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Crowdfunding de greves pode ter efeito perverso de "concorrência desleal"

O financiamento colaborativo de greves pode ter um "efeito perverso" se os fundos tiverem origem em concorrentes das entidades empregadoras atingidas pelo protesto, alertam especialistas ouvidos pela Lusa.

Crowdfunding de greves pode ter efeito perverso de "concorrência desleal"
Notícias ao Minuto

08:35 - 22/12/18 por Lusa

País Especialista

A forma de financiamento da greve dos enfermeiros, através de 'crowdfunding', que decorre há um mês, pode colocar questões de concorrência desleal e ser um sintoma de que os tradicionais fundos de greves já não se adequam ao novo perfil de paralisações, em relação ao qual o atual ordenamento jurídico laboral ainda não consegue dar resposta.

António Monteiro Fernandes, professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, alerta para que "se terceiros (por exemplo, um partido político ou uma empresa concorrente) se aproveitam dessas greves, no sentido de promoverem a greve ou o seu prolongamento, como será o caso da participação no 'crowdfunding', isso implica a possibilidade de investigação da identidade dos contribuintes" participantes na recolha de fundos.

"Imagine-se que as empresas detentoras de hospitais e clínicas privados aderiam maciçamente ao 'crowdfunding'. Haveria, sem dúvida, ilegalidade, mas não do lado da greve -- do lado das empresas, pela prática de concorrência desleal", afirma o professor.

O professor do ISCTE nota, contudo, que, "em termos legais, a situação está bastante desprotegida" e, "no que respeita à hipótese de concorrência desleal, o Código da Propriedade Industrial encarrega a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) de a fazer", mas o que pode daí resultar é uma coima e, eventualmente, responsabilidade civil para a entidade infratora.

Também Marta Carvalho Esteves, advogada da JPAB especializada em Direito do Trabalho, admite que poderá ocorrer "o efeito perverso de existirem outras entidades a financiar os trabalhadores grevistas como forma de obterem vantagens económicas, políticas, entre outras, com as greves de longa duração e com grande adesão".

A especialista em Direito do Trabalho indica que "não é possível garantir que não existem interesses privados ou partidários envolvidos nas doações realizadas através de uma plataforma 'crowdfunding', uma vez que não será possível aceder a tal informação, podendo, então, ocorrer o efeito perverso do financiamento colaborativo".

Também Pedro da Quitéria Faria, sócio responsável pela Área de Prática de Direito Laboral da Antas da Cunha Ecija, frisa que "não é absolutamente líquido e garantido que não existam interesses de terceiros privados ou partidários envolvidos em operações desta natureza".

O especialista em Direito Laboral alerta para "a dimensão e complexidade que reveste a aplicação deste regime num movimento grevista", no cenário de uma paralisação "financiada por terceiros privados que possam ter um oculto interesse, em que tais cirurgias sejam realizadas - dada a sua indiscutível necessidade - no sistema privado de saúde durante todo o período da greve".

A ASAE será a entidade responsável pela fiscalização, instrução processual e aplicação de coimas e sanções acessórias da atividade de financiamento colaborativo através de donativo, conforme previsto no regime sancionatório aplicável.

Os especialistas ouvidos pela Lusa também consideram que a adoção do 'crowdfunding' para financiar a greve dos enfermeiros é sinal do advento do direito laboral tecnológico, sendo um sintoma de que os fundos de greve se tornaram insuficientes para o novo perfil de paralisações.

"Com o advento desta nova e criativa forma de financiamento de uma greve, é absolutamente cristalino que já estamos no âmbito do chamado direito laboral tecnológico, ou da "uberização" do direito do trabalho, na era da economia das plataformas digitais", considera Pedro da Quitéria Faria.

O especialista em Direito Laboral acredita que o movimento visível nos últimos anos é "uma verdadeira revolução no paradigma do direito laboral clássico, que é absolutamente irreversível", e antecipa que o legislador terá que acompanhar com "total prudência" este movimento, uma vez que se levantam "questões altamente complexas e novas às quais o nosso ordenamento jurídico laboral ainda não tem capacidade de previsão nem resposta".

No mesmo sentido, António Monteiro Fernandes destaca que "as greves de hoje fogem em muitos aspetos à sua configuração tradicional", existindo "greves intermitentes, articuladas, etc.", cujo "mecanismo, para ser eficaz, requer paralisações longas, difíceis de manter por causa da perda dos salários".

Para o professor do ISCTE, "não há fundos de greve (alimentados por uma parte das quotizações sindicais) que resistam a greves prolongadas" e "o 'crowdfunding' surge como uma solução que tem a vantagem de poder exprimir o grau de solidariedade do público com a greve".

Também Marta Carvalho Esteves frisa que "uma greve de cerca de 40 dias, em cinco centros hospitalares, com milhares de enfermeiros a aderir à greve, será de difícil suporte financeiro, mesmo com as contribuições dos trabalhadores sindicalizados para o fundo de greve".

Por isso, a especialista em Direito do Trabalho considera que o 'crowdfunding' funcionará "como uma forma de financiamento de greves que se prolongam no tempo, quando os fundos de greve se tornam insuficientes", não sendo uma questão de estarem a cair em desuso, mas estarem "antes a revelar-se insuficientes para suportar financeiramente greves com muitos trabalhadores aderentes e prolongadas por um longo período de tempo".

António Monteiro Fernandes admite que os fundos de greve não bastarão para suportar uma paralisação prolongada, não se tratando de desuso, mas, "nuns casos, de inviabilidade e, noutros, de insuficiência".

Já para Pedro da Quitéria Faria, o 'crowdfunding' é um sintoma de que "os fundos de greve, que já rareiam, poderão vir a ser condenados num futuro próximo à sua quase total irrelevância, ou mesmo ao seu desaparecimento".

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