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"No caos em que está o SNS, há muitas grávidas a optarem pelo privado"

Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF), é o convidado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

"No caos em que está o SNS, há muitas grávidas a optarem pelo privado"

O caos que se vive nas urgências dos hospitais portugueses é transversal e a situação piora quando se fala de falta efetiva de médicos (e enfermeiros), particularmente numa especialidade tão sensível como a de obstetrícia.

Na passada quarta-feira, a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde anunciou que o plano de funcionamento das urgências de ginecologia e obstetrícia e blocos de parto em vigor desde o início do ano, no âmbito da operação 'Nascer em segurança no SNS', vai manter-se até maio.

Segundo Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF) e coordenador do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital CUF Torres Vedras, é "fundamental que as grávidas não se sintam completamente perdidas" e "saibam para onde se dirigir".

Numa altura em que as consequências da crise no SNS estão cada vez mais evidentes, o médico assumiu que há (cada vez) menos médicos a dar entrada na especialidade, assim como há menos disponibilidade para trabalhar no Sistema Nacional de Saúde (SNS). "Uma tempestade perfeita", que se explica com a baixa remuneração e condições de trabalho dos profissionais de saúde.

Em entrevista ao Vozes ao Minuto desta segunda-feira, Nuno Clode esclareceu ainda temáticas relacionadas com gravidez e trabalho de parto, nomeadamente no que diz respeito à prática de procedimentos médicos - como cesarianas ou episiotomias - e violência obstétrica, ajuizando que "ninguém tolera é que as 'coisas' sejam feitas sem serem explicadas" e que com informação e consentimento tudo pode ocorrer naturalmente.

Houve uma diminuição das entradas na especialidade desde há vários anos - o que faz com haja menos especialistasEstamos diante de uma 'crise' - que já vai longa - no que diz respeito às urgências hospitalares, nomeadamente de obstetrícia. A que se deve, na sua opinião, este problema?

Há várias especialidades médicas que estão com o mesmo problema nas urgências. Penso que isto se deve, por um lado, à falta de literacia médica das utentes e na falta de resposta dos cuidados primários, que não dão resposta a situações mais básicas, o que obriga a que as pessoas recorram às urgências para resolver as suas dúvidas e os problemas que vão surgindo, do ponto de vista da ginecologia e da obstetrícia. Na obstetrícia é um pouco mais difícil uma pessoa controlar-se em relação às suas dúvidas porque há sempre a situação da mãe que fica aflita, não percebendo bem o que se pode passar com o bebé que transporta e recorre mais às urgências.

Por outro lado, tem havido uma diminuição de médicos que dão apoio à urgência, quer pela diminuição das entradas na especialidade desde há vários anos, o que faz com haja menos especialistas, e os especialistas que estão disponíveis, seja pela falta de incentivo económico para trabalhar no SNS ou pela procura maior pelos privados - que não há dúvida que oferecem melhores condições de trabalho e oferecem melhores incentivos económicos -, levou a que os médicos deixassem de estar na urgência. Foi a 'tempestade perfeita', são todas as permissões para haver, de facto, problemas graves.

O Sindicato Independente dos Médicos (SIM) denunciou que a Ordem dos Médicos e o seu Colégio de Especialidade de Ginecologia-Obstetrícia propuseram diminuir o número de médicos especialistas nas equipas de urgência. É uma medida preocupante?

Vai agravar a situação. Com menos médicos disponíveis e se não se modificar a forma como os médicos têm acesso a urgência, ou pelo menos se mantiveram o número de admissões de urgências às maternidades, diminuir os médicos não é nada que seja recomendável.

A exigência é bastante e não há capacidade de respostaEsta saída de médicos do SNS e a preferência pelos hospitais, acontece porque o serviço público já não é atrativo?

Não só pela remuneração, mas também pelas condições de trabalho e do grau de exigência. Neste momento, no SNS, os contratos são de 35 horas - essas 35 horas, penso eu que incluem 12 horas de urgência - para os quais é necessário fazer mais 12 horas pelo menos, era expectável que as pessoas fizessem as tais 150 horas a mais na urgência… A exigência é bastante e não há capacidade de resposta. E depois outro problema que é muito importante - a meu ver - é que atualmente uma grande percentagem dos médicos são do sexo feminino. Não tenho números precisos, mas talvez mais de metade, e isto tem-se vindo a acentuar desde há uns anos para cá. Ou seja, muitas urgências são feitas por mulheres que estão, neste momento, a constituir famílias ou têm famílias já com crianças pequenas e, como tal, o foco e a prioridade tende a ser a família e os filhos e não têm uma disponibilidade total para dar apoio às suas carreiras. Torna-se muito mais difícil de gerir.

Assim como também há médicos em funções que já têm idade de poderem não executar mais este trabalho de urgência, mas que continuam para manter este serviço funcional…

Tenho a sensação de que isto vai funcionando porque há muitos colegas que, por atenção aos doentes, têm noção que a sua disponibilidade é importante para que se mantenham os cuidados de saúde dos hospitais onde trabalham, que se mantêm a fazer urgências para além da idade que poderiam não o fazer - quer para dar mais resposta à urgência, quer para a transmissão de conhecimento. E não é só uma transmissão de conhecimento teórico, é também transmissão de conhecimento prático, que advém do trabalho ao longo do tempo. Toda esta experiência que vamos acumulando e que é passada aos mais novos, implica tempo, contacto diário, contacto de urgência.

Neste momento há gente mais nova que não está - ou não quer - fazer urgência no SNS, onde estão (ou estavam) estas pessoas mais experientes, isto também leva a que essa transmissão de conhecimento decaia e, portanto, a nova geração que vem, de alguma forma, sofre a falha dessa experiência que tem sido sempre uma constante no ensino, não só da medicina, mas no ensino da prática médica.

É fundamental que as grávidas não se sintam completamente perdidas no momento em que entram em trabalho de partoCom essa dificuldade em manter os serviços de urgência e maternidades a funcionar, considera que o modelo de reorganização das urgências é funcional? As alternativas são viáveis para as grávidas?

A reorganização das urgências começou com obstetrícia, mas a pediatria também está 'a ferver', a ortopedia vai começar e hão-de vir as outras [especialidades]. Relativamente à obstetrícia, é fundamental que as grávidas não se sintam completamente perdidas no momento em que entram em trabalho de parto. Isso é que é fundamental.

Há uns 30/40 anos existiam várias maternidades e sítios em que se podia nascer em Portugal e reduzimos isso para as unidades que existem atualmente no SNS. O problema é que uma redução ainda maior, sobretudo se ocorre de forma aleatória, faz com que as grávidas não saibam para onde se dirigir. Tem de haver qualquer forma de informação para a grávida que entrou em trabalho de parto saber, em determinada zona, qual a maternidade que tem disponível, com a segurança de que a vai aceitar…

O encerramento de maternidades poderá ser uma forma mais eficaz de combater esta falta de médicos?

É uma forma possível, mas a verdade é que continua a não haver maneira de ir buscar médicos a lado nenhum… Até podia dizer que isto se resolvia com enfermeiros, nomeadamente para os partos de baixo risco, mas a verdade é que [o SNS] também não os tem…

As próprias maternidades também se debatem, além da falta de médicos, com falta de enfermeiros especialistas. Essa formação demora tempo e voltamos ao mesmo - são mulheres, jovens, em constituição de família e não estão disponíveis para terem uma vida completamente desorganizada. Tudo isto deveria ter sido previsto, precavido, pensado… Sem médicos e sem enfermeiros a 'coisa' não se faz.

De que forma se podia acautelar essa situação? Que medidas deveriam ou poderiam ser tomadas para fixar e atrair médicos especialistas para o SNS?

Há uns tempos, pelo menos na minha perspetiva, os médicos estavam no SNS por sentirem de alguma forma recompensados, podia não ser economicamente, mas eram recompensados na forma de trabalho e na diversidade de patologia, era onde os médicos se sentiam realmente úteis a trabalhar e onde era possível de alguma forma também fazer investigação clínica, que, em medicina, é fundamental. Isso fazia com que as pessoas se sentissem ligadas às instituições onde estavam.

Portanto, além de proporcionar um incentivo económico maior, ou seja, pagarem mais aos médicos, também era importante que houvesse esta oportunidade de as pessoas poderem evoluir na sua formação profissional e poderem de alguma forma contribuir para a investigação clínica, mas para isso é necessário que a vida do médico do SNS não seja 100% de atenção clínica, tem de haver a parte de formação.

Na situação de caos em que nos encontramos no SNS, há muitas grávidas a optarem por ir para o privado

Da sua experiência, também as grávidas têm preferência por acompanhamento/partos em hospitais privados?

A decisão por um hospital público ou privado é muito variável. O que a grávida pretende é sentir-se segura, confortável e com companhia da pessoa ou pessoas que escolhe para estar consigo naquele momento. No fundo, o ideal da maternidade seria levar a casa para dentro do hospital. 

O hospital tem a grande vantagem de poder responder a todas as situações críticas que possam surgir ao longo de um parto, porque há coisas que é impossível prever. Há grávidas que poderão ter um risco maior durante o seu trabalho de parto, mas em qualquer gravidez, qualquer situação banal pode rapidamente tornar-se numa situação catastrófica. E, portanto, o sítio onde a mulher vai ter o seu bebé tem de ter esta capacidade de resposta.

Não há dúvida de que os hospitais gerais são os que têm melhor capacidade para o fazer. A escolha de um lado ou outro depende basicamente daquilo que a mulher pretende. Há pessoas que querem ter o parto com o seu médico e só com aquele, há pessoas que querem ter o parto num determinado ambiente, e só pode ser naquele sítio… Mas na situação de caos em que nos encontramos no SNS, há muitas grávidas a optarem por ir para o privado.

Podemos considerar que o acompanhamento das gestantes é mais personalizado no serviço privado, mas o serviço público está mais bem preparado para receber situações mais críticas?

Depende do que se está a referir. Se está a falar na prematuridade, os hospitais privados têm a capacidade para receber grandes prematuros, como é óbvio, mas os custos são de tal forma elevados que não há ninguém que os aguente. Muitas vezes, os recém-nascidos são transferidos para hospitais do SNS porque não há hipótese de dar resposta económica a um gasto destes.

Depois, há sempre situações clínicas maternas que não é possível resolver em termos dos hospitais privados, não são muitos, mas existe uma ou outra situação, nomeadamente quando é expectável um grande risco hemorrágico, pela capacidade de pessoas que é necessário congregar para aquele instante e para a necessidade rápida hemodinâmica. Isso às vezes é difícil de conseguir num hospital privado, de resto, as situações mais críticas que possam surgir em obstetrícia, os hospitais privados resolvem, senão não poderia haver maternidades abertas.

Aliás, há situações críticas do recém-nascido que nem todos os hospitais públicos resolvem e é preciso transferir para os centros mais importantes, nomeadamente de suporte neonatal. Estou a pensar em situações em que é necessário fazer a hipotermia do recém-nascido, isso não há nenhum privado que o possa fazer e aqui em Lisboa só há dois centros que o fazem e recebem recém-nascidos de todo o lado, mas são situações muito pontuais e raras.

Especificamente em relação à mãe, de facto há questões de hemorragias pós-parto, que têm de se resolver - acontece em qualquer momento e num instante - e não é possível transferir ninguém. O problema é se é antecipável que possa haver uma grande hemorragia e, nestes casos concretos, só dois ou três hospitais do SNS são capazes de resolver.

No privado fazem-se cesarianas a pedido, nem todas as mulheres querem ter partos por via vaginalNo que diz respeito a partos, admite que possa haver mais permissividade para a realização de cesarianas no privado? Porque acontece?

Sim, por várias razões. Primeiro, no privado fazem-se cesarianas a pedido, nem todas as mulheres querem ter partos por via vaginal. E no SNS é muito difícil que seja aceite facilmente, porque há metas a cumprir, porque há números que se deve ter em conta, portanto, não é fácil que a grávida consiga fazer isso, mas no privado não há dificuldade nenhuma.

Depois, porque ao longo do trabalho de parto, que é algo muito moroso, há que gerir essas expectativas. Há muitas mulheres que entram em trabalho de parto sem uma noção muito concreta daquilo que lhes vai acontecer e, nomeadamente, naquelas que é necessário fazer induções porque o trabalho de parto não se desenrolou à velocidade que a mulher pensou. Torna-se, muitas vezes, muito difícil mantê-las ao longo de vários dias em trabalho de parto para conseguir o parto por via vaginal. No SNS isto é tentado até à exaustão, por assim dizer, e no privado quando a grávida começa a pedir, opta-se por fazer a cesariana com alguma facilidade. Não se insiste porque, na prática, a utente também não o deseja.

A cesariana tem taxas altas em Portugal. Acarreta mais riscos do que um parto vaginal?

Obviamente que é uma cirurgia e todas as cirurgias têm riscos associados. Mas os partos vaginais também os têm. O risco de cesariana numa grávida de baixo risco, em relação a um parto por via vaginal, poderá ser significativo do ponto de vista estatístico, mas a nível prático e real essa diferença não é significativa. Basta ver as cesarianas que se fazem e as complicações que têm, que são muito poucas.

O problema das cesarianas é o risco das outras que vêm a seguir. Nesse aspecto há todo o interesse em lutar contra as cesarianas, sobretudo se a mulher está numa fase de constituir família. Uma coisa é evitar-se uma cesariana de uma mulher de 20 anos que está a ter o seu primeiro filho, outra é coisa é evitar-se uma cesariana de uma mulher que tem 40 e que, se calhar, está a ter o seu primeiro filho e já não quer mais nenhum ou não vai ter mais a seguir. É tudo uma questão de bom senso.

Também não sabemos bem - não há estudos que eu conheça - se há diferenças entre a população que acorre ao hospital privado e a população que acorre ao hospital público. Provavelmente a população que acorre ao hospital público é mais jovem, tem menos capacidade económica ou menos capacidade de dizer o que quer e como quer. E a população que acorre a um hospital privado é normalmente uma população mais velha, licenciada, mais consciente daquilo que pretende e tudo isto talvez justifique estas diferenças.

Uma mulher com 40 anos tem um parto da mesma forma como tem uma de 20. O problema é a gravidez, a conceção, risco de patologia fetal e outras complicaçõesAlém de todos esses aspectos que mencionou, aos dias de hoje, as mulheres também decidem ser mães cada vez mais tarde…

Isso também é verdade. Há muitas mulheres que chegam à sua primeira gravidez com 40/45 anos e aquele filho, que querem que venha na melhor das condições, de forma perfeitamente controlável, e não querem ter mais nenhum… Dado o baixo risco, pretendem mais facilmente um parto por cesariana.

A questão da idade também traz riscos associados no parto? 

Em relação ao parto, não. Uma mulher com 40 anos tem um parto da mesma forma como tem uma de 20. O problema é a gravidez, é a conceção, o maior risco de patologia fetal e, obviamente, haver outras complicações - como hipertensão ou diabetes - também é maior por causa da idade.

Há mais probabilidade de mortalidade fetal em gestantes mais velhas dadas as complicações possíveis na gravidez?

Se na mortalidade fetal incluir também os fetos que têm patologia malformativa, sim. Também há um ligeiro acréscimo [de risco] ao longo da gravidez, mas não é por aí. Estas mulheres têm o risco de hipertensão, de pré-eclâmpsia, há maior risco associado aos fenómenos tromboembólicos por causa da idade, o coração vai envelhecendo, por assim dizer, e o risco perante o stress de poder haver uma falência cardíaca ou uma arritmia é maior. Mas são problemas que não advêm só da idade e atualmente há muitas mulheres a ter os seus bebés com 40 e muitos anos, perto dos 50.

É impensável nos dias de hoje que as coisas não se façam sem consentimentos informadosTambém se tem falado mais recorrentemente de violência obstétrica - quando foi exercida violência física ou psicológica sobre a grávida. Este termo advém de quê? Práticas como a episiotomia e a manobra de Kristeller ou de desinformação da gestante?

É falta de informação e uma questão de gerir expectativas. Toda a gente tem expectativas em relação ao parto, em relação ao que quer que seja, e assumir que a coisa vai decorrer de determinada maneira e aquilo que acontece no momento e no instante está justificado só porque sim, é extremamente imprudente. 

É fundamental haver um aconselhamento da mulher durante toda a gestação, que permita que a grávida se esclareça, que possa discutir as suas dúvidas, que possa propor como gostaria de ter o seu parto e que seja esclarecida em função disto. Se isto for tudo conseguido, obviamente que a violência não existirá porque sabe ao que vai. Se a grávida, depois de ter tudo esclarecido e explicado, disser 'eu não quero que me façam uma episiotomia', e se tiver consciente de que, se não o fizermos, o parto só por si pode levar a lacerações extremamente graves, que sejam mais custosas de recuperar, desde que seja esclarecido, tudo bem. O que ninguém tolera é que as coisas sejam feitas sem serem explicadas e sem que se possa exprimir a sua opinião.

Fazer uma cesariana a uma grávida que não o deseja, obviamente que é uma violência, mas tem de ser esclarecida, por que razão poderá ter de ir para uma cesariana e terá de dar o seu consentimento para que isso aconteça.

É importante ter uma relação de confiança com o médico obstetra que a acompanha…

Torna tudo mais tranquilo se a grávida conhecer quem lhe vai fazer o parto. Se for do conhecimento prévio, a grávida escolheu aquela pessoa para lhe fazer o parto e essa pessoa vai lá estar no momento, ela vai sentir-se muito mais tranquila, sentir-se-á muito menos violada na medida em que, com aquela pessoa, já teve contacto durante todo o tempo da gestação. E parte-se do princípio que manteve um contacto com a pessoa porque confiou nela.

Outra coisa completamente diferente é chegar a um determinado sítio - onde vai ter o seu bebé - não conhecendo ninguém. Aí deve haver toda uma série de regras que têm de ser seguidas, nomeadamente pelas pessoas que estão lá. Daí a importância de serem feitos os planos de parto que devem ser previamente discutidos com o médico, mesmo que não seja aquele que lhe faça o parto, mas pelo menos conheça o terreno onde o parto se vai desenrolar e possa aconselhá-la perante o que pode acontecer.

Estamos a caminho de algo mais consensual porque, apesar de não gostarem da palavra 'violência', os próprios médicos também já perceberam que têm de adequar a sua forma de estar com a grávida. Até porque também não querem ser violentos durante o trabalho de parto para ninguém.

As mulheres estão cada vez mais informadas sobre os seus direitos, nomeadamente apresentando os já referidos planos de parto e estando cientes de conceitos como consentimento informado. Esta mudança de postura é bem encarada pela comunidade médica?

Passámos do oito para o 80, mas não há dúvidas de que isto tinha de acontecer, porque é impensável nos dias de hoje que as coisas não se façam sem consentimentos informados. Os médicos têm de se adaptar a esta realidade de as pessoas terem consciência de serem elas próprias a decidir o seu 'destino' e a forma como querem ser tratadas.

Passámos de uma medicina completamente paternalista para uma medicina em que há uma pessoa que vai ajudar a outra. Os médicos ajudam o outro a curar-se, a tratar-se e a resolver o seu problema. São pessoas a quem lhes é pedida ajuda e se disponibilizam para ajudar. Há, de facto, uma mudança de pensamento e acho que a nova geração não vai ter problemas em relação a isto, faz parte da evolução da sociedade.

Também se tem falado de partos humanizados, com o mínimo de intervenções médicas. Ainda são raros em Portugal? É para aí que deveríamos caminhar?

Mais uma vez, tudo isto deve ser falado ao longo da gestação. Nada contra que uma pessoa tente parir sozinha, mas tem de haver sempre alguma intervenção [médica]. A própria grávida tem de perceber com quem é que tem de trabalhar para lidar de determinada forma, e cada maternidade tem de ter a possibilidade que a grávida deseja para oferecer.

Há fantasias e coisas que se dizem por aí que não correspondem à realidade. Se há hospitais que não permitem a deambulação durante o trabalho de parto, por exemplo, isso não me parece adequado, são os próprios hospitais que têm de mudar, como o que diz respeito à prática médica adequada. É como fazer episiotomias de forma sistemática, também não está de acordo com a prática médica, mas por vezes é necessário fazer uma episiotomia. E a grávida continua a ter um parto humanizado.

A Organização Mundial de Saúde não recomenda a prática da episiotomia [pequeno corte cirúrgico feito no períneo] - que é comum nos hospitais portugueses.

Não recomenda de forma sistemática. Há 40 anos a recomendação era fazer de forma sistemática. Lembro-me perfeitamente que, quando aprendi, era que se devia fazer episiotomia sempre, agora é outra coisa completamente diferente. Chegou-se à conclusão, depois de novos estudos e da forma de olhar para a ciência - a chamada medicina baseada na evidência -, de que fazer episiotomia de forma sistemática não tem qualquer tipo de vantagem. 

Mas há mulheres em que é preciso fazer uma episiotomia, sob pena de não haver situações muito mais complicadas. Há determinadas manobras que obrigam a que se faça episiotomia, como a aplicação de fórceps, por exemplo, porque é certo e sabido que se aplicam quando a cabeça [do bebé] tem dificuldade em sair. E com a aplicação dos fórceps aumenta-se ainda mais os diâmetros e vai rasgar de certeza.

Tudo isto tem de ser explicado, o parto não é sempre linear. Até depois do parto, deve rever-se tudo o que aconteceu para que o casal se sinta elucidado sobre as decisões que tenham sido tomadas. Porque quando nasce o bebé, as pessoas estão sempre deslumbradas, não ouvem nada do que lhes dizemos, mas, dias depois, é bom perceber o que aconteceu, porque aconteceu, porque razão determinadas decisões foram tomadas, para as pessoas se tranquilizarem, perceberem o que aconteceu e aceitarem como a coisa evoluiu.

E isto vale para coisas extremamente graves, como uma morte fetal. O bebé morreu, é uma tragédia. Há o choque, não se percebe o que aconteceu, tem de se fazer o luto. E o casal tem de perceber, tem de lhe ser explicado tudo o que aconteceu.

Como se gerem as expectativas dos pais em caso de morte fetal?

É das coisas mais difíceis, sobretudo quando não são expectáveis. Ter de lidar com um casal a quem isso acontece é extremamente difícil. Tem de haver sensibilidade, dar espaço, tem de se estar presente, dar apoio, não só os médicos, mas os enfermeiros são cruciais nestas situações e os psicólogos também. Antes, não se permitia que se visse o nado morto, neste momento e se o desejarem, os pais ficam com ele algum tempo, podem estar com ele e, de alguma forma, iniciar todo o processo de luto.

A obstetrícia é uma especialidade extremamente exigente, que implica uma ligação direta com a pessoa e a gestão de todas as expectativas [da gestante]

A nível científico, a medicina obstétrica está cada vez mais evoluída.

Temos vindo a evoluir muito, com tudo o que se faz no chamado diagnóstico pré-natal, a capacidade que temos de prever se o bebé vem ou não com patologia, antes passava por técnicas muito evasivas, agora cada vez menos. Do ponto de vista da mãe também temos conhecimentos diferentes em termos dos cálculos de riscos - das pré-eclâmpsias, dos partos pré-termo - o que melhora imensos os cuidados e permite flexionar, cada vez mais, as populações de maior risco durante a gravidez. Ainda não temos capacidade é de prever o que vai acontecer no parto.

Todas estas questões sobre o fecho alternado de maternidades, a falta de incentivos aos profissionais, o caos na urgência e a (falta de) confiança nos profissionais… A que nos leva num futuro próximo?

A Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal é uma sociedade científica, está mais vocacionada para o pensamento de investigação e das boas práticas, não estamos investidos na organização dos cuidados médicos à população de grávidas. Mas, para quem está, a situação é preocupante. É um problema que não se passa só no nosso país, é geral no resto da Europa.

A obstetrícia é uma especialidade médica e de enfermagem extremamente exigente, implica uma ligação direta com a pessoa e de saber gerir todas estas expectativas, a hipótese para deslizar para algo que não se pretenda é alta, quer por razões ditas de violência obstétrica, quer por práticas que podem ser consideradas de negligência, na prática… O que leva a que as pessoas não sintam muita vontade de praticar esta especialidade e isto é preocupante. Porque podemos dizer que cerca de 70% dos partos ocorrem de forma natural e não é necessário nenhum cuidado maior, mas há sempre um número - entre 20 e 30% - em que a situação não é exatamente assim e as coisas não correm bem durante a gravidez ou durante o trabalho de parto.

As urgências de otorrino, de oftalmologia ou dermatologia podem sempre esperar por amanhã, mas uma grávida, uma criança ou um indivíduo politraumatizado não podem esperar, é impossível, tem de se resolver no momento e no instante. É um problema de gestão, do conserto do SNS e do Governo. Fazer partos não é uma arte, é um manejo de situações, que implica treino, conhecimento e experiência.

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