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Assédio sexual no trabalho e na rua. "Se importuna, não é sedução"

Rita Sousa, procuradora da República e membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, é a convidada de hoje do Vozes ao Minuto.

Assédio sexual no trabalho e na rua. "Se importuna, não é sedução"

O assédio sexual não é um fenómeno novo nem chegou agora a Portugal - a sua discussão, essa sim, parece ter encontrado o seu espaço mediático nas últimas semanas, a reboque de uma entrevista dada pela atriz Sofia Arruda, onde revelou ter sido vítima deste comportamento predatório.

Conforme aconteceu nos Estados Unidos, a denúncia de uma encorajou várias a dizer ‘Me Too’ (‘A mim também’), parecendo espoletar uma conversa que urgia. Mas que enquadramento legal tem o assédio sexual em Portugal? O que deve uma vítima fazer?

Rita Sousa, membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), conversou com o Notícias ao Minuto sobre uma “agressão que afeta desproporcionalmente mulheres”, um fenómeno “muito antigo”, mas cuja discussão “é muito recente” e onde ainda há margem para fazer melhorias.

A procuradora da República acredita que “a lei portuguesa não é clara” na formulação que adotou para o assédio sexual, diferindo do texto da Convenção de Istambul, que é “muito mais amplo e muito mais protetor”. Por outro lado, defende a existência de um “crime de assédio sexual que contemplasse também o assédio no local de trabalho”, que em Portugal é uma contraordenação muito grave, não estando incluído no crime de importunação sexual.

A magistrada indica, ainda, que a “justiça esforça-se por acompanhar a evolução da sociedade”, mas deixa claro que “o tempo da justiça não é o das redes sociais”. “A segurança e a estabilidade da justiça não quer dizer, porém, que fiquemos presos a conceitos atávicos. Temos de evoluir na forma como olhamos para as realidades sociais”, acrescenta.

O assédio de rua, que muitas vezes se pretende desqualificar ao vulgar piropo, é, na verdade, um problema muito mais amplo do que issoHá um fator de desequilíbrio de poder fortemente associado aos casos de assédio sexual. Há uma destrinça que se deve fazer de atos de assédio cometidos aleatoriamente na rua, com uma pessoa que é completamente estranha, e atos cometidos no contexto laboral, onde há relações de dependência?

O assédio parte sempre da mesma base, de uma grande assimetria de poder entre o assediador e a vítima de assédio. Obviamente, é uma agressão que afeta desproporcionalmente mulheres, portanto, tem sempre na sua base uma cultura que se denomina por patriarcal, na medida em que representa um domínio, nas várias vertentes da vida em sociedade, do homem sobre a mulher. O assédio de rua é uma manifestação de assédio que consiste num ato de violência - é assim definido pela Convenção de Istambul - contra a mulher, por não ter sido desejado, solicitado. E tem diferentes manifestações.

O assédio de rua, que muitas vezes se pretende desqualificar ao vulgar piropo, é, na verdade, um problema muito mais amplo do que isso, principalmente porque visa mulheres de todas as idades e categorias, mas sabemos que atingirá essencialmente pessoas muito jovens ou, pelo menos, essas vítimas estarão mais expostas. Jovens que se deslocam sozinhas para a escola, que utilizam os autocarros, que saem à noite, que são tocadas contra a sua vontade e não conhecem as pessoas que as assediam. São experiências muito traumáticas - atingem fortemente a sua dignidade como mulheres e impedem-nas de se movimentarem livremente no espaço público. Este é o problema de base do assédio de rua, esta apropriação do espaço público contra uma determinada população: as maiores vítimas desse tipo de comportamento, que são as mulheres.

Se eu não solicitei, se eu não dei nenhum sinal de que pretendia aquele comportamento, é um comportamento indesejado

Há alguma discussão sobre o que constitui assédio e o que é tentativa de sedução que importuna…

Se importuna, não é sedução. Aqui é que eu penso que a lei portuguesa não é clara. A Convenção de Istambul, que é uma convenção do Conselho da Europa que pretende prevenir, evitar e enquadrar a forma como os Estados combatem a violência contra as mulheres e a violência doméstica, tem orientações muito precisas e muito claras. E diz, no artigo 40, que o assédio sexual é “qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa”. Se eu não solicitei, se eu não dei nenhum sinal de que pretendia aquele comportamento, é um comportamento indesejado.

Quando diz que a lei não é clara…

Adotou uma formulação diferente. No artigo 170 do Código Penal fala em “importunação sexual” - portanto, não adotou a expressão “assédio sexual” - e diz “importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”. Isto levanta várias questões, designadamente no campo do assédio laboral, mas ainda quanto ao assédio de rua utiliza o termo “importunar outra pessoa”, “formular proposta de teor sexual” ou “constranger a contacto de natureza sexual”, que é diferente de “qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física”.

O conceito que a Convenção de Istambul adota é muito mais amplo e muito mais protetor do que o conceito que nosso Código Penal adotou, que é mais restrito e mais exigente para aquele tipo de condutas que devem ser penalizadas.

Fazer uma apreciação muito rude, grosseira, brejeira sobre uma parte do corpo, que seja uma mera apreciação, já não é punido pelo artigo 170, mas à luz da Convenção de Istambul devia ser 

É mais difícil haver fundamento legal para fazer queixa?

Pode fazer a queixa, mas é mais difícil obter uma condenação. Repare, tem que se demonstrar que é um comportamento que importuna e [com a formulação do artigo 170] parece que comportamentos de tom não verbal e que não impliquem constrangimento a contacto ou que não impliquem uma proposta direta de teor sexual já não caberão aqui.

Imagine que vai na rua e alguém lhe dirige uma expressão de teor sexual que não gosta de ouvir e que a perturba profundamente, individualmente. Cai no artigo 40 da Convenção de Istambul, mas já não é importunação sexual, porque tem que existir uma proposta de teor sexual, um ato de exibição ou um constrangimento a contacto de natureza sexual. Ou seja, fazer uma apreciação muito rude, grosseira, brejeira sobre uma parte do corpo, que seja uma mera apreciação, já não é punido pelo artigo 170, mas à luz da Convenção de Istambul devia ser.

Poderá ser essa formulação uma das razões pelas quais apenas 10% do total de inquéritos instaurados pelo crime de importunação sexual, nos últimos cinco anos, resultaram em condenação?

Seria interessantíssimo fazer esse levantamento. Muitas vezes pode ser porque a própria vítima desiste da queixa. Aquilo, na altura, perturba muito, mas depois a vítima tem de ir à polícia, ao Ministério Público, tem de ir ao tribunal… A vítima desmotiva-se e acaba por desistir da queixa. Ou até, imagine, no assédio de rua, a vítima nunca mais viu aquela pessoa…

Questionava mais sobre o facto de esta percentagem não discorrer da realidade, não são apenas 10% das queixas que são válidas, deverão existir outros fatores.

Com certeza. Não temos dados empíricos e estamos a fazer uma suposição, mas certamente que a proteção legal é insuficiente.

E isso parte logo da formulação do crime?

Sim. A APMJ formulou já uma proposta em que se chama mesmo assédio sexual, o tipo penal, e que recebeu com muito mais precisão o espírito e a letra da Convenção de Istambul, quanto ao assédio sexual.

A vítima vai-se queixar à entidade que mais tarde virá a ser a responsável pela contraordenação. No processo de contraordenação quem virá a ser arguido é o empregador. É um pouco perverso

Em relação ao assédio no contexto laboral, o que é que uma potencial vítima pode ou deve fazer?

A vítima deve denunciar a situação ao empregador, o que é um pouco ingrato porque é o empregador que é responsável pela contraordenação. No Código de Trabalho, se o assédio provir de um superior hierárquico ou de um colega de trabalho que não o empregador e se a vítima for denunciar ao empregador, este é sempre responsável pela contraordenação. A vítima vai-se queixar à entidade que mais tarde virá a ser a responsável pela contraordenação. No processo de contraordenação quem virá a ser arguido é o empregador. É um pouco perverso.

Devia existir o crime de assédio sexual que contemplasse também o assédio no local de trabalho 

Há um conflito de interesses.

Exatamente, há um conflito de interesses. Como é que a vítima se pode queixar ao empregador, contra um superior hierárquico ou seu colega que a assediou, quando no âmbito do processo por contraordenação laboral é o próprio empregador que virá a ser o responsável? Ele, no fundo, tem aqui um duplo papel que é conflituante.

A vítima deve, também, denunciar a situação junto das autoridades competentes para receber a denúncia e instaurar o processo de contraordenação, isto é, a CIIG - a Comissão para a Igualdade de Género e a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). Também pode contactar e pedir aconselhamento ao Ministério Público junto dos Tribunais de Trabalho. Há outro tipo de comportamentos que devem ser assumidos, como, por exemplo, fazer um registo escrito das ocorrências, partilhar com pessoas íntimas para que mais tarde possam demonstrar essa situação, etc. 

As condutas de assédio no contexto laboral são consideradas contraordenações muito graves, portanto, podem ou não ser também crime. Pode integrar este crime da importunação sexual, se for uma agressão mais grave pode ser coação sexual, pode ser desqualificado para uma injúria. Mas são condutas que afetam de tal forma a dignidade da mulher e o direito de viver a sua realização pessoal e profissional que mereciam uma autonomização e uma tutela penal autónoma. Devia existir o crime de assédio sexual que contemplasse também o assédio no local de trabalho.

Não será negligente o assédio sexual em contexto laboral não estar incluído no crime de importunação sexual, tendo em conta a própria natureza do crime (assimetrias de poder no local de trabalho)?

Sem dúvida que é totalmente inadequado. Os referentes legais em matéria de igualdade de género e violência contra a mulher são as Convenções CEDAW e a Convenção de Istambul. A Convenção de Istambul não fala importunação sexual, mas de assédio sexual. O crime de importunação sexual tem imensas fragilidades quando se trata de lidar com o assédio sexual em contexto laboral, por não abarcar todas as situações - repare-se, por exemplo, que assédio é toda a conduta não desejada pela vítima, e isto basta para a Convenção de Istambul. Mas o crime de importunação fala em constrangimento - parece que o ato sexual terá sempre de ser extraído com certa resistência da vítima, além de que não tutela os aliciamentos verbais e não verbais, deixando sem proteção as vítimas desta gravíssima forma de violência.

Notícias ao Minuto A procuradora Rita Sousa é membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ)© Rita Sousa  

Acha que este tipo de crime deveria estar articulado com apoio à vítima?

Como acontece com as vítimas de violência doméstica, sem dúvida. A vítima está numa dupla situação de subordinação, vamos dizer assim, ou de assimetria de poder, porque haverá uma relação de dependência por força do desnivelamento hierárquico entre a vítima e o agressor, que abusa do seu poder enquanto empregador e enquanto homem.

Aqui, em contexto laboral, a vítima acaba por se encontrar numa situação de refém.

Está mais encurralada, porque precisa do trabalho. É a sua fonte de sobrevivência, é a sua fonte de rendimento. E é também a sua fonte de realização pessoal, é assim que temos de encarar o trabalho, não é só uma forma de sobrevivência.

Temos de ter o cuidado de ter mais empatia para com as vítimas. Isto não significa descurar ou acabar com o princípio de presunção de inocência e com a prova que tem que se fazer em tribunal

As características específicas deste comportamento acabam por fomentar o seu prolongamento no tempo?

Claro. E há outro problema. Há condutas que estão de tal forma naturalizadas, que a vítima sente-se perturbada, mas acha que faz parte do quotidiano e da realidade e que é natural. Nem sequer consegue superar esse caldo cultural que a faz vítima de uma agressão. Isto é complexo, o fenómeno é muito antigo, mas a discussão é muito recente e, sem dúvida, que deveria existir apoio psicológico para estas vítimas. Afetam-se muitas dimensões da pessoa.

O que é que acredita ser mais urgente rever, neste tipo de crime?

Como todas as questões que envolvem violência contra a mulher, acho que temos de ter o cuidado de ter mais empatia para com as vítimas. Isto não significa descurar ou acabar com o princípio de presunção de inocência e com a prova que tem que se fazer em tribunal. Penso que é importante olhar todas estas situações como diferentes manifestações de uma mesma cultura de violência contra a mulher. E esse entendimento é fundamental para se dar o atendimento adequado a estes casos.

A justiça esforça-se por acompanhar a evolução da sociedade, mas o tempo da justiça não é o das redes sociais, nem pode ser

Nessa nota, e dado que isto é, sobretudo, uma questão de evolução como sociedade e os magistrados fazem parte da sociedade, acha que estes estão devidamente equipados para avaliar este tipo de casos? Ainda não passou muito tempo, tivemos um caso muito mediático de citação da Bíblia para enquadrar crimes de violência doméstica.

Acho que há situações que são pontuais. Tem sempre que haver um investimento grande em formação e acho que se tem feito uma evolução extraordinária, designadamente dentro do Ministério Público. Hoje em dia é dado um tratamento à violência doméstica completamente diferente daquele que era dado, tão somente, há cinco ou seis anos. Com todo o empenho e com todo o valor que os magistrados do Ministério Público têm, a verdade é que conhecemos uma grande evolução nos últimos anos. É sempre possível fazer mais e melhor. Insisto muito que é importante avaliar a violência contra a mulher e os crimes praticados contra mulheres por quem estudou e por quem aprofundou estes temas. É fundamental estudar as teorias feministas de Direito. Acho que as escolas de magistrados deviam ter essa abertura, há certamente uma evolução grande, mas queremos sempre mais e melhor. Seria benéfico que esse tema fosse introduzido na formação dos magistrados e das magistradas. Ganhar-se-ia muito.

Para a justiça acompanhar a evolução da sociedade?

A justiça esforça-se por acompanhar a evolução da sociedade, mas o tempo da justiça não é o das redes sociais, nem pode ser. Certamente não serei eu a dar aqui a solução para este paradoxo que é: um mundo fluído, ultra rápido, com conceitos em constante mutação e uma justiça que tende para a segurança e para a estabilidade. A segurança e a estabilidade da justiça não quer dizer, porém, que fiquemos presos a conceitos atávicos. Temos de evoluir na forma como olhamos para as realidades sociais.

Penso que esse esforço vem sendo feito e fizeram-se alterações legislativas que podem ser muito melhoradas, ainda. Nesta matéria, o referente é a Convenção de Istambul. É uma convenção que deve enquadrar a lei portuguesa e pode fazer-se ainda muito melhor na aproximação à Convenção de Istambul.

O facto de as denúncias estarem a ser feitas através das redes sociais, com todo o impacto que isso acarreta para a presunção de inocência, não será sinal de uma alguma carência/deficiência ou impreparação no processo de justiça?

Mais uma vez vamos discorrer sem qualquer base de estudo ou empírica. Posso dar-lhe a minha perceção, penso que isto acontece nas redes sociais por duas razões: é uma forma, diria, catártica de as vítimas lidarem com uma situação traumática, falando sobre isso e partilhando a sua experiência esperando ser lidas por outras pessoas que passaram pelo mesmo processo de sofrimento. Por isso acho que é um equívoco falar em denúncia, pois penso que ali o que, verdadeiramente e antes de mais nada, se pretende é falar, verbalizar e partilhar uma experiência como parte de um processo de cura.

Depois também terá muito a ver com o facto de no momento em que sentem preparadas e capacitadas para falar já passaram os seis meses em que seria possível fazer a queixa, se é que, tal como a lei trata o assédio sexual, a sua experiência alguma vez viesse a ser tratada como crime.

Há muitas situações em que a palavra da vítima pode e deve prevalecer sobre a palavra do agressor, não é um crime de prova impossível, nem deve ser

Os tempos de apresentação de queixa e de prescrição para os casos de assédio são apropriados?

Os tempos de prescrição para os casos de violência contra a mulher em geral, principalmente os que envolvem violência sexual, não são adequados. Desde logo, o procedimento criminal depende de queixa e não devia depender. Os crimes dependem do exercício do direito de queixa pela vítima e deviam ser crimes públicos. São crimes de demasiada gravidade para ficar a depender da vontade da vítima o exercício do direito de queixa. Com isto também se dá um sinal errado ao agressor e à sociedade, porque são crimes em que o Estado não inicia o procedimento criminal autonomamente. Parece que caem naquele conjunto de crimes menos graves - como ofensa à integridade física ou injúria ou furto mais simples - em que o procedimento criminal só se inicia com a queixa.

Portanto, são crimes que pela sua gravidade não deviam depender da queixa. Depois, o tempo que uma vítima demora a processar e a enfrentar uma realidade que para si é tão hostil e tão traumática não cabe, muitas vezes, nos seis meses [de apresentação da queixa] e nem sequer nos cinco ou dez anos de tempo de prescrição.

Quando é a palavra de um contra a palavra de outro, o que é que prevalece?

Há todo um enquadramento que torna um depoimento credível ou não credível. Esse enquadramento traz credibilidade aos depoimentos de determinadas vítimas e, mesmo quando é a palavra de um contra o outro, conduz à condenação do agressor. Isto é perfeitamente possível porque senão nunca seria feita prova num crime de violação, em que ninguém viu e muitas vezes não existem evidências físicas, porque o corpo se reconstitui muito rapidamente ou a pessoa não apresentou queixa imediatamente. Há muitas situações em que a palavra da vítima pode e deve prevalecer sobre a palavra do agressor, não é um crime de prova impossível, nem deve ser.

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