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"Existe subnotificação. Não estamos a encontrar estas mulheres mutiladas"

Raquel Vareda, médica interna de Saúde Pública, é a entrevistada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

"Existe subnotificação. Não estamos a encontrar estas mulheres mutiladas"

O Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF) assinala-se esta segunda-feira, 6 de fevereiro, e o Notícias ao Minuto tentou perceber qual o panorama em Portugal, nomeadamente, o impacto da comunidade médica nestas situações.

Em entrevista ao Vozes ao Minuto, a médica interna de Saúde Pública Raquel Vareda explica que, apesar de a prática não ser realizada em Portugal, este é um problema de todos, assim como sublinha que o número de casos ficam bem distantes daquilo que pode ser a realidade nacional.

Além de notar esta eventual disparidade, a médica, que tirou uma pós-graduação sobre MGF, fala ainda sobre a falta de formação no curso de Medicina, que leva a que, a seu ver, seja provável que muitos médicos que nunca tiveram informação sobre o assunto não sejam capazes de diagnosticar estes casos em Portugal.

Já esta segunda-feira, a Direção-Geral da Saúde publicou um relatório, no qual dá conta de que desde 2014, foram registados um total de 853 casos em Portugal. De acordo com este relatório, o ano passado os profissionais de saúde registaram 190 casos de MGF, entre os quais um deles foi realizado em território nacional.

Claramente não estamos a encontrar estas mulheres mutiladas

Qual é o panorama em Portugal?

Em Portugal, não tínhamos nenhum formato de registo de MGF até 2013. Ou seja, se alguma utente chegasse aos serviços de saúde e identificássemos uma MGF, não havia nenhuma forma de registar isso em nenhuma plataforma – por forma a registar o número de casos.

No entanto, em 2013, a Direção-Geral da Saúde criou uma plataforma [e dados começaram a ser registados a partir do ano seguinte]. Se diagnosticarmos uma MGF, qualquer médico pode registar no nosso sistema médico clínico.

A plataforma para registar os casos já existe, mas corresponde à realidade?

Infelizmente, não. A plataforma, embora exista, nunca foi dinamizada. Ou seja, nunca na minha vida tinha ouvido falar dessa plataforma na faculdade – até fazer formação em MGF. A esmagadora maioria dos colegas não conhece a plataforma. É por isso que, neste momento as unidades de saúde pública estão a tentar fazer projetos de intervenção – também para formar os profissionais de saúde. Existe uma grande subnotificação. Claramente não estamos a encontrar estas mulheres mutiladas. Primeiro, porque mesmo que os colegas diagnostiquem não sabem que existe uma plataforma de notificação - e, depois, também não temos formação em Portugal. Que eu saiba, em nenhuma faculdade de Medicina em Portugal temos formação em MGF. E por isso a maior parte dos colegas não diagnosticarão facilmente uma MGF - porque não sabem o que é.

E também sei que embora nas faculdades de Medicina não exista formação, existe nas faculdades de enfermagem. Temos enfermeiros que podem não saber imenso, mas estão razoavelmente familiarizados.

Como não temos formação no assunto, a maior parte de nós nem se lembraria de que é uma possibilidade

É possível um médico deparar-se com uma MGF e não a reconhecer?

Deve ser o mais provável de acontecer – mas não é só aqui. Não é só em Portugal, é uma realidade do mundo ocidental, especialmente na Europa. Os Estados Unidos já têm formação especializada durante o curso e na Europa existem alguns países, como o Reino Unido, que já introduziu também no currículo do curso de Medicina. Em Portugal, não existe.

É uma realidade geral dos países desenvolvidos porque como nós não fazemos a prática - a maior parte dos países que praticam são africanos e alguns do Médio Oriente –, nunca foi, entre aspas, um problema nosso.

O que mudou?

Há mais de 20 anos que temos muita população migrante, o mundo é um mundo global, e começou a ficar uma preocupação - mas ainda não o suficiente para entrar no nosso currículo. E o problema é que a esmagadora maioria das mutilações, são mais ligeiras.

Há quatro tipo de mutilação, e as que são mais ligeiras são, essencialmente, o que nós chamamos de tipo I e II. Às vezes, são utentes melanodérmicas [tom de pele mais escuro], e na faculdade de Medicina nós aprendemos a ver a genitália feminina em doentes brancas. Por vezes, pode ser que vejamos em utentes melanodérmicas, mas não é assim tão comum. Isso significa que na nossa prática clínica é mais difícil para nós visualizarmos. Não temos tanta experiência nessas utentes. Depois, na prática, se não temos experiência com essas utentes – e sabendo que a genitália pode ser de milhares de formas –, a maior parte dos médicos vai olhar e pensar ‘deve ser uma coisa diferente’. Mesmo para pessoas com muita experiência em MGF, pode ser difícil identificar só pela observação. O diagnóstico implica não só observar alguma coisa diferente, como falar com a utente – fazer uma história clínica. Mas, para isso, era preciso que nos lembrássemos que essas utentes podiam estar mutiladas. Como não temos formação no assunto, a maior parte de nós nem se lembraria de que é uma possibilidade.

Particularmente, nos cuidados de saúde primários – ou seja, com médicos de família e centros de saúde – em zonas como, por exemplo, a Amadora, Almada ou Seixal – onde se concentram mais as populações migrantes que vêm de países onde a prática é realizada muito recorrentemente - às vezes há colegas que prática clínica, começam a deparar-se com as situações, vão ler sobre o assunto e acabam por se informar - e até podem passar algum conhecimento. Em Portugal, em termos de educação a MGF é muito pontual, caso a caso, porque existem pessoas que já tiveram essa experiência. Não temos um pico de formação organizada sobre MGF.

E quanto às mutilações dos tipos III e IV. São mais visíveis ao ponto de ser quase impossível um médico não reconhecer?

Sim, sem dúvida. Os tipos I e II podem ser difíceis de identificar. Os tipos III e IV são facílimos. Qualquer pessoa que não seja médica podia olhar e pensar ‘não é suposto ser assim’.

Quais são as diferenças?

O que acontece no tipo III é que pela forma como é feita a mutilação e depois é suturado o orifício vaginal, na verdade, nem sequer conseguia existir penetração ou o nascimento de um bebé – porque [o orifício] está fechado.

Na maioria dos casos em Portugal [este tipo] não acontece muito porque, a maior parte das utentes com MGF vêm de países onde se praticam, essencialmente, os tipos I e II, como por exemplo, a Guiné-Bissau.

Em Portugal, a maior parte dos migrantes vêm de países como a Guiné ou países como Angola e Moçambique – onde não se pratica MGF - e não de países que praticam os outros tipos.

Quais são esses países?

Somália, Guiné-Conacri, Mali, Sudão, Eritreia – nós não temos assim tanta população destes países. Vamos tendo um ou outro.

Como se distinguem os tipos de mutilação?

Basicamente, o tipo I é tirarem parte ou totalidade do clitóris, o tipo II é tirarem também os pequenos ou os grandes lábios. Já o tipo III é, essencialmente, cortes e suturas para fechar o orifício vaginal. O tipo IV são todos os outros tipos de mutilações que são feitas contra a vontade da mulher ou da criança, e que incluem queimar nos órgãos ou colocar piercings – são mutilações que podem ser variadas, e podem ser nos órgãos genitais ou coxas. Pode também ser uma forma de marcar uma mulher para determinado homem. Pode ser muito grave ou não muito grave, mas já não é uma coisa muito específica. É, basicamente, tudo o resto.

Depende de todos nós eliminar esta prática. Sem dúvida que o médico vai ser a porta de entrada para a maior parte destas crianças e mulheres – mas não só

Qual é o país que se destaca mais em termos de medidas ou evolução no combate à MGF?

No território europeu, quem está mais à frente é o Reino Unido, sem dúvida. O Reino Unido tem muitos migrantes da Somália, que é onde mais se pratica MGF. Sabemos lá as mulheres dirigem-se aos serviços de saúde para serem, entre aspas, abertas, porque não conseguem ter relações sexuais com o marido ou não conseguem dar à luz. Em Portugal, nós temos alguns casos de MGF registados, e imagino nos tipos III e IV, a maior parte dessas mulheres seja identificada porque estamos a falar de uma grande limitação para a vida da mulher em termos de sexualidade.

Ao contrário de Portugal, no Reino Unido é obrigatório – e criminalizado – um médico não identificar uma MGF. Começaram a ser identificados tantos casos, que criaram mecanismos legais, para efetivamente combater esta prática.

Em Portugal, existe por isso aqui uma lacuna?

Sim. A reconstrução do clitóris nem se faz em Portugal. Se alguém em Portugal quisesse reconstruir o clitóris, a nossa única solução era encaminhá-la para o Reino Unido ou França – obviamente, a custo próprio, porque o Serviço Nacional de Saúde não cobre este tipo de custos.

É possível fazer esse tipo de reconstrução a 100%?

Não. Embora o tipo III seja o mais agressivo – e com mais com mais consequências para a vida da mulher – acaba por ser, paradoxalmente, o mais fácil de resolver, porque trata-se de suturar. E isso conseguimos fazer. Os profissionais de Ginecologia e Obstetrícia são habilitados a fazer – sei de profissionais que sabem fazer essa cirurgia, pelo menos, na área de Lisboa. Não sei quanto ao resto do país.

No entanto, no que diz respeito à reconstrução do clitóris – que e um órgão com muitas terminações nervosas, responsável pelo prazer sexual –, ela pode ser feita, mas, que eu saiba, a reconstrução só tem eficácia em ⅓ dos casos. Existe o risco de correr mal e de a utente ficar com alguns problemas nervosos na região genital. Nem sequer é uma cirurgia que se goste muito de fazer. Esta reconstrução não é boa.

Já se deparou com algum caso de MGF?

Já conheci vários casos com o trabalho na unidade de saúde pública e nesta temática em específico. Nunca observei clinicamente uma utente com MGF – conversei com ela, mas nunca foi minha utente.

A comunidade médica é fundamental para a denúncia destes casos?

Claro que sim. A MGF é um crime em Portugal – uma ofensa grave à a integridade física, punível com pensa de prisão de dois a dez anos. E é aplicável mesmo que seja feita noutro país. Ou seja, se é uma criança que está numa escola portuguesa que é levada para a terra natal dos pais ou avós, por exemplo, para a Guiné-Bissau, e é praticada a mutilação lá, e a criança volta, as identidades responsáveis por isto são criminalizadas à lei portuguesa, mesmo o crime sendo praticado lá. Nisso, a lei portuguesa é, ao contrário de outros países, muito bem resolvida e clara – e isto diz respeito também aos atos preparatórios. Se se souber que os pais estão a pensar levar a criança para a terra natal para ser mutilada, mesmo que não tenha acontecido, os atos preparatórios podem ser considerados crime, com pena de até três anos.

Em 2015, a MGF passou a ser considerada um crime público. Isto significa que não depende da própria criança ou mulher, mas aos profissionais de saúde, e outras pessoas [atuar]. É obrigatório nós reportarmos ao Ministério Público. É como o crime de violência doméstica – se um vizinho tiver conhecimento.

Depende de todos nós eliminar esta prática. Sem dúvida que o médico vai ser a porta de entrada para a maior parte destas crianças e mulheres – mas não só.

Leia Também: Registados 190 casos de mutilação genital feminina em 2022

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