"Nunca tiveram voz". Os relatos de três vítimas de abusos na Igreja
Três das quase cinco mil vítimas que sofreram abusos por parte de padres e de outros religiosos decidiram vir a público, partilhando a sua história.
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País Abusos na Igreja
Depois de, em fevereiro, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja ter dado conta de mais de 500 testemunhos de abusos sexuais no seio daquela organização, e de pelo menos 4.815 vítimas, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, apresentou, no mês passado, em Fátima, "um profundo, sincero e humilde pedido de perdão" às vítimas de abusos em ambiente eclesial, em nome da Igreja.
Agora, três das pessoas que sofreram abusos por parte de padres e de outros religiosos decidiram vir a público, partilhando a sua história no programa ‘Essencial’ , de Conceição Lino, na SIC.
Cristina Amaral, António Grosso e uma terceira vítima identificada como ‘Filipa’ confessaram que “nunca tiveram voz”, criticando a Igreja por mostrar apenas “uma atitude de autodefesa”, em detrimento daqueles que sofreram às mãos do clero.
Na verdade, quando a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja foi formada, ‘Filipa’ revelou que “não tinha muitas expectativas”, uma vez que, pouco tempo antes, tinha denunciado os abusos de que foi alvo em adolescente junto da diocese em questão. No entanto, sentiu-se “aliviada”, já que “o processo não estava a correr bem”.
A história mudou de figura perante as declarações de José Ordelas, fazendo com que se sentisse “completamente defraudada”.
“Senti-me defraudada. Tinha muita esperança. Vão passar a acreditar em nós e vamos ter valor, não vamos ser só um numero. A Igreja vai ajudar-nos. Perante as declarações de José Ornelas fiquei completamente defraudada. Como se tivesse ali apenas a falar, mas não sentia, e não estava a dizer aquilo que é esperado enquanto Igreja”, explicou.
Cristina Amaral, que tinha 6 anos quando foi violentada, também “nunca” acreditou “que pudesse dar em algo”, mas decidiu falar. Ainda assim, a reação demonstrada pelo clero, e pelo próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que acabou por voltar atrás nas declarações que fez quando ao número de vítimas, deixou-a com sentimento de ter sido “duplamente violada pela Igreja”.
“Fomos todos mais do que humilhados. Achei que ‘não temos voz, não somos nada’. O foco foi sempre o que fizeram, porque fizeram, um padre coitado está doente. As vítimas nunca tiveram voz”, acusou.
Já António Grosso, que foi alvo de abusos num seminário de Santarém, quando tinha cerca de 10 anos, foi motivado a denunciar o seu caso pelo escândalo da Casa Pia, aguardando, desde então, “uma oportunidade melhor, que surgiu com a criação da comissão independente”.
“Acho espantoso que a Igreja, que encomendou um relatório a uma comissão independente, tenha vindo a ter uma reação de desprezo e indiferença pelo trabalho que encomendou”, disse, complementando que “a Igreja só tem tido uma atitude de autodefesa, não das vítimas, mas de si próprios”.
E salientou: “Não era só uma lista de nomes, eram 500 páginas e tinham 500 provas testemunhais. Não eram crianças a inventar histórias, eram adultos que tinham sofrido traumas”, recordou.
O padre disse-me: ‘não vale a pena falares, porque vou desmentir e a minha palavra vale mais do que a tua, e tu é que vais ficar pior nesta história'
Nessa linha, ‘Filipa’ partilhou que, dentro do ambiente eclesial, as vítimas sabem “perfeitamente que o valor da palavra da criança, do adolescente, do jovem não se compara em nada ao valor que tem, por exemplo, um sacerdote, uma religiosa, um leigo”.
“O padre disse-me: ‘não vale a pena falares, porque vou desmentir e a minha palavra vale mais do que a tua, e tu é que vais ficar pior nesta história'. Agora sou adulta, fui denunciar e, mesmo assim, as coisas não correram bem. Passados dois anos e meio, o Vaticano recomendou arquivar, porque o caso já tinha prescrito e era a única vítima conhecida do padre, como se fosse preciso mais alguma vítima”, lamentou, revelando que o seu abusador “continua no ativo e vai continuar”.
Na sua ótica, “a tal reparação é o único ato que os leva a assumir que qualquer um de nós é uma vítima”, referindo-se à possível indemnização por parte da Igreja. “Os pedidos de perdão não me dizem nada, não é sincero”, complementou.
“A Igreja não teve dificuldade nenhuma em acreditar em três crianças que viram Nossa Senhora. Quando é para fazer negócio, não têm dificuldade nenhuma”, acrescentou Cristina Amaral, considerando que a criação de Grupo VITA dá a entender que a Igreja pretende “uma comissão que lhe retire os resultados que a outra deu”.
‘Filipa’ tinha o sonho de integrar a Igreja, organização em que “confiava plenamente”. Foi numa formação, enquanto adolescente, que foi alvo de abusos sexuais. Contou a sua história há pouco tempo, mas não foi bem recebida pela família.
“Torna-se um mundo ainda mais pesado que temos de carregar. Tenho pesadelos quase todos os dias e vivo constantemente aquele momento. Tive plena consciência daquilo que aconteceu, mas não podia partilhar”, disse.
“As vítimas de abuso sexual carregam o fardo pesadíssimo da culpa, da raiva e do silêncio. São instigadas de que aquelas carícias são para a sua salvação, para as livrar do pecado. Depois de abusar sexualmente dizem-nos para nos irmos confessar, como se fossemos os culpados, o pecador”, complementou António Grosso.
Até aos 21 anos, o homem não conseguia expressar o que sentia, chegando mesmo a agredir-se a si mesmo em frente ao espelho. Durante a madrugada, um padre apalpava-o, chegando a masturbar-se entre as suas pernas. Perguntava-lhe ainda se tinha “pecado contra a castidade sozinho”, questões que justificava com a necessidade de o “salvar”.
Cristina Amaral foi abusada sexualmente dos seis aos 10 anos, durante a frequência num colégio de freiras. Contou que, naquela idade, gostou da ideia, mas provou ser “terrível”. Como em casa não tinha afetos, pensou que a vida “era assim”.
“O padre dizia que era representante de Deus na terra, lia o evangelho e obrigava-me a repetir. Sabia que era nojento, sentia repulsa, mas pensava ‘a porta vai abrir-se’, e nunca se abriu”, contou.
“O meu maior sonho era ser mãe e esse sonho foi-me roubado. Pensar que lhe poderia acontecer um terço do que me aconteceu, não poderia suportar. O próprio Estado tem responsabilidade, porque aqui se prova que não vivemos num estado laico. A Igreja está à margem, faz o que quiser”, rematou.
As vítimas criaram uma associação de apoio e acompanhamento, ‘Coração Silenciado’, que poderá contactar através de coracaosilenciado.pt.
Recorde-se que o grupo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht fez chegar ao Patriarcado uma lista de 24 nomes de membros ligados à Igreja e suspeitos de abuso, em março. Segundo uma nota divulgada na ocasião pelo Patriarcado, daqueles 24 nomes, oito eram de sacerdotes já falecidos, dois de sacerdotes doentes e retirados, três de padre sem qualquer nomeação, cinco de padres no ativo, quatro eram nomes desconhecidos, um dos nomes referia-se a um leigo e outro a um padre que abandonou o sacerdócio.
Ao longo de quase um ano, a Comissão Independente validou 512 dos 564 testemunhos recebidos, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de vítimas da ordem das 4.815. Na sequência destes resultados, algumas dioceses afastaram cautelarmente sacerdotes do ministério.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
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