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"Classe média devia ter apoio judiciário, não só quem vive na miséria"

O bastonário da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, José Carlos Resende, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Classe média devia ter apoio judiciário, não só quem vive na miséria"
Notícias ao Minuto

08:40 - 25/07/19 por Patrícia Martins Carvalho

País Bastonário

Solicitadores, agentes de execução e advogados são cartas do mesmo baralho, mas de naipes diferentes. Quer isto dizer, especialmente no que diz respeito à ligação entre solicitadores e advogados, que são duas classes profissionais que se complementam no trabalho do dia-a-dia.

Quem o diz é o bastonário da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução que garante não haver conflitos entre as duas classes profissionais - à exceção de algumas "picardias" que considera normal.

José Carlos Resende admite que "existe a sensação de que há um mau funcionamento da Justiça".O que tem várias razões de ser, entre elas o facto de os juízes terem demasiados processos e respetivas burocracias em mão. A solução, explica o bastonário, passa pela contratação de recursos humanos que não têm de ser apenas juízes.

Ainda sobre a questão da Justiça, José Carlos Resende não tem dúvidas em afirmar que o "apoio judiciário" deveria ser "alargado" às classes médicas, criticando o facto de este apenas estar disponível para aqueles que "vivem quase na miséria".

O que é um auto de constatação que, recentemente, apresentou como sendo uma “ferramenta de justiça”?

O auto de constatação é elaborado por um agente de execução ou por um solicitador a pedido da parte interessada. O que o solicitador faz é ir ao local e fazer o levantamento do que vê, nomeadamente através de uma reportagem fotográfica, para então reportar.

E não há quaisquer impedimentos ao trabalho do solicitador?

Bom, um solicitador nunca pode fazer este trabalho para o seu próprio cliente. Este impedimento é uma forma de garantir a sua independência.

Não impede os processos de seguirem para tribunal, mas permite uma maior celeridade dos mesmosQuais são, então, as vantagens do auto de constatação?

Permite que as pessoas saibam, antecipadamente, o que já está documentado e que é de fácil provar perante o tribunal. Permite às pessoas avaliarem se vale a pena ir para tribunal ou, se for, sabe pelo menos que a discussão estará resumida a este aspeto.

É uma forma de impedir a acumulação de processos em tribunal?

Não é por si só que o auto de constatação vai impedir que haja processos em tribunal. Vai, em primeiro lugar, simplificar, e, em segundo, permitir que os interessados tenham meios mais claros de identificar estas situações. Não impede os processos de seguirem para tribunal, mas permite uma maior celeridade dos mesmos, pois permite que, de uma forma muito fácil, se diga o que está em causa.

Vamos ilustrar esta questão com um exemplo concreto…

Imagine que está em discussão se determinada casa tem humidade. O solicitador vai à casa, fotografa as manchas da humidade, mas está impedido de dizer no auto de constatação que aquela mancha de humidade é resultado das telhas que estão levantadas. O que vai fazer é fotografar as telhas e a mancha e depois um perito é que vai avaliar se a humidade é provocada ou não pelas telhas.

É nesta medida que é útil para o cidadão?

É útil para o cidadão e para a justiça.

Em que outras situações se aplica o auto de constatação?

Em questões relacionadas com obras, com o ruído ou até com a própria internet.

A que tipo de situações cibernéticas se refere?

Por exemplo, a situações de difamação nas redes sociais. Alguém acusa outra pessoa de a caluniar: o que o solicitador faz é fotografar a calúnia, tomar nota do dia e da hora em que a mesma foi feita, portanto, fazer um testemunho qualificado.

Com o leilão eletrónico (...) passou-se a vender os bens que são penhorados de uma forma, não só muito mais rápida, como mais eficaz, atingindo-se valores muito mais elevados e interessantesE assim fica resolvido?

Da parte do solicitador sim. Já não lhe cabe dizer como é que aquela difamação ali apareceu, isso serão os peritos informáticos que vão descobrir através do IP, por exemplo.

Que outras medidas considera úteis para ajudar à celeridade dos processos?

O leilão eletrónico é um bom exemplo. É uma medida que introduzimos através dos agentes de execução. Desta forma passou-se a vender os bens que são penhorados de uma forma, não só muito mais rápida, como mais eficaz, atingindo-se valores muito mais elevados e interessantes, tanto para o credor como o devedor.

E antigamente não era assim?

Até aqui o que acontecia é que os processos extinguiam-se sem que fosse conseguido cobrar os valores em causa e agora a grande parte é extinta, não só com os valores cobrados, como até sobrando dinheiro para os devedores. Antigamente não era assim. Vendia-se a casa, mas o valor não chegava para pagar a dívida e era necessário chamar os fiadores, penhorar salários…

A informática tem um papel preponderante na Justiça?

Aprofundar o uso da informática contribui para a melhoria da justiça. Mas exige um investimento permanente que não pode ser descurado, mas é um facto que a informática nos dá respostas muito importantes.

As pessoas das classes média e média baixa deviam ter este apoio para terem a possibilidade de irem para a justiça sem ficarem muito honoradas com os custos elevadosUma das medidas defendidas por si diz respeito à criação de assessores para os juízes. Porquê?

Porque desta forma os juízes não perderiam tanto tempo com tarefas burocráticas e questões formais dos processos, permitindo-lhes dedicarem mais do seu tempo à decisão judicial. Claro que isto não é conseguido de um dia para o outro, passa por disponibilizar assessores e mais funcionários para os tribunais.

Considera que o apoio judiciário deveria ser alargado?

Nós achamos que é muito importante que este apoio seja alargado e que todos os cidadãos tenham direito a um mandatário – advogado ou solicitador – que os ajude e não apenas aqueles que estão em situação económica quase de miséria. As pessoas das classes média e média baixa deviam ter este apoio para terem a possibilidade de irem para a justiça sem ficarem muito honoradas com os custos elevados.

Quais são os problemas que ‘saltam à vista’ no setor da Justiça?

A falta de investimento em termos de quadros e de infraestruturas. Nota-se que tem havido uma melhoria progressiva, mas é preciso mais e há sempre aquela discussão se esse ‘mais’ pode ser feito com melhor gestão dos meios existentes. Mas à partida somos todos consensuais que há falta de quadros, nomeadamente funcionários judiciais e magistrados, em muitos tribunais.

Tem uma estimativa de quantos processos poderiam ser resolvidos de forma mais célere?

Aquilo que se chama a nossa pendência processual tem melhorado bastante e com números muito interessantes, principalmente à custa da ação executiva. Nós chegámos a ter quase um milhão e 400 mil processos pendentes há cinco anos e estamos agora em metade.

Os cidadãos têm a perceção desta melhoria?

Em termos de imagem da Justiça, nomeadamente por a justiça estar hoje muito mais mediática do que o que estava, dá a sensação de haver um mau funcionamento.

Porquê?

Por um lado, porque a Justiça está mais mediática e, por outro, porque há sempre alguém que perde os processos e, por isso, não fica satisfeito com a resolução da Justiça.

Foi assinado recentemente um protocolo entre a Ordem e a Associação Portuguesa dos Profissionais do Setor Funerário (APPSF). De onde surgiu esta necessidade?

Do facto de se registarem casos em que os funcionários das empresas que organizam funerais serem confrontados com pedidos de serviços que não são da sua competência.

A que serviços se refere?

Por exemplo, a escrituras de habilitação de herdeiros, a uma relação de bens para o imposto de selo para os serviços de Finanças ou de tratarem de todo o processo de sucessões. A APPSF reconheceu que estes serviços não deveriam ser feitos através dos seus funcionários e, portanto, assinámos o protocolo que determina que sempre que surgirem situações destas, as mesmas serão encaminhadas para um solicitador, o que evitará problemas e erros.

É a essas “situações” que se refere quando fala em procuradoria ilícita?

A lei estabelece que há um crime de procuradoria ilícita quando alguém se arroga a condição de solicitador ou advogado, fazendo atos de procuradoria sem ter legitimidade para tal.

O que leva estas pessoas a cometerem este crime?

Umas vezes por ignorância e boa vontade. Outras como forma de ganhar mais algum dinheiro.

Tem ideia da dimensão de casos deste género?

Do reporte que temos, o número de casos é principalmente importante em algumas zonas da província, mas percebemos que muitas vezes estas situações acontecem mais por ignorância do que propriamente má-fé. São pessoas que querem ajudar e acabam por não ter noção do problema. Nestes casos, as pessoas são esclarecidas e as questões resolvem-se. Quando é má-fé estão sujeitas a um processo-crime e aí é o Ministério Público que intervém.

A nossa relação institucional com a Ordem dos Advogados é muito boa. Mas sim, volta e meia há pequenas picardiasOs advogados têm feito algumas declarações menos abonatórias em relação aos solicitadores. Sente que o papel dos solicitadores e agentes de execução é desvalorizado?

Às vezes em campanha há frases que podem dar origem a isso. Os solicitadores e os advogados têm algumas áreas de negócio que são comuns e quando isso acontece ‘volta e meia’ há aquilo que se chama ‘frases de concorrência’, mas a nossa relação institucional com a Ordem dos Advogados é muito boa. Mas sim, volta e meia há pequenas picardias profissionais que se resolvem com diálogo.

Então não se pode falar em rivalidade entre advogados e solicitadores?

Os advogados são quase 30 mil, nós somos pouco mais de quatro mil. Não me parece que os advogados sintam rivalidade em relação aos solicitadores.

E os solicitadores em relação aos advogados?

Não. A grande maioria dos colegas trabalha permanentemente em conjunto com advogados. Não vejo, nem me parece, que isso seja um problema.

Pode dizer-se que são profissionais que se complementam?

Sim, há processos em que os solicitadores e os advogados trabalham de forma independente, mas há outros em que trabalham em complementaridade e, como em tudo, quando há profissionais há pequenos momentos de divergência mas que são menores, não são dignos de nota.

Como se explica ao cidadão comum a diferença entre um solicitador, um agente de execução e um advogado?

O agente de execução é um oficial público a quem o Estado dá o poder especial de ir penhorar os bens da pessoa, obter informações sobre a pessoa devedora que os outros não podem obter, guardá-los em segredo e entrar em casa da pessoa para penhorar e proceder à sua venda forçada.

O advogado e o solicitador são mandatários, sendo que o solicitador não trata de processos-crime. Nos processos cíveis, quando o processo exige um recurso para tribunal superior, tem que ser o advogado a organizar esse recurso. E depois há processos em que o solicitador só pode trabalhar sozinho se tiver um valor inferior ao valor da alçada da comarca e há processos em que pode intervir independentemente do valor, como é o caso do processo de partilhas judiciais ou inventário. Por isso é que digo que somos parceiros: o solicitador trabalha em especial na parte documental e matéria de facto e o advogado em tudo o que possa ser matéria profunda de Direito e recurso para tribunais superiores.

As pessoas estão cientes destas diferenças e sabem a quem recorrer?

Acho que a grande maioria dos cidadãos já vai percebendo estas diferenças. E muitas vezes acontece que o cliente apresenta-se a um solicitador e é este quem lhe diz que será preciso um advogado. Os solicitadores sabem fazer e sabem o que não podem fazer e nós somos muito rigorosos nisso.

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