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Ser trans em Portugal. O "preconceito" e a "barreira difícil" do emprego

Sabrine Mello é o rosto de um novo restaurante em Lisboa e uma mulher transexual que relata as dificuldades e preconceito ainda existentes na sociedade.

Ser trans em Portugal. O "preconceito" e a "barreira difícil" do emprego

Chama-se Sabrine Mello, é brasileira e vive há seis anos em Portugal. É o rosto do novo projeto Glitter's Gallery, em Lisboa, mas também uma mulher transexual que sentiu na pele o preconceito que ainda existe. 

Em conversa com o Notícias ao Minuto,  a antiga cabeleireira que persistiu em busca do seu sonho relata algumas das suas vivências marcadas por muita luta. 

Sabrine trabalhava com noivas em Ilhabela, no interior do Brasil, e decidiu rumar a Portugal, de malas e bagagens, depois de um desgosto amoroso e de uma necessidade de mudar de vida.

"Estava farta de tudo e estava no computador e vi passagens para o Porto e Lisboa - se não me engano eram quatro dias - e eu falei ‘estou farta disto, vou conhecer’", conta. E veio, acabando por decidir ficar em Lisboa. 

Eu não falava, não comunicava com ninguém, só fazia o meu trabalho e ia para casa para evitar a fadiga de ter que explicar alguma coisa… porque eu acho que não temos de explicar nada para ninguém

Sabrine queria manter-se na área e procurou trabalho em cabeleireiros. Arranjou um emprego enquanto cabeleireira em Algés, mas revela que a dúvida e preconceito acompanharam-na desde logo.

"Cheguei e fiz a entrevista. A dona e o dono me olharam meio estranho, mas ninguém comentou nada, acho que ficaram com uma dúvida gigantesca sobre o meu género, mas fui trabalhar", recorda. 

Os olhares levaram-na a resguardar-se e a falar pouco, cingindo-se ao trabalho. "Eu percebi que estavam a desconfiar de alguma coisa, então optei por não falar. Eu não falava, não comunicava com ninguém, só fazia o meu trabalho e ia para casa para evitar a fadiga de ter que explicar alguma coisa… porque eu acho que não temos de explicar nada para ninguém."

A dúvida acabou por levar a dona do espaço a questioná-la e Sabrine viu-se obrigada a ter de se explicar. 

"Após um mês, a dona chegou e disse ‘preciso fazer uma pergunta, é muito invasiva, mas pronto, eu estou a perceber [a situação] com o meu marido, as clientes estão comentando e eu queria saber se isso é verdade ou não, porque se isso for verdade não podemos ficar com você’", relembra. A brasileira explicou a sua situação e conseguiu manter o emprego, mas viria a sair mais tarde "por outros motivos". 

Foi então que a antiga cabeleireira conheceu outro mundo: o Bairro Alto.  

"Comecei a trabalhar em bares como 'hostess' e foi quando eu me encontrei. Pensei ‘acho que quero trabalhar com o público, com pessoas’, mesmo que ouvisse alguma ofensa na noite, mas eu estava muito habituada", relata. 

O preconceito não a fez desistir e hoje admite já não passar por muito, seja porque já está habituada, seja porque se tornou muito conhecida na noite por conta do seu trabalho enquanto hostess e também enquanto 'influencer' no Instagram, onde fala abertamente sobre tudo. 

"A grande maioria das pessoas já me conhece, principalmente no meio LGBTQIA+, mas às vezes num lugar ou outro que eu vá que seja hetero, que surja alguma paquera [tentativa de engate], alguma coisa, e a pessoa tem alguma dúvida e me pergunte, eu sou super clara, eu esclareço as coisas porque eu não devo nada a ninguém", explica. 

Apesar de assumir não sentir tanto preconceito quanto "no início", a brasileira reconhece o sofrimento que muitos transexuais enfrentam devido à sociedade não aceitar a diferença.

Queria que as pessoas entendessem que não é um género que faz alguém, nunca será

Traumas e terapia: "Não é um género que faz alguém, nunca será"

Abordando os comentários e ofensas pelos quais passam estas pessoas, Sabrine afirma que muitos acabam por desenvolver "transtornos quase irreversíveis" e admite ter de fazer terapia. 

"Queria que as pessoas entendessem que não é um género que faz alguém, nunca será. Eu entendo que a sociedade seja um pouco machista, enfim, milhões de classificações, só que as pessoas pagam muito [por isso], porque atrás do género existe um ser humano que vai criando camadas e camadas de sofrimento que depois não se consegue superar", alerta. 

"A sociedade não dá oportunidade para pessoas assim"

"O meio transexual e travesti mundial, a grande maioria das pessoas transexuais são marginalizadas e garotas de programa - são prostitutas. A sociedade não dá oportunidade para pessoas assim", começa por abordar mencionando, por exemplo, a dificuldade, que a mesma experienciou, em arranjar emprego.  

Sabrine revela que, no início, foi complicado. "As pessoas julgavam-me muito, recebi 15 a 20 euros para trabalhar a noite inteira a chamar pessoas [para os bares] e eu não tinha opção", conta. "Foi muito difícil, mas fui conquistando público, trabalhando em vários sítios, várias festas e hoje trabalho num lugar que representa uma marca incrível", acrescenta. 

Já cheguei [em entrevistas de emprego], estava qualificada para aquilo tudo, mas por causa do meu género, não conseguia vaga. Portugal é um país super preconceituoso nesse sentido

Uma entrevista de emprego era muitas vezes uma dor de cabeça, não porque não tivesse qualificações, mas devido a ser uma mulher transexual.

"Já cheguei [em entrevistas de emprego], estava qualificada para aquilo tudo, mas por causa do meu género, não conseguia vaga. Portugal é um país super preconceituoso nesse sentido. Talvez as pessoas que não estejam envolvidas nesta bolha não entendam muito o que é o preconceito, o que é querer trabalhar e não conseguir por conta do seu género. A culpa não é minha de não ser qualificada, a culpa é do seu género. Você não arranja trabalho por culpa do seu género, por ser assim ou assado, por ter trejeitos, porque é uma pessoa efeminada e isso acontece muito", lamenta.

"Uma barreira que é muito difícil de ser quebrada" 

Sabrine conta que "pelo facto de ser transexual, qualquer emprego que consiga na sua vida, na sua caminhada, tem de mostrar que é muito melhor além daquilo que é só pelo facto de ser transexual". 

“Infelizmente, eu entendo, mas não aceito. É muito sofrido para quem passa por isso. Eu não falo simplesmente em Portugal, falo também no mundo. Há muito preconceito", conta, mencionando não só o género, mas por outras questões que não se enquadrem no padrão da sociedade, seja por ser uma minoria étnica, ou por estar acima do peso. 

"É uma barreira que é muito difícil de ser quebrada", sublinha. Sabrine fala ainda dos empregos que são dados a pessoas transexuais e de como a ideia de que as empresas de teleperformance são mais acolhedoras é uma falácia. “A pessoa não tem contacto direto visual com o funcionário, por isso as empresas de teleperformance são conhecidas por serem mais acolhedoras para este género, e não é verdade. Elas contratam porque as pessoas não veem [o funcionário]", explica. 

A brasileira revela que quando se apresenta "nos locais, gera uma certa dúvida, um certo preconceito, um certo misticismo sexual, porque o corpo das pessoas transexuais é um corpo desejado". 

No supermercado, vê uma pessoa transexual na caixa, ou numa loja, ou quando vai viajar a hospedeira é transexual?

Falta de oportunidades que leva muitos à prostituição

A hostess começa por abordar as dificuldades que muitas pessoas transexuais enfrentam para conseguir um trabalho, e que isso leva muitas vezes a recorrer à prostituição para sobreviver. 

"É o único trabalho para onde a sociedade empurra estas pessoas porque não há [oportunidades]", começa por apontar. "Esta classe é completamente excluída da sociedade, porque não resta nada a não ser a prostituição para estas pessoas", continua.

Por exemplo, no “supermercado, vê uma pessoa transexual na caixa, ou numa loja, ou quando vai viajar a hospedeira é transexual?", questiona, indicando que não vê ou que isso é muito raro. 

"Vou ser sincera, há uma grande maioria que também gosta, também se habitua, por culpa do dinheiro, do trabalho, não falo só de transexuais e travestis, há mulheres que fazem parte desta profissão que também gostam do que fazer e está tudo bem, cada um tem o livre-arbítrio para fazer o que quiser. Mas se pararmos para pensar, só existe este tipo de trabalho porque existe procura e 99% são homens casados, de famílias tradicionais, que procuram aquele tipo de serviço. É a curiosidade, mas isso soa bem? Ser um objeto de curiosidade para as outras pessoas?", questiona a brasileira. 

"Não haveria prostituição de transexuais e travestis se não houvesse procura. Não tinha como ser garota de programa se não houvesse procura", conclui reforçando que a sociedade não aceita, mas esconde o 'desejo' pelo desconhecido.

O estereótipo

Passando para o estereótipo que, segundo Sabrine Mello, muitos transexuais sentem, de que por se ser transexual se trabalha como "garota de programa", a mulher afirma que é "muito ruim, muito desgastante".

"Eu não tenho nada contra, mas por ser uma mulher trans, eu passo muito por isso. Por trabalhar com a Internet, recebo mensagens e mensagens de homens, de mulheres, casais, a perguntar se saio, se faço convívio… porquê? Porque colocam tudo na mesma bolha. Pelo facto de ser transexual, então eu tenho de ser garota de programa", explica acrescentando sentir esse preconceito mesmo ao sair à noite quando, ao revelar o seu género, a pessoa rapidamente responde que não paga por sexo. "Já me aconteceu inúmeras vezes", desabafa. 

Não desistir dos sonhos

Hoje, enquanto rosto do Glitter’s Gallery, em Lisboa, Sabrine assume-se como uma mulher realizada. “Quando tudo aconteceu, pensei ‘ai, sou a cara de um projeto, depois de tudo o que passei, depois de seis longos anos de preconceito’…", desabafa de sorriso no rosto. 

"Por isso, eu falo que as pessoas nunca devem desistir de sonhos. Se tem algum sonho, nunca deve desistir. Eu já levei muitos ‘nãos’, milhares de ‘nãos’", conta mostrando-se feliz com o que alcançou.

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