixar as rendas, é controlar os preços nos setores essenciais (alimentação, água, eletricidade), porque é preciso não esquecer que, no meio desta crise, ao mesmo tempo em que as pessoas estão a perder casas, estão a pagar os lucros exorbitantes das empresas de energia, que vendem eletricidade, gás e combustíveis. Tudo isto tem uma relação.

O Governo português dá mais facilmente apoio às empresas que querem perpetuar este estado de coisas do que se orienta para resolver a vida das pessoas. Desde o início das suas funções que diz que a habitação é prioridade, vai fazendo sair pacotes legislativos uns atrás dos outros, que se têm revelado inócuos porque ao mesmo tempo [o Governo] também promove a vinda de residentes ricos, seja pelos vistos gold, seja pelos nómadas digitais, seja pelos residentes não habituais, tudo gente que é favorecida pela sua procura de habitação, levando que o mercado se oriente para essas pessoas e que descarte completamente as pessoas que trabalham e constroem coisas neste país e são esquecidas nesta voragem.

O Governo não pode dizer que está a tentar fazer o possível pela habitação quando não mexe grande coisa e estamos todos a ver isso… Só fazem descer a gritaria do setor rentista, que diz 'ai, estão a tirar-nos a nossa vida'. Mas é preciso perceber que, embora com menos capacidade de se fazer ouvir, há um enorme setor da população a quem estão a afetar a vida e são esses que vão ter voz nesta manifestação.

São pessoas como casais divorciados que têm de partilhar a mesma casa, jovens que desistem de estudar fora pelos preços das rendas, pessoas com empregos estáveis que vivem em tendas e carros… Estes casos têm sido cada vez mais frequentes?

Esta série de casos bastante extremos - já não são casos extremos raros - são casos cada vez mais frequentes. Sabemos isso e continuamos a ter leis que favorecem a entrada de pessoas que só pela sua entrada no mercado da habitação do lado da procura, que cedem a comprar casa, ou a arrendar, com as rendas que são impossíveis de pagar para a maioria da população, só isso faz com que a crise não se resolva. Este Governo não está assim tão interessado em resolver esta crise, está interessado em apaziguar, mas há muitos anos que dizemos que estas políticas não vão resolver.

Esta relação íntima entre duas crises não é clara para muita gente. Ambas se traduzem num ataque às condições mais básicas da vida das pessoas, que é uma casa - qualquer ser humano precisa de uma casa para se proteger das intempéries, para construir uma vida digna, com memórias, com laços de afeto com a família. E depois precisamos todos de um planeta habitável - que é responsável pela migração forçada de milhões de pessoas, que estão a ser deslocadas pelos aumentos de temperatura, pelas secas, seja porque tudo isto afeta completamente o sistema alimentar destas pessoas, que já andam pelo mundo à procura de condições mínimas de vida. E estas pessoas são as menos responsáveis pela crise climática, porque têm um estilo de vida que pouco interfere com emissão de efeitos de estufa, enquanto os responsáveis por isso se dão ao luxo de fechar fronteiras ou deixar morrer pessoas no processo de viagem.

Estamos perante um grau de injustiça nunca antes visto em que é completamente claro que há pessoas descartáveis, ou seja, a vida delas só interessa se forem para ser usados como trabalhadores ultra baratos, mas quando essa necessidade abranda podem morrer à vontade. Então, fechamos-lhes as fronteiras e impedimo-las de entrar e aceder a uma vida digna. E é isso que teremos de mudar com a manifestação de sábado.

Já vimos isso na [manifestação] passada, no dia 1 de abril, e o Governo fez pouco caso para dar uma resposta condigna. Vimos aquele movimento de 'uma no cravo e outra na ferradura' de vir anunciar medidas que não resolvem, mas que se destinam a que as pessoas pensem que já estão a tratar do assunto e podem descansar. Não podemos descansar! Já estamos muito condicionados pela discussão que nos é proposta pelo Governo, mas a discussão deve ser elevada a outro patamar que é: qual é a vida que queremos ter na humanidade e dentro do país? É uma vida com justiça!

No fim de cada ciclo de crises vemos que os mais ricos estão mais ricos, há uma concentração desse lado da riqueza do mundo, enquanto continuamos a ter pessoas que não acedem ao mínimo para viver. Imagine que organizamos um almoço para 100 pessoas e que reservamos 80 pães para duas pessoas que estão no canto da mesa, há 30/40 pessoas que vão partilhar 15 pães e depois 60/70 pessoas têm de partilhar entre si quatro, cinco pães. É um retrato fiel de como a riqueza está distribuída no mundo e é inaceitável.

É hora de os bancos prescindirem de uma parte dos seus lucros para atenderem uma crise que eles próprios ajudaram a provocar

O que acham do programa 'Mais Habitação' e das medidas de apoio ao crédito à habitação? Não correspondendo ao que consideram ser necessário para acabar com a crise da habitação que se vive em Portugal, há alguma medida interessante como solução?

É evidente que qualquer medida que venha aliviar a aflição de uma família que deixou de ter capacidade para pagar o seu crédito, que se tiver na contingência de perder aquela casa para o banco e eventualmente continuar a pagar uma dívida, tem de ser bem-vinda. Agora, não podemos confundir soluções com esmolas. E mais: isto são apoios ao crédito que, na maior parte das vezes, contam com dinheiro no orçamento público para apoiar essa situação, em vez de irem ao setor bancário que ele próprio tem recebido inúmeras vezes grandes apoios a partir do Orçamento do Estado. Se calhar é hora de os bancos prescindirem de uma parte dos seus lucros para atenderem uma crise que eles próprios ajudaram a provocar.

Todos sabemos da facilitação ao crédito que houve em muitas alturas, muitas vezes de forma irresponsável da parte dos bancos. Existiram políticas de habitação pública ao longo de décadas que foram ajudar ao negócio bancário e ajudar as pessoas a comprar casa, mas deram bonificação no crédito, ou seja, desviando dinheiro público para casas que vão ficar no mercado privado, algumas vão voltar para os bancos e outras, quando as pessoas as tiverem pagas, podem vendê-las, o que acaba por não resolver o problema da habitação.

Três quartos do dinheiro que Portugal gastou ao longo de três ou quatro décadas foram gastos em bonificação de juros bancários, sem esquecer que o setor que compra casa não é o mais desfavorecido, porque para comprar uma casa já é preciso que as pessoas tenham uma almofada, digamos assim, uma maneira de dar uma entrada ou um emprego bastante estável, que depois se revela que não é assim tão estável como as pessoas pensavam, como se está a perceber neste momento. Claro que concordamos com medidas de apoio, mas o que gostaríamos de ver era os bancos a serem chamados para resolver a crise, os salários a aumentarem e mais habitação pública, porque há uma lógica de que as casas públicas têm de ser para os pobrezinhos e não é verdade, toda a gente tem de viver e toda a gente tem de viver numa casa.

Também toda a gente precisa de água para viver e estamos a assistir a grandes empresas multinacionais a tentarem tomar conta do monopólio da água. É uma total perversão se pensarmos que se pode fazer negócio com necessidades elementares, básicas e sem as quais o ser humano não pode viver. É ter o mundo todo de pernas para o ar...

Notícias ao Minuto Maria João Berhan© Reprodução  

A Habita tem recebido mais pedidos de ajuda para estas situações urgentes? É uma realidade?

Sim, evidentemente. Quando dizemos 'pagar a casa', estamo-nos a esquecer que ao mesmo tempo que subiram as rendas e as prestações, subiu muito o preço da alimentação, o preço das contas da energia e os salários ficaram na mesma. Em Portugal, cerca de 20% da população vive abaixo do limiar da pobreza e o que é espantoso é que mais de metade são pessoas que trabalham. É bastante nítido que, neste momento, trabalha-se para se continuar pobre. É um problema de justiça, porque também em Portugal, no final de cada crise, assistimos a uma passagem da riqueza para os setores 2 a 10% mais ricos da população, que enriquecem durante as crises. Temos de perceber também para que servem as crises e se elas são alguma coisa que nos acontece ou se são plantadas e utilizadas para favorecer este sistema de extração de lucro.

Estão em contacto com o Governo e especificamente com a ministra da Habitação, Marina Gonçalves? Que feedback vos tem sido dado?

Os contactos com o Governo deram-se na tentativa de que percebesse aquilo a que as suas políticas dá origem e no quadro de situações muito graves. Normalmente, perante a falta de resposta imediata, que é a prática habitual, temos forçado as reuniões, indo para a porta do Ministério, fazendo barulho e acabamos por ter reuniões no Governo. Essas reuniões dão o que dão… 'Ah sim, claro, muito grave, vamos tratar disso', mas o que se vê não é consequente com a verdadeira vontade política de mudar as situações.

[Crise da habitação] não representa bem uma crise de valores, porque estes são os valores do sistema em que vivemos

Consideram esta profunda crise de habitação como um período de uma profunda crise de valores?

Aquilo que estive a descrever pode ser visto de um ponto de vista moral e também tem essa leitura. É um mundo completamente errado, completamente ao contrário daquilo que é afirmado enquanto valores de justiça e de solidariedade social. São valores que ouvimos apregoar e estão inclusivamente ligados ao nome socialista - que é o nome do partido que nos governa em maioria absoluta. Mas diria que isto não representa bem uma crise de valores, porque estes são os valores do sistema em que vivemos, que se chama sistema capitalista, em que tudo é uma mercadoria e só tem a ver com uma coisa: posso extrair lucro ou não posso extrair lucro? Para essas contas, não entram as consequências na vida das pessoas. É o funcionamento normal e bem organizado do sistema. Os representantes desse mundo reúnem-se, nas suas reuniõezinhas de G7, G20 e Feiras Mundiais do Imobiliário, mas não estão todos a pensar como é que vão resolver a crise de habitação mundial.

Em certos países não conseguem mesmo aceder nem a uma casa, nem sequer a um terreno onde construir uma barraca. O que é que essas pessoas fazem? Matam-se num suicídio coletivo? É a proposta? Não pode ser! Então, essas pessoas ocupam terrenos, às vezes até do Estado, como é o caso em Portugal. Há muita habitação autoconstruída que ocupou terrenos municipais e outros privados, porque são terrenos desocupados, que estão ociosos há anos, casas que estão na habitação pública, vazias por desleixo e má gestão, às vezes há mais de 10 anos, e as pessoas ocupam e bem!

Se as pessoas precisam de viver em algum lado, estão com filhos pequenos na iminência de ir para a rua e sabem que está uma casa vazia há 10 anos, ocupam-na. A essas pessoas há sempre a tentativa de as criminalizar e o que é que isto implica? Individualizar o problema. Dizer que aquela família está a ocupar uma coisa que não é deles e isto é apenas a maneira de deitar areia para os olhos de todos nós, porque aquela família resolveu por si o problema que o Estado tinha por obrigação constitucional resolver e não o fez e agora tem de enfrentar a criminalização da sua luta pela vida.

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