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"A Matilde é como se fosse minha filha. Vejo de novo tudo o que passámos"

O caso de Matilde despertou a atenção para uma doença rara de que muito poucos tinham ouvido falar. Mas não é o único. O Notícias ao Minuto foi conhecer a história de Guilherme, sendo este o relato de uma família que enfrentou, lutou, mas não venceu a Atrofia Muscular Espinhal.

Notícias ao Minuto

14:20 - 01/07/19 por Marina Gonçalves

País Reportagem

Atrofia Muscular Espinhal- Tipo I é a doença de que mais se tem falado no país ao longo dos últimos dias. É rara, mas afeta profundamente pacientes e famílias, como mostramos neste testemunho. Hoje falamos de um outro bebé especial, o pequeno Guilherme, que enfrentou e perdeu esta luta em 2017, quando estava quase a completar sete meses de vida. Em conversa com o Notícias ao Minuto, os pais, Anabela Silva e Rui Cardoso, recordam o filho e partilham a história, com muitas semelhanças com a da bebé Matilde. 

De referir que os pais de Matilde criaram recentemente uma campanha, esperando conseguir dinheiro suficiente para adquirir o tratamento que poderá salvar a filha. Falamos do Zolgensma, medicamento acabado de ser aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) - uma agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos -, que custa dois milhões de dólares e que ainda não chegou à Europa

Ao contrário do que aconteceu a Matilde, os médicos perceberam logo nas primeiras 24 horas de vida de Guilherme que alguma coisa se passava. O menino nasceu numa quinta-feira à noite e na manhã seguinte disseram logo que o bebé tinha um “sintoma de várias doenças que poderiam ser graves e que teria de ser visto por um especialista”.

Foi um choque muito grande para os pais quando receberam a notícia, pois acabavam de ver nascer o primeiro filho em comum, depois de uma gravidez normal, sem nenhum problema detetado, “todos os valores certos, tudo expectável, quarto mobilado à espera do menino para vir para casa”. “Não acreditávamos no que estava a acontecer”, acrescenta Rui.

Mal os sintomas se fizeram notar, o pequeno Gui, assim lembrado carinhosamente pelos pais, foi sujeito a vários exames e colocado “de prevenção na unidade de neonatologia da CUF”, hospital onde nasceu. Entretanto, à mãe foram receitados logo “antidepressivos para se acalmar”, contando ainda com o apoio de psiquiatras. “É normal uma mãe ficar em estado de choque”, partilha Anabela.

Os primeiros exames feitos deram 'negativo' e era como se estivesse 'tudo bem' como o bebé, mas havia sinais que não passavam despercebidos. “A própria forma do corpo com que eles ficam, com um formato tipo pêra, os músculos do peito não estão desenvolvidos e depois a respiração é feita muito pela barriga. E também um tremor na língua. Mas ele não tinha esse tremor e tinha bastante força na sucção”, relata Rui, referindo-se ao filho.

À medida que os resultados negativos iam chegando, os pais sentiam um certo 'alívio', ao contrário da equipa médica que se mostrava cada vez mais preocupada, como recordam Anabela e Rui. O último resultado acabou por chegar e aí foi confirmada a doença. Entretanto, o caso já havia sido encaminhado para o Hospital Santa Maria. Antes de entrarem no consultório onde lhes foi confirmado o pior, sendo que os pais “já sabiam” o que iam ouvir. “Ele apresentava os sintomas todos, apesar das análises não dizerem”, atira a mãe.

O diagnóstico confirmou-se e o objetivo passou a ser apenas um: encontrar a cura. 

Já se tinham informado sobre o medicamento aprovado na altura pelo FDA, o Nusinersen [Spinraza], em 2016, mas ainda não tinha chegado à Europa. “O laboratório que produziu o medicamento, além de ter todos os programas para testes, experimentação em vários doentes, assim que foi aprovado, predispôs-se a fornecer o medicamento gratuitamente a certas crianças do tipo 1 que estivessem em risco de vida. Era preciso concorrer a isso. O Guilherme era elegível”, explicam, referindo que o filho conseguiu assim o tratamento disponível na altura. No entanto, apesar de ser inovador, “havia uma pequena percentagem de crianças que pioravam e faleciam” e tiveram de “assinar uns termos de responsabilidade”.

A "melhor altura" da vida dos pais

Enquanto esperaram pelo medicamento, Anabela e Rui viveram a “melhor altura” das suas vidas com o filho em casa e tentaram fazer com que a vida fosse “normal”.

“Ele era um bebé normal, mas com a diferença de que quando pegamos nele era mesmo como um boneco. A expressão dele mantinha-se, são bebés com um olhar muito intenso e parece que quando estamos a falar com eles, estão a entender quase tudo. Vê-se mesmo a diferença desses bebés para outros. Por norma, os bebés ‘normais’ dispersam muito, viram-se para aqui e para ali.”, enumera o pai. “O que nós fazíamos era não dizer a ninguém, levávamo-lo à rua e as pessoas não davam conta. Fizemos uma vida normal, a não pensar muito no amanhã”, acrescenta a mãe.

Mas nem tudo era bom. A doença nunca deixou de estar presente e alguns dos sintomas faziam-se notar em certos momentos. “Obviamente tínhamos um ou outro episódio de engasgamento, ele às vezes atrapalhava-se. Não era uma coisa demasiado intensa nesta fase”.

O episódio marcante

Entre a espera pela medicação - à data o Nusinersen -, o bebé tinha consultas no Hospital Santa Maria e numa dessas visitas, como os episódios de engasgamento já começavam a ser mais frequentes, foi colocada no menino uma sonda nasogástrica. Após alguns dias na unidade hospitalar, regressaram a casa.

Guilherme esteve em casa durante um mês com a sonda e a força dos pais em levar a sua vida para a frente mantinha-se, mesmo com alguns episódios duros e de grande aflição, como testemunha Rui.

“Quando a sonda é colocada no nariz, tem uma espécie de autocolantes adesivos para segurá-la. Mas com o uso a fita começa a soltar-se e o que aconteceu foi que eu estava a dar a comida e a sonda tinha descido. Quando comecei a injetar o leite pela sonda foi para o nariz em vez de ir para o estômago. Eu não reparei (que a sonda tinha descido) e ele teve um episódio grave de engasgamento. Estava sozinho em casa, comecei a bater nas costas, ele estava aflito, peguei no telefone e liguei o 112, meti em alta-voz e continuei a bater nas costas dele – eu não tinha qualquer instrumento ou nenhum curso de primeiros socorros para fazer isto. Foi um episódio completamente inesperado. Liguei [do telefone fixo] para o 112 e o telefone tocou, tocou, tocou e ninguém atendeu. Peguei no telemóvel, liguei para o 112 e ninguém atendeu. Peguei nos dois telefones ao mesmo tempo, liguei dos dois para o 112, tocou, tocou, tocou e ninguém atendeu. O que aconteceu é que eu consegui a seguir ligar para os Bombeiros de Sacavém, que em 10 minutos estavam aqui. Entretanto, o Guilherme já estava mais ou menos normalizado e eles puseram oxigénio, levaram-o para o hospital por causa das pneumonias, porque depois foi líquido para o pulmão. Fez um raio-x a todas as coisas e acabou por ficar lá internado cerca de dois dias. Imaginem o que é estar em casa sozinho com uma criança e o 112 não atender uma vez, duas, três vezes e quem nos salva são os bombeiros”.

“Não foi a única vez que aconteceu. No dia em que ele faleceu ligámos para o 112 muitas vezes”, completa Anabela.

Nusinersen - O medicamento

Guilherme fez a primeira toma do medicamento com quase quatro meses. Ao todo foram-lhe administradas quatro doses. Desde o início do tratamento até à morte de Gui passaram-se três meses vividos no hospital. Durante todo este período, contraiu “várias pneumonias, bactérias, vírus hospitalares”, dada a sua condição frágil. Uma fase intensa que começou em julho e terminou no dia em que morreu, a 4 de outubro de 2017. “Nós vivemos sobretudo de julho até outubro assim. Levantar, comer, banho, hospital das 8h da manhã até ele adormecer à noite, 21h/23h, vínhamos embora, comíamos quando calhava, chegávamos a casa, dormíamos”, relata Anabela.

A última dose do medicamento foi tomada no dia 12 de setembro e, confessa Anabela, nessa altura Guilherme já deveria “estar a reagir de outra maneira”.

Ao longo deste processo difícil, o menino sofreu várias paragem cardíacas e foi reanimado várias vezes. “Por exemplo, ele engasgava-se e deixava de respirar. Eles reanimavam-no e ele vinha a si. Quando ele vinha a si, o coração cansado abrandava e ele entrava outra vez em paragem cardiorrespiratória", recorda a mãe.

“Nós passámos três meses no hospital, mas a mim pareceu-me quase um ano. Para nós uma semana boa era quando ele não se engasgava, o que era raro. É muito difícil de gerir. Aquela ala do hospital... acho que ninguém sai de lá indiferente. É um mundo à parte, ninguém cá fora tem noção do que é viver ali. Ver crianças que têm doenças crónicas, que têm de ir lá de mês a mês e que já conhecem as enfermeiras como se fossem da família… Ou que têm uma plena consciência da limitação e que sabem que não vão passar dos 17 anos”, reflete o pai.

O luto e a (falta de) ajuda

O luto foi, como sempre, doloroso e difícil. Pior: nesta altura, recordam os pais, não houve muito apoio com que contar.

“A única coisa que existe em Portugal é a Associação Portuguesa de Neuromusculares que cá em Lisboa não tem nada, é no Porto. Não existe mais nada, não existe nada sobre a Atrofia Muscular Espinhal em Portugal. Existe nos Estados Unidos, no Brasil… Sempre achei, e acho que qualquer pai pensa isso, que os filhos vêm para fazer qualquer coisa neste mundo. Achei que o Guilherme vinha trazer a cura a Portugal, mas não. O Guilherme partiu. Então, acho que se calhar a função do Guilherme era essa e era algo que eu gostava de fazer [criar uma associação para ajudar os pais neste processo]”, partilha Anabela.

Com falta de apoio para poderem partilhar e desabafar a sua dor – uma vez que, explica, apenas existe uma associação de apoio ao luto, mas é “muito técnica” - Anabela optou por procurar ajuda fora de Portugal e está inserida em grupos franceses dedicados a pais que passaram ou estão a passar pela mesma batalha, com a mesma doença que o filho enfrentou.

Ainda assim, não deixa de elogiar o Estado, apelando: “não digam mal do nosso sistema de saúde”. “Eu tive apoios e podia estar com ele a vida inteira. Não precisava de trabalhar mais e estava só a olhar por ele que o Estado dava-nos subsídios”, conta Anabela, explicando que apesar e do seu subsidio não ser o suficiente, havia um outro dado ao filho que completava um valor mais razoável, que “não era uma fortuna, mas dava para viver” .

Para estes pais, o luto nunca acaba, mas “aprende-se a viver com a falta”. E o caso da bebé Matilde, dois anos depois de terem passado pela mesma batalha, traz à tona memórias que vão guardar para sempre.

A Matilde é como se fosse minha filha. Estas notícias todas sobre a Matilde estão a mexer comigo. Vejo de novo tudo o que passámos com o meu filho. E aqui há outra questão, é que quando eu estava grávida havia quatro colegas de trabalho grávidas de bebés saudáveis que hoje caminham e falam e têm muitos vídeos no Facebook e fotos. O Gui nunca se sentou”, desabafa a mãe.

“Pior do que isso é a maior parte das pessoas sentir que não pode falar dos filhos, porquê? Em que medida é que por o nosso filho já cá não estar eu não posso falar nele ou naquilo que ele fez. Magoa muito mais não falar porque torna-se um tabu ou algo que não é normal. Quanto mais se fala, mais fácil é", enfatiza o pai.

Hoje, ambos olham para a vida de uma outra forma, uma visão especial e com outro carinho trazida pelo pequeno Guilherme. “Nunca reparei em coisas na minha vida como reparo hoje em dia e nunca fui tão grata por coisas na minha vida como sou hoje em dia. Muitas pessoas dizem: ‘Então a vida deu-te um filho e levou-te o filho e tu dizes que estás grata?’ Estou porque deu-me o dom do meu filho”, frisa Anabela, elucidando que a única magoa que “guardam chama-se saudade”.

O custo da cura para Matilde

A história de Guilherme é muito idêntica à de Matilde, até a propósito da medicação. Tal como aconteceu na altura com o Nusinersen, o Zolgensma só foi aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) - agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos -, e ainda não tinha chegado à Europa. No entanto, no caso de Guilherme, Anabela e Rui conseguiram “o donativo do laboratório”, uma possibilidade que os pais de Matilde não têm.

“Este Zolgensma é exatamente a mesma situação, por isso é que quando nós vemos comentários a dizer que o Estado não dá garantias, não ajuda e não comparticipa o medicamento, isso é gente que está a falar daquilo que não sabe”, salienta Rui. “Neste caso, com esta medicação nova, acreditamos e esperamos que seja uma grande cura. Isto a funcionar é uma revolução completa”, acrescenta, referindo-se ao Zolgensma.

Rui não fica por aqui e compara ainda os custos entre um medicamento e o outro. “O Spinraza ( Nusinersen) é feito para tomar a vida toda e no primeiro ano custa 750 mil dólares, as primeiras quatro injeções. Depois é cerca de 250 mil por ano. Este (Zolgensma) é uma injeção de toma única, custa dois milhões de dólares mas é uma vez”. “É essencial dar esta medicação o quanto antes [à Matilde] - para mim um mês já faz toda a diferença - para minimizar o estrago da doença”, faz sobressair.

A mensagem que deixam aos pais de Matilde

Rui e Anabela apoiam por completo a luta dos pais de Matilde e esperam que estes consigam angariar o dinheiro suficiente para tentar salvar a menina. O casal louva o que eles estão a fazer pela filha e se na altura em que Guilherme nasceu houvesse essa oportunidade, tinham também tentado ao máximo alcançá-la. “Agora este medicamento foi aprovado e acho que faz todo o sentido que lutem para o ter cá e para lhe dar. Tem de ser feito e deve-se reunir o máximo de apoio possível”, afirma Rui.

Além disso, não podem deixar de ver o lado bom que este caso trouxe: a exposição da realidade da desta doença. “É muito bom falar sobre este tema, acho que deve ser trazido à luz. Assim como esta doença, outras. As pessoas não devem ter vergonha de falar das coisas que acontecem e devem procurar ou criar grupos de apoio”, sugere Rui, que informa ainda que já tentou entrar em contacto com os pais da Matilde.

“Lembro-me perfeitamente do que passei e o quão difícil foi para mim focar-me no Guilherme por causa de todas as limitações físicas do cansaço psicológico, emocional e físico. Não é nada confortável estar a viver num hospital e não ter onde se deitar. A somar a isto tudo é toda a pressão mediática que deve estar a cair em cima deles”, reconhece, frisando: “Tão importante como a medicação e a luta é viver a vida com ela”.

Tendo já passado por uma experiência muito semelhante, o conselho que o pai de Gui deixa aos pais de Matilde é fazerem o ele que fez com o seu filho: “Fazer tudo o que puderem, preencherem a vida dele e viverem o máximo conseguirem de maneira a que, de hoje para amanhã, se as coisas correrem mal, olharem para trás e dizerem: a minha vida com ele foi preenchida. Foi aquilo que eu quis fazer e não sinto que me arrependa de alguma coisa”.

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