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Baixa literacia em saúde? "Mais idas às urgências e mais hospitalizações"

Cristina Vaz de Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), é a convidada desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

Baixa literacia em saúde? "Mais idas às urgências e mais hospitalizações"
Notícias ao Minuto

09:15 - 31/01/23 por Ema Gil Pires

País Entrevista

Nos últimos tempos, a sociedade portuguesa tem vindo a ser confrontada com múltiplos relatos que dão conta da existência de extensas filas de espera nos serviços de urgência de todo o país. Os médicos e diretores desses serviços têm, muitas vezes, justificado a ocorrência com o facto de existirem muitas pessoas que se deslocam aos hospitais sem terem a necessidade efetiva de receber assistência médica urgente.

Como explicou ao Notícias ao Minuto Cristina Vaz de Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), esta é uma das consequências mais evidentes da baixa literacia em saúde dos portugueses, uma realidade que afeta cerca de metade da população.

“Isto significa que mais ou menos cinco milhões de pessoas não sabiam [em 2016] aceder aos serviços de saúde, compreender o mundo da saúde e os recursos de saúde, nem mesmo utilizá-los”, explicou o principal rosto da SPLS, num mês em que se celebra o primeiro aniversário desta associação sem fins lucrativos.

Na perspetiva de Cristina Vaz de Almeida, “a questão da literacia em saúde devia começar a ser trabalhada nas escolas, desde a mais tenra idade”, na medida em que uma baixa literacia em saúde acaba por conduzir a “mais idas às urgências e mais hospitalizações”.

Em Portugal, concluiu-se que 50% da população portuguesa tinha baixa literacia em saúde

A Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde está agora, neste mês de janeiro, a celebrar o primeiro ano desde a sua criação. O que motivou a criação da mesma?

Em 2016, houve um estudo que se debruçou sobre o nível de literacia em saúde dos portugueses, coordenado, por um lado, pelo ISCTE, através da Fundação Calouste Gulbenkian, e por outro pela Escola Nacional de Saúde Pública. Em causa está um estudo que veio evidenciar o que um outro estudo, da autoria de Kristine Sørensen, em 2012, tinha já demonstrado: que 50% da população europeia tinha baixa literacia em saúde.

Em Portugal, e de uma forma paralela, concluiu-se que também 50% da população portuguesa tinha baixa literacia em saúde. Isto significa que mais ou menos cinco milhões de pessoas não sabiam aceder aos serviços de saúde, compreender o mundo da saúde e os recursos de saúde, nem mesmo utilizá-los. Mas a verdade é que, desde então, o nível de literacia em saúde em Portugal tem estado a evoluir, portanto estamos a ir no bom caminho.

Portanto, não está aqui em causa uma tendência que se verifica exclusivamente em Portugal? A mesma pode também ser identificada a nível global?

É uma tendência europeia e uma tendência internacional. Nos Estados Unidos, o nível de literacia em saúde também é baixíssimo, tal como no Canadá. Estamos, portanto, perante aquilo que é, digamos, um fenómeno mundial. E o mesmo também acontece na Europa. Porém, há alguns países, como os países nórdicos e os Países Baixos, que têm níveis um pouco mais elevados. E, por exemplo, nos Países Baixos existe um fenómeno que não acontece no resto da Europa, pois à medida que a idade avança, a literacia dos indivíduos também aumenta. Em Portugal e no resto da Europa, contrariamente, à medida que a idade avança, o nível de literacia em saúde baixa. Isso pode ter a ver com os fenómenos da participação social e da atividade física, por exemplo.

Mas ao olhar para este panorama, em que as pessoas, realmente, não acedem, não compreendem e não sabem usar os recursos de saúde, tal significa mais idas às urgências e mais hospitalizações. Em 2012, um outro estudo veio mostrar que há mais mortes prematuras, porque as pessoas quando não tomam boas decisões em saúde, estão em risco de morrer prematuramente - além do recurso muito grande às urgências, além de terem uma autoperceção má relativamente à saúde. Ou seja, há uma série de ‘handicaps’ e uma série de problemas relacionados com a literacia em saúde.

São estas as temáticas em que se nota que existe uma maior desinformação por parte da sociedade portuguesa no que diz respeito à saúde?

Passa por uma grande falta de noção do processo de ida às urgências - uma pessoa não sabe quando deve ir ou não ir, não tem essa informação. Mas a questão da toma da medicação também é um problema, visto que as pessoas tomam, muitas vezes, antibióticos só porque a vizinha ou o tio diz. E esta questão vai ser um grande problema no futuro, porque quando as pessoas precisarem mesmo de tomar antibiótico, porque têm uma bactéria ou uma doença qualquer, esse antibiótico já não vai fazer efeito porque as pessoas já o tomaram de forma não controlada. E a segurança do medicamento é outro dos problemas neste âmbito, e por isso nós também já fizemos um protocolo com a Ordem dos Farmacêuticos para desenvolvermos precisamente esta questão.

E depois há também uma outra questão pois, muitas vezes, os idosos, com a confiança que têm num produto de marca e como depois não há reconciliação terapêutica, acabam por receitar-lhes o genérico e eles tomam o medicamento de marca em conjunto com o genérico. Isto dá um nível de problemas gravíssimos. E, por outro lado, sabemos ainda que a carência económica, muitas vezes, faz com que as pessoas, sobretudo as mais velhas, que não tenham o dinheiro para comprar o conjunto de medicamentos que lhes é receitado, acabam por tomar decisões e por escolher, elas próprias, os medicamentos que vão comprar e aqueles que não, com base nos que pensam que lhes faz melhor ou que é mais importante, e de forma não acompanhada.

A questão da literacia em saúde devia começar a ser trabalhada nas escolas, desde a mais tenra idade

Destacou que 50% das pessoas em Portugal tem uma baixa literacia em saúde. O que contribuiu para esse facto?

A verdade é que a questão da literacia em saúde devia começar a ser trabalhada nas escolas, desde a mais tenra idade. Porque uma criança que aprende a parar no sinal vermelho, também aprende a saber o que é bom para a sua saúde, o que deve comer e a atividade física que deve fazer. Aliás, a atividade física é preditora de bem-estar e, também, de melhor literacia em saúde. Há aqui, portanto, um conjunto de requisitos que precisam de começar a ser trabalhados na primeira infância. Isso é essencial. Isto porque nós conseguimos aprender muito mais facilmente quando somos pequenos do que quando somos adultos.

E, então, o que pode ser feito para reverter essa baixa literacia em saúde na sociedade portuguesa, num contexto, também ele, caracterizado por um grande envelhecimento da população?

Em relação à população mais velha, é preciso promover a capacitação dos profissionais em algumas técnicas de literacia em saúde, no sentido de que as competências comunicativas desses profissionais consigam fazer a ponte com estas pessoas, para que a pessoa possa aprender. O que nós queremos é, de facto, melhorar este nível de literacia em saúde na população, também através da capacitação dos próprios profissionais de saúde. Porque eles, muitas vezes, na relação terapêutica, precisam de usar uma linguagem mais acessível. Isto não quer dizer que não usem o jargão técnico e uma linguagem complexa, têm é de traduzi-la.

Porque quando nós falamos em literacia em saúde, falamos de competências. E isso passa por dar conhecimento, ou seja, de forma a que as pessoas passem a saber o que precisam de fazer em questões de saúde. Depois as pessoas têm, também, de ter a capacidade, ou seja, temos de garantir que a pessoa sabe fazer aquilo que nós lhe pedimos. O médico pode dizer a um idoso para ele fazer atividade física no fim de semana - mas o que é isso da atividade física, se a pessoa quase nem consegue andar? Quanto mais claramente isso é explicado, melhor as pessoas entendem.  

Tal como o António Damásio dizia, há uns anos, e outros estudiosos dizem também, nós captamos o mundo exterior através dos nossos sentidos: dos nossos olhos, dos nossos ouvidos, do nosso tato. Quando nós não conseguimos fazer a representação simbólica do mundo exterior que nos cerca, é uma cacofonia no cérebro. Se alguém lhe disser uma palavra em chinês, o seu cérebro não consegue captar esse significado, porque é chinês. Agora imagine o que sucede com uma pessoa que não entende bem uma linguagem de saúde, também ela uma linguagem complexa. Portanto, não havendo essa representação mental, as pessoas não fixam a mensagem.

Portanto, considera que a clareza da comunicação é, também, determinante neste âmbito?

A clareza da comunicação é essencial. E, depois, também o é a integração de cuidados entre a saúde e o social. Até porque a quem é que, num país carenciado, as pessoas recorrem, além da saúde? Aos serviços sociais. Portanto, o social tem de fazer uma ponte efetiva com a saúde nesta integração de cuidados. Os próprios assistentes sociais têm de ter competências de literacia em saúde para poder ajudar a pessoa a navegar no sistema. 

Neste âmbito há, também, uma série de outras forças da sociedade, como as associações de doentes, ou desportivas e culturais, ou as universidades seniores, que todas elas podem fomentar aprendizagens, em comunidade, sobre o que é a literacia em saúde. Houve a transferência de competências relacionadas com a saúde para as autarquias, no ano passado. Em causa está uma apropriação da saúde e da promoção da saúde pelas autarquias, que ainda por cima têm os espaços para as pessoas fazerem atividade física, e pequenos autocarros que podem levar as pessoas até aos centros de saúde, aos hospitais e às farmácias, ou o que quer que seja. Ou seja, a própria comunidade tem de se preparar para, também, ajudar o cidadão de forma a que ele incremente o seu nível de literacia em saúde.

Não é só a linguagem que interessa para os profissionais de saúde, mas também as questões de interação com os pacientes

E já no que diz respeito, nomeadamente, às pessoas com deficiência? É necessário dotar os profissionais de saúde de aprendizagens específicas a esse respeito?

Nós temos de ter um olhar muito mais cuidadoso sobre as pessoas com deficiências. Pois, muitas vezes, uma pessoa paraplégica ou tetraplégica vai fazer um raio-X e não existe uma grua para fazer a transferência da cadeira de rodas para a marquesa - e, nesses casos, a pessoa tem de ser puxada e, muitas vezes, pode até partir uma perna porque não se sabe fazer essa transferência. Ou quando, por vezes, os profissionais de saúde se sentem inibidos ao falar com uma pessoa que tenha paralisia cerebral. Portanto, não é só a linguagem que interessa para os profissionais de saúde, mas também estas questões de interação com os pacientes. E isto tudo são aprendizagens importantes.

Num contexto como aquele que temos vindo aqui a descrever, onde entra a internet e a sociedade digital? Foram mais as vantagens ou os desafios derivados das mesmas para a literacia em saúde?

O digital veio para ficar e nós temos é de garantir que não há iniquidades em saúde, ou seja, que as pessoas, à partida, conseguem aceder à mesma. A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 2018, um estudo chamado ‘Ageing’, que incentiva os idosos a usarem o telemóvel para registar a medicação e para apontar as horas das refeições e em que devem beber água, por exemplo, de forma a relembrá-los de que têm de fazê-lo. E isso deve ser incentivado, nomeadamente, pelas universidades seniores, o saber trabalhar com o telemóvel. Eu já falei com muitos idosos que registam no telemóvel, por exemplo, aquilo que o médico lhes diz. E depois vão relendo aquilo que lhes foi dito. Por isso, é evidente que esta comunicação deve ser cuidada e que é preciso que o próprio profissional de saúde também incentive isso. Porque uma pessoa, quando está numa consulta, senta-se e ouve apenas -  e nós sabemos que a nossa memória é, essencialmente, visual. Ora, se eu apenas oiço, eu não vou reter a mensagem. Como a literacia trabalha a memória, e sabendo que existem memórias de curto prazo e de longo prazo, é importante ter em conta que para haver memória de curto prazo, mais estável, a pessoa tem, pelo menos, de levar um papel onde possa escrever. Isso tem a ver com o processo de captação de informação. 

Há, também, que ter aqui em conta a aplicação dos métodos de ‘Teach-back’ e de ‘Chunk & Check’. No primeiro processo, o profissional de saúde fala com a pessoa e depois pede-lhe para que ela repita a mensagem, para garantir que se fez compreender. Na segunda das técnicas citadas, a premissa passa por não dar ‘de rompante’ 300 orientações à pessoa, tal como acontece por vezes nos folhetos. Até porque a memória da pessoa não consegue fixar. Aqui, o importante é transmitir pequenos blocos de informação e, ao garantir que a pessoa já sabe essas primeiras informações, avançar-se para outras.

Considero que a desinformação também resultou um pouco da falta de gestão de comunicação de crise no início da pandemia

Durante a pandemia de Covid-19, verificou-se a criação de algumas páginas, online, geridas por aparentes médicos e por via das quais se deu a propagação de algumas ‘fake news’. O que pode ter potenciado essa realidade?

Informação credível e desinformação credível, ou seja, o fenómeno da captação de interesse, depende muito da perceção humana em relação àquilo que é apetecível. Porque as pessoas gostam de contraste e, normalmente, do ‘sangue, suor e lágrimas’. Ou seja, tudo o que suscita o drama. Mas eu considero que a desinformação também resultou um pouco da falta de gestão de comunicação de crise no início da pandemia. Estávamos no início da pandemia, pelo que também era normal que tal acontecesse. Mas considero que algumas entidades que já deveriam ter gabinetes de comunicação de crise e tentar dar uma informação contínua, credível e que fosse linear ao longo do tempo. Ou seja, não era preciso dar toda a informação, mas sim que a informação sobre o tema saísse regularmente. 

Mas considera que a falta de literacia em saúde também potenciou o surgimento e desenvolvimento destes movimentos de ‘fake news’?

Evidentemente. E, aí, os media oficiais também podem ajudar na reposição, às vezes, da credibilidade, visto que são sempre boas forças na comunicação para os grandes públicos. Agora, a associação dos media a alguns profissionais e personalidades do setor também deveria ter existido. Aproveitou-se uma disrupção, que foi a pandemia, aquilo que Nassim Taleb descreveu como se tratando de um ‘Cisne Negro’, ou seja, um fenómeno que acontece subitamente, sem ninguém esperar, mas que depois quando se vai a analisar, afinal já tinha acontecido, em 2013, um princípio de pandemia. Mas isso depois gera tais fenómenos de extrapolação, de excesso de comentários e de frentes diversas. 

E por isso a comunicação de crise é essencial, e os media também deviam ter tido esse papel, quase de controlo da informação. Estavam ansiosos por dar muita informação, mas demasiada informação acaba, por vezes, por provocar também desinformação. Considero ainda que os media também precisam de ser capacitados em relação ao trabalho sobre a comunicação de crise, porque isso também se exige. Não estou a falar aqui de comunicação de guerra, mas quando é preciso ajudar a população a compreender um determinado fenómeno, porque os media também têm esse papel educativo, não existe, de facto, melhor do que eles e as entidades especializadas nessa área - mas, para isso, têm de trabalhar em conjunto. 

Diria então que muitas das situações que foram reportadas durante esses meses de pandemia - urgências sobrelotadas, linha SNS24 sem capacidade de resposta - foram potenciadas pela baixa literacia em saúde existente no país e, também, por algum desconhecimento das autoridades de saúde sobre como fazer face a toda a situação? O que era exigido das mesmas num momento com este?

Sem dúvida. Eu acho que as autoridades de saúde, como é exemplo a Direção-Geral da Saúde (DGS), têm de trabalhar e articular, não só, com os media, com as personalidades científicas, com as comunidades e, sobretudo, de uma forma aberta e proativa. Isto é responsividade, quer dizer, é a capacidade destas entidades que até controlam, de uma certa forma, o que é saúde e os temas relacionados com a mesma, de se interrelacionarem muito mais com as forças da sociedade - com as sociedades científicas, com as associações de doentes. É muito importante trabalhar com as associações de doentes, que têm uma grande força, porque reúnem muita matéria, não só sobre a doença, como também sobre o perfil das pessoas e as suas necessidades. E é também essencial trabalhar com as comunidades e com as autarquias mas, claro está, também que elas trabalhem connosco, com as sociedades científicas e com a academia. Por exemplo, todas as escolas são importantes - não só as escolas da saúde, como todas as outras, são importantes também para estes princípios de saúde e de literacia em saúde. Isto não é assim tão difícil como se pensa, não é irrealista. Eu acho que nestes projetos práticos é preciso fazer parcerias entre todas as partes de que falei, em pequenos grupos de trabalho, para desenvolvimento de determinados projetos, de modo a que estas equipas reúnam de forma regular - para a promoção da saúde pública, para os cuidados de saúde, ou para a prevenção da doença. E depois, em Portugal, acontece uma outra coisa, que é: o orçamento para a promoção da saúde é baixíssimo. 

Defende, então, que é preciso um maior investimento das autoridades portuguesas a esse nível da promoção da saúde?

Sim. O investimento na promoção da saúde é essencial. Nós temos agora uma secretária de Estado da Promoção da Saúde, a Drª. Margarida Tavares, e a SPLS já pediu uma audiência com ela. Estamos agora à espera da mesma e, na nossa ótica, é muito importante termos uma Secretaria de Estado para a Promoção da Saúde. Vamos ver o que resulta daqui.. Estou com muita expectativa em relação à colaboração que vamos ter com esta Secretaria de Estado. Nós e outros stakeholders, claro.

Muitas vezes, as pessoas não precisam de medicação, mas sim de outro tipo de cuidado

Ainda relativamente ao tema da sobrelotação das urgências hospitalares, que tipo de estratégias de literacia em saúde podiam ser utilizadas para combater este problema?

Sabemos que há idosos que vão seis, sete ou oito vezes consecutivas às urgências. Deixa de ser um serviço pontual. E são muitos os médicos que dizem, efetivamente, que as pessoas vão lá para conversar, e não porque estão efetivamente doentes. Isto coloca algumas questões, até mesmo a nível de estratégia de políticas públicas, que é: se os hospitais têm esta lista de idosos que vêm regularmente às urgências, então por que razão não vamos trabalhar esta lista de idosos, no sentido de criar aqui um serviço telefónico de atendimento, quase uma prescrição social, em que estas pessoas recebem um telefonema porque, na verdade, aquilo de que precisam é de conexão e de apoio social? Existem tantos serviços de atendimento, tantos serviços telefónicos, que bem se podia criar um serviço para estes casos que estão mais do que referenciados. Portugal tem muito isolamento, tem muita solidão. E isto também é literacia em saúde: é olhar para o problema mas, depois, tentar perceber que solução existe para aquele tipo de problema em concreto.  

E aí surge, também, a questão da prescrição social, que está tão bem implementada em Inglaterra. É que, muitas vezes, as pessoas não precisam de medicação, mas sim de outro tipo de cuidado. Um idoso que precise de companhia, por exemplo, deve ser encaminhado para o serviço de cultura da comunidade ou para aulas de hidroginástica, por exemplo. Isto é prescrição social e a mesma está, claro, ligada à saúde, mas com esta vertente da integração dos cuidados. Eu penso que quando se fizer melhor esta ligação, entre o social e a saúde, e com investimento sobre o nível de literacia em saúde, com grupos de trabalhos pequenos e que juntem a parte multidisciplinar, tudo funcionará melhor. Os próprios Objetivos de Desenvolvimento Sustentável vêm dizer que nós precisamos de trabalhar em parceria e, a esse nível, os media também são essenciais.  

Muito se tem discutido, em Portugal, sobre a criação de cursos de Medicina em universidades privadas. Considera que é uma medida que faz sentido ou que, por outro lado, vai ter efeitos nefastos para a qualidade da prestação de cuidados de saúde em Portugal?

A medicina mexe com a vida humana e é preciso ter muito cuidado com essa questão. A SPSL tem algumas reservas quanto a isso e defende que tem de haver garantia absoluta da qualidade do ensino. Isto é válido para todas as áreas da saúde, da medicina à enfermagem: tem de haver uma qualidade absoluta do produtor de saúde. Através das práticas que os alunos de medicina têm, dos anos de internato e de especialidade, tem de haver aqui uma garantia de boa preparação dos profissionais. Isto porque quando o médico sai de uma faculdade, tem nas suas mãos vidas humanas. E essas vidas humanas têm de ser tratadas adequadamente. Não quer dizer que as universidades privadas possam ter falta de qualidade, não é isso que está em questão. Mas tem de se garantir que há uma formação de elevadíssima qualidade, tal como há nas escolas públicas.

A questão da saúde mental tem estado bastante na ordem do dia. Diria que neste contexto de saída de uma pandemia este se trata de um tema que deve, cada vez mais, ser visto como prioritário para a sociedade como um todo, bem como no contexto das próprias empresas e organizações? Há ainda muito trabalho a fazer neste âmbito?

Estamos no Ano Europeu das Competências e as tais competências que a União Europeia nos apresentou foram o desenvolvimento das competências laborais, para um aumento da produtividade. Ora, mas não se pode aumentar a produtividade se a pessoa estiver com a saúde mental debilitada. Ou seja, a intervenção tem de ser a montante. As competências afetivas, cognitivas e de bem-estar têm de ser asseguradas, para depois poder haver outras competências, laborais, profissionais, técnicas e tecnológicas. Ninguém consegue desenvolver as competências se a base comportamental de afetividade, de cognição, de relação com o mundo e de bem-estar não estiverem asseguradas. As organizações têm a responsabilidade de ter lucro e de fomentar a produtividade, não há dúvidas disso. Porém, para fomentar a produtividade, é preciso também fomentar o bem-estar do indivíduo nas organizações.

Num Ano Europeu das Competências, era importantíssimo que se tivessem integrado essas competências relacionais. Tenho pena que a União Europeia não tenha focado esse tema. Nas escolas, 30% dos alunos têm ansiedade, e há até alguns casos de depressão. Numa altura em que saímos de uma pandemia debilitados, desorientados em relação àquilo que o mundo também espera de nós, após momentos de confinamento e de afastamento do mundo real, tudo isto gera aqui algumas questões mentais e relacionais.

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