"São áreas que eu quero trabalhar no museu em 2022. A autodeterminação de género e LGBTI [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexuais], e educação antirracista são matérias muito presentes, fenómenos com origens e causas antigas, bastante profundas, e ainda hoje têm sintomas e feridas abertas na sociedade portuguesa", sublinhou a responsável numa entrevista à agência Lusa.
A diretora do Museu do Aljube, em Lisboa, respondia desta forma à questão da importância que a instituição - que preserva e divulga a memória da resistência antifascista - pode ter na promoção dos valores democráticos numa altura em que se assiste a uma tendência crescente da atividade de movimentos de extrema-direita na Europa.
Para Rita Rato, deputada do Partido Comunista Português (PCP) à Assembleia da República durante dez anos, a violência do regime do Estado Novo em Portugal "está para lá do individual" e deixou "marcas profundas e feridas ainda abertas", com as quais se podem "fazer pontes" com as resistências de hoje.
"Essas pontes são muito interessantes e abrangem as questões do assédio, dos direitos das mulheres, do reconhecimento da prática das múltiplas formas de discriminação e violência contra as mulheres, e da comunidade LGBTI", apontou.
Há um ano a dirigir do Museu do Aljube - instalado em 2015 num edifício junto à Sé de Lisboa onde funcionou uma prisão que recebeu milhares de presos políticos - Rita Rato sustenta que, mesmo na época atual, de globalização e informação constante, quem vive num contexto de ditadura assiste à "repercussão dos acontecimentos e das formas de resistência muito limitada", como aconteceu no passado.
Em Portugal, estima-se que terão existido dezenas de milhares de presos políticos durante a ditadura: "Podemos pensar no sofrimento que isto significa, não apenas para as pessoas que resistiram, mas também para as suas famílias, e o nível de violência coletiva que deixou marcas muito profundas até aos dias de hoje".
"É impressionante acompanhar as visitas orientadas e perceber, no final, como muitas pessoas ficam surpreendidas com tantas dimensões da violência do regime fascista. Essas pessoas dizem-nos que não sabiam de terem acontecido coisas tão graves. Em ditadura, tudo era muito censurado e escondido, portanto muita da opressão era desconhecida do povo", recorda.
Rita Rato defende que o Museu do Aljube tem também este compromisso democrático de defesa dos valores da liberdade, e do que isso significa: "O nosso quotidiano é isso, preservar a memória dos resistentes, e construí-la com os testemunhos, e, mesmo as pessoas detentoras de muitas lembranças, ficam surpreendidas porque têm ideias muito genéricas do que foi a ditadura" em Portugal.
Por essa razão tem dado cada vez mais valor à recolha de testemunhos, que constituem uma parte do espólio do museu.
As doações para o Aljube têm vindo de pessoas a título individual e de instituições, como as que foram transferidas da Biblioteca-Museu República e Resistência.
"A sua digitalização é fundamental para que o público e os investigadores possam aceder e estudar este espólio", apontou a diretora, que decidiu avançar com o processo em finais de dezembro de 2020.
A digitalização - "um trabalho muito exigente porque tem de ser acompanhado por um registo pormenorizado e rigoroso" - está a ser terminada, e é intenção da direção que fique acessível ainda este ano.
Quanto aos testemunhos, já existem algumas dezenas disponíveis na rede social Youtube, tanto em formato longo como reduzido.
Rita Rato quer continuar com a recolha de testemunhos e realizar conversas com mulheres que foram vítimas da ditadura, num ciclo que decorrerá em setembro, "para dar a conhecer as suas histórias e homenageá-las".
"Estas mulheres deram tanto para que nós todos, hoje, estejamos aqui, a viver em democracia, e inspiram-nos a continuar a lutar pela liberdade", lembrou.
Na sala da exposição temporária "Mulheres e Resistência -- Novas Cartas Portuguesas e outras lutas", junto a uma janela onde lhe bate a luz do dia, foi inscrito o poema de Maria Velho da Costa (1938-2020), "Transmissão de Ideologia", em cujo conteúdo Rita Rato continua a encontrar muita atualidade.
O poema fala nas "coisas que elas dizem", e que, embora tenha sido criado nos anos 1970, contém frases reveladoras de opressão, moralismo, julgamento e fatalismo, que se repetem passados 50 anos: "Isso não são coisas de menina/O meu homem não quer/A mulher quer-se é em casa/Mas o senhor padre disse-me que assim não/Você sabe que eu não sou dessas/Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros/Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito/Cada um no seu lugar/Sempre há-de haver pobres e ricos/Sempre é homem".
Escolheu inseri-lo na exposição porque "é muito impressionante ver que algumas das coisas que [Maria Velho da Costa] escreveu continuam a ser ditas às mulheres, nos dias de hoje, por exemplo, que há coisas de homens e de mulheres, que há coisas de meninos e de meninas, que tem de ser assim, que o marido não quer, que temos de aceitar".
Para prestar uma homenagem às mulheres resistentes antifascistas e abordar a luta pelos direitos das mulheres, "muitas delas desconhecidas", foi criado um ciclo de conversas em torno desta exposição que decorre a partir de 18 de setembro.
Nele vão participar Diana Andringa, Isabel do Carmo, Helena Neves, Helena Pato, Maria Machado, Sara Amâncio, Margarida Tengarrinha, Faustina Barradas, Mariana Rafael, Aurora Rodrigues, Conceição Matos, Manuela Bernardino, Eulália Miranda e Hermínia Vicente.
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