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A travessia aérea Lisboa-Macau que foi apagada da memória do Estado Novo

A primeira travessia aérea Lisboa-Macau em 1924 foi apagada da memória histórica durante o Estado Novo porque um dos seus protagonistas se opôs à ditadura militar e ao Estado Novo, referiu à Lusa a investigadora Cátia Miriam Costa.

A travessia aérea Lisboa-Macau que foi apagada da memória do Estado Novo
Notícias ao Minuto

08:57 - 05/02/19 por Lusa

País Ditadura

"Esta viagem foi apagada da memória portuguesa não porque seja menos importante, que a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Mas sobretudo porque Sarmento de Beires é um opositor ao regime que se anunciava", considerou à Lusa a investigadora do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do ISCTE, diretora da cátedra de Ibero-América Global e professora da disciplina de China contemporânea e coordenadora do curso China e Extremo oriente

"Apesar de militar, não concorda com a Ditadura militar, nem posteriormente com o Estado Novo, é um homem perseguido durante o período das ditaduras em Portugal", recorda.

Em 02 de abril de 1924, os aviadores José Manuel Sarmento de Beires (1892-1974) e António Jacinto da Silva Brito Pais (1884-1934), partem de Vila Nova de Milfontes, na foz do rio Mira, para uma aventura inédita, dois anos depois da travessia do Atlântico Sul (Lisboa-Rio de Janeiro) por Gago Coutinho e Sacadura Cabral.

Após uma viagem muito atribulada, alcançam os arredores da cidade chinesa de Cantão em 23 de junho após percorrem 16.380 quilómetros com várias escalas e recorrendo a dois aviões, o "Pátria" e o "Pátria II", o primeiro garantido na totalidade por subscrição pública.

O seu companheiro de viagem -- para além do alferes mecânico Manuel Gouveia, que se juntou aos dois aviadores na Tunísia -- não optou por esse posicionamento político após o golpe militar de 1926.

"Brito Pais não está envolvido intelectualmente nem ideologicamente com esse tipo de lutas, no entanto acaba por sofrer do mesmo ostracismo que vem do facto de não se poder reconhecer o seu companheiro de viagem", indica Miriam Costa.

A concretização da travessia, em 1924, também coincidiu com o início do conflito entre o governo da I República na sua fase terminal, e os aviadores ao serviço da Força Aérea.

"Durante a viagem Brito Pais e Sarmento de Beires demonstram a sua solidariedade com os aviadores que estão presos em Alverca. Tinham tentado rebelar-se em protesto contra medidas do Ministério da Defesa. Há uma série de dissensões, e por um lado houve sempre uma tentativa de demonstrarem a sua solidariedade", conta.

A sua receção em Macau foi triunfal, à semelhança da forma como são recebidos em Lisboa, com fanfarra perante uma multidão que os saudou no Terreiro do Paço. Recebem condecorações militares da I República, tornam-se referências nacionais.

Após a consolidação do novo regime, com a instauração do Estado Novo por Salazar, acentua-se o ostracismo a um dos heróis da grande viagem, como tinham sido designados pela imprensa da época.

"Sarmento de Beires é sempre descrito nos jornais como uma figura de sensibilidade. Ambos são aventureiros, mas o contrataste entre ambos resulta. Brito Pais é mais pragmático. Na descrição física e nas fotografias que são publicadas, Sarmento de Beires aparece mais alourado, o cabelo mais despenteado, é criada esta imagem, apesar de as suas fotos na imprensa serem a preto e branco", destaca.

Sarmento de Beires poderia ser definido como o "intelectual", esclarece a académica, autora de publicações que incluem estudos sobre Macau. Pelo contrário, Brito Pais terá optado por uma atitude mais discreta.

"É muito interessante que haja esse pendor ligado a essa sensibilidade literária. A verdade é que Sarmento de Beires se dava com muitos intelectuais, e isso explica também a publicação na Seara Nova", assinala em referência ao livro de poesia do major-aviador "Sinfonia do Vento", inserida da campanha de fundos para a concretização da viagem e distribuída nesse período, com uma tiragem de 1.000 exemplares.

"Deve sublinhar-se a adoção pela Seara Nova, como uma revista de cultura, deste projeto, uma publicação que depois será conotada com as oposições ao Estado Novo. Sarmento de Beires vem muito desse ramo e tinha uma vida intelectual muito intensa", salienta.

Os dois militares estiveram destacados em França durante a I Guerra Mundial, onde aprenderam a pilotar aviões, e aí reforçaram a sua amizade. Mas com personalidades distintas, insiste Miriam Costa.

"Sarmento de Beires faz tudo aquilo que um oficial do exército faria na sua época. Combateu na I Guerra Mundial, tem uma carreira irrepreensível em termos militares, mas em paralelo tem este interesse pela literatura e também pelas ideias políticas, e é isso que faz dele um opositor ao regime. Sempre se opôs ao golpe militar e ao salazarismo", acentua.

O antigo aviador do grupo de Esquadrilhas da Aviação República, natural do Porto, autor de romances e de um livro de poemas, e o primeiro a efetuar uma travessia noturna do Atlântico Sul em 1927 no "Argos", será demitido das Forças Armadas e forçado ao exílio.

Antes das sentenças, Sarmento de Beires esteve envolvido em tentativas de derrube da ditadura. Foi preso em Lisboa em 1933 e condenado no ano seguinte a sete anos de desterro, com perda dos direitos cívicos durante dez anos.

A sua condenação e detenção na prisão do Aljube coincide com a morte do seu companheiro de aventura Brito Pais, aos 49 anos, vítima de acidente aéreo em 1934.

"Foi impedido de comparecer no funeral, assiste à passagem do cortejo fúnebre a partir da prisão. Deixam-no ver através das grades, mas não o deixam descer. Foi algo que o marcou, depois escreve sobre isso", indica a investigadora.

Mas Sarmento de Beires acabará por se fixar no Brasil durante alguns anos, onde mantém intensa atividade de jornalista, escritor, tradutor e cronista. Em 1951 foi amnistiado e integrado na reserva com o posto de major, e em 1964 recebeu o título de Comendador da Ordem do Império. Mas nunca figurará nas notas da moeda nacional, como sucedeu a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, celebrados nas antigas notas de 20 escudos.

Sarmento de Beires morre na cidade do Porto em 08 de junho de 1974, aos 81 anos. Em Vila Nova de Milfontes ainda prevalece um monumento ao avião "Pátria", que recorda a façanha aérea dos dois militares.

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