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"É eticamente inaceitável que se transfira o poder de morte"

Jorge Bacelar Gouveia é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"É eticamente inaceitável que se transfira o poder de morte"
Notícias ao Minuto

09:00 - 28/05/18 por Filipa Matias Pereira

País Bacelar Gouveia

É professor universitário, jurisconsultor, árbitro e advogado. Ao longo do seu percurso profissional, além de contribuir para a formação de novas gerações através da transferência de conhecimento, tem contribuído para o desenvolvimento do Direito em Portugal. Falamos de Jorge Bacelar Gouveia.

Reconhecido pelos pares e aplaudido pelos congéneres, foi presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa e, durante o ano de 2009, foi ainda presidente do OSCOT (Observatório sobre Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo).

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Jorge Bacelar Gouveia sublinha que Portugal é um país seguro, mas há ainda um longo caminho a percorrer neste domínio. Portugal não é, como refere, imune à ameaça terrorista que paira sobre a Europa, essa ‘nuvem negra’ omnipresente: “A diminuição de influência do Daesh pode ter consequências perniciosas sobre a Europa”, alerta.

Entre 2009 e 2011, foi deputado à Assembleia da República, na XI Legislatura. Veste as cores do PSD, mas de momento é apenas um militante de base. De Rui Rio espera que leve o partido ao poder, apesar de “o início da viagem” estar a revelar-se “mais espinhoso do que se pensava”.

Uma conversa que não passou à margem da análise da situação em que o Sporting Clube de Portugal está envolto. Enquanto ex-presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar do Sporting, é um perfeito conhecedor da dinâmica do clube leonino e considera que esta é a altura em que "o povo sportinguista” deve ser soberano, já que ‘o povo é quem mais ordena’.

Como analisa a performance de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto Presidente da República?

Conheço-o há muitos anos. É um grande professor com quem tenho uma relação académica porque, além de ter sido meu professor da licenciatura, foi meu orientador de mestrado e arguente de doutoramento. Simultaneamente, ainda participou em todas os concursos públicos da minha carreira universitária. Por isso, sou suspeito e faço a minha declaração de interesses antes de fazer a avaliação. Mas acredito que ele tem sido fiel a si próprio. Julgo, aliás, que tem interpretado bem o papel de Presidente.

Foi constituinte, conhece bem a Constituição da República Portuguesa (CRP) e creio que tem dado uma nova perspetiva à função presidencial e tem-se portado verdadeiramente como um 'Provedor do Povo', não num papel institucional e formal, mas informal e também utilizando como ninguém o conhecimento da comunicação dos 'mass media'. Por isso mesmo, tornou-se também um Presidente poderoso. A sua força está na grande capacidade de comunicação, na utilização de forma seletiva e incisiva dos meios de comunicação social e, portanto, tem granjeado grande popularidade. Ele é, sem dúvida, o órgão de soberania com mais poder em Portugal.

Enquanto Chefe da Nação, o Presidente da República mantém-se refém do partido que está na sua base? É utópico dizer-se que um presidente é apartidário?

Quando alguém se torna Presidente da República não esvazia o seu pensamento ideológico, não deixa de ter as suas convicções e, nesse aspeto, percebe-se que o professor Marcelo Rebelo de Sousa continua a ser um social-democrata e a ter as suas convicções. E isso só lhe fica bem porque, enquanto Presidente da República, poderia pensar em vestir um outro papel para tentar uma reeleição ou agradar ao maior número possível de eleitores. Mas ele continua a ser fiel a si próprio com as suas convicções políticas, ideológicas, morais e religiosas.

Porém, também é verdade que tem um passado político. Foi deputado e presidente de um partido e, aliás, liderando uma ala do PSD, sendo que na altura constituiu uma minoria crítica de Cavaco Silva quando, durante 10 anos, este foi presidente do PSD. É natural que tenha um sentimento, uma afetividade especial pelo partido, pelas suas preocupações e pelos seus tempos que são difíceis e atribulados. Portanto, tem um especial relacionamento de amizade com algumas personagens e dirigentes do PSD e não vejo nada de mal nisso.

Diria que a Constituição já não precisa apenas de uma 'cirurgia estética', mas em alguns casos carece de uma 'cirurgia reconstrutiva'

Com mais de quatro décadas, a Constituição da República Portuguesa (CRP) continua a ser a trave mestra da democracia?

Sim, a Constituição tem sobrevivido a muitas mudanças que em 1976 eram imprevisíveis, a principal delas a integração na União Europeia, embora depois tivesse sido revista nesse sentido. Mas, apesar disso, a CRP acusa um certo desgaste, envelhecimento. Diria que a Constituição já não precisa apenas de uma 'cirurgia estética', mas em alguns casos carece de uma 'cirurgia reconstrutiva'. Realmente, o mundo hoje é muito diferente daquele que tínhamos há 40 anos, não só no plano internacional como no nacional.

Há alguns assuntos em que esse desgaste é mais evidente, nomeadamente na matéria da reforma do sistema político, que é manifestamente uma urgência porque hoje o modo de representação dos interesses é completamente diverso do que era há décadas, onde as únicas instituições que o faziam eram os partidos políticos, hoje não. Agora há associações, há grupos e há mesmo uma certa aversão aos partidos políticos por parte de certos setores e isso é algo que é necessário considerar.

Outra área em que é preciso mudar é a da segurança, numa perspetiva mais global. E falo de segurança interna, militar, policial e da proteção civil. É uma área que se tornou muito importante. Portugal é um dos países mais seguros do mundo, mas a CRP ainda ficou presa no tempo em que a segurança era sobretudo militar. Pouca importância se dava à segurança interna e nenhuma à assegurada pelos serviços de informações ou até à proteção civil. Isso tem de ser reequacionado, sobretudo na perspetiva de haver uma maior cooperação entre as várias estruturas de segurança.

Outro ponto importante é o da justiça, que vive um momento crítico. Claro que a culpa da crise da justiça não é da Constituição. O problema da justiça é essencialmente de atraso e de reorganização dos tribunais, de reacerto de competências e do perfil dos próprios juízes. Nem sequer temos, ao nível europeu, um número de juízes abaixo da média; temos é demasiados processos. Por isso, torna-se imperioso reorganizar quer os tribunais, quer leis processuais no sentido de diminuir o número de processos para que o juiz possa ter uma maior produtividade. Além disso, é necessária maior transparência e uma menor conflitualidade entre os operadores da justiça.

Se os titulares de outros órgãos de soberania têm esse dever, porque é que os que são titulares do poder judicial também não o terão? Em que sentido?

É necessário que os juízes e os procuradores façam uma declaração de rendimentos e de património porque até à data têm estado isentos desse dever. Quando fui deputado, entre 2009 e 2011, propus isso e finalmente agora vai ser aprovado. Na altura, alertei para essa situação porque se fez um pacote contra a corrupção. Ninguém me deu ouvidos, nem no interior do meu partido; ninguém achou que isso seria importante porque se entendia que era uma afronta aos juízes e aos procuradores. Agora, pelos vistos, ao fim de sete anos, tornou-se algo consensual.

Isto não quer dizer que haja desconfiança, mas é uma questão de igualdade. Se os titulares de outros órgãos de soberania, poder executivo e legislativo, têm esse dever, porque é que os que são titulares do poder judicial também não o terão? 

No seu último livro editado – Direito da Segurança – propôs-se analisar a legislação de segurança interna. Quais as conclusões a que chegou? Há, efetivamente, fragilidades na segurança portuguesa?

Há várias fragilidades e muita legislação dispersa e repetitiva. Há uma congestão de legislação na área da segurança; legislação contraditória e sobretudo obsoleta. A área da segurança está pouco estudada do ponto de vista académico, sendo muito deixada aos práticos. Claro que fazem o seu papel, mas não há em Portugal uma reflexão científica crítica de alto nível na relação da segurança com o Direito. Nos últimos tempos, alguns aspetos têm vindo a mudar, só que ainda nos falta uma escola portuguesa de segurança, como já existe em Copenhaga, Paris e Gales. Temos tido algum papel em missões internacionais, sobretudo através dos militares, mas falta-nos, do ponto de vista académico, assumir um pensamento científico e estratégico da própria matéria de segurança. Do prisma institucional, também me parece que é mais evidente uma ausência de diálogo intenso entre as várias estruturas de segurança. Cada um está no seu canto.

É partidário, então, de uma coesão entre as forças de segurança – militar, policial, de inteligência e de proteção civil?

O essencial seria criar um sistema de segurança nacional que agregasse cada um dos vários sistemas que existem. São quatro funções distintas, é verdade. Cada uma tem o seu papel e os seus poderes, equipamentos, doutrinas e agentes, mas têm de trabalhar numa maior cooperação. Penso que seria importante construir-se um sistema que fosse, a um tempo, um conceito doutrinário institucional, operativo, que pudesse juntar estas várias estruturas e pô-las em ação nalguns momentos mais críticos.

Finalmente, isso está agora a ser feito, sobretudo através do sistema de segurança interna, já que está a ser trabalhada uma cooperação das forças militares. Mas há zonas complexas, como é a do mar. A segurança marítima é hoje uma área muito importante e há alguma confusão e atropelo de competências porque temos várias instituições que são competentes no policiamento do mar, nomeadamente a GNR com a unidade de controlo costeiro, a Polícia Marítima, a Polícia Judiciária na investigação criminal mais grave e a Marinha que tem meios e que pode agir fora do mar territorial. Portanto, estas matérias devem ser refletidas e não me parece que haja condições para criar uma guarda costeira, que seria uma estrutura que agruparia todas as valências. Seria um misto de uma força militar, policial e de investigação criminal, como há nos EUA.

É inadmissível que um Estado avançado como somos não proteja as pessoas que fogem de um incêndio

Disse publicamente que Portugal “é um país seguro até que nos aconteçam surpresas como Pedrógão”. Sem um sistema nacional de segurança como advoga, estamos preparados para enfrentar o próximo verão?

Quero acreditar que estejamos preparados [para os incêndios]. Acho que é preciso ser justo e reconhecer que o Governo e as estruturas da proteção civil têm vindo a falar muito neste assunto e até o Presidente da República tem tido um papel muito visível, mostrando a sua preocupação. O professor Marcelo já chegou ao ponto de dizer que se tudo isto se repetir [cenário de incêndios de 2017] não será candidato presidencial. Acho que está a exagerar. Mas isso é uma forma enfática de chamar a atenção para um grave problema porque é inadmissível que um Estado avançado como somos não proteja as pessoas que fogem de um incêndio e que tenham morrido 120 pessoas. Acho que chegámos ao grau zero da proteção civil…

Reconheço, no entanto, que tem sido feito algum esforço e isso é louvável. As questões são mais difíceis hoje porque as alterações climáticas determinam uma maior amplitude do tempo de risco em relação aos fogos. Por outro lado, as coisas também são complicadas do ponto de vista dos custos porque sabemos bem que os meios aéreos são caríssimos. Há ainda um problema de base que tem que ver com a coordenação dos bombeiros voluntários, que são estruturas autónomas. São centenas de associações humanitárias de bombeiros que têm a sua própria liderança, ainda que haja um organismo enquadrador, a Liga dos Bombeiros Portugueses. Porém, não é fácil conjugar estratégias e esforços entre essas várias dimensões. Esse é o desafio que está lançado à política de segurança na parte da proteção civil.

A repetir-se a tragédia de 2017 em relação aos incêndios, o Governo tem legitimidade para se manter no poder?

Espero que não aconteça mais nenhuma tragédia. Não quero ser o profeta da desgraça. O Governo teve algumas falhas nesta área, sobretudo de coordenação e outros aspetos menos confessáveis que surgiram, como mandar apagar a fita do tempo, o que é lamentável. Duvido que a reforma que a proteção civil exige se faça de um ano para o outro. Está a ser pensada uma reforma da Lei de Bases da Proteção Civil que não ficará concluída a tempo deste verão e, além disso, os relatórios [da Comissão Técnica Independente] também demoraram algum tempo a ser feitos porque eram complexos e, em geral, foram bem feitos.

O tempo político de digestão desses relatórios é um tempo que tem a sua duração. Mas é verdade que se notou alguma preocupação e houve, aliás, uma orientação para reforçar o Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS), que é uma solução possível, embora seja uma estrutura da Guarda Nacional Republicana composta por guardas de uma força de segurança preparada para intervenções específicas e mais acutilantes.

 Temos a ideia de que a segurança é do Estado e que somos apenas um destinatário passivo. Não. Temos o direito à segurança, como temos o direito à vida, à liberdade, à honraNo livro que editou, analisa a segurança de acordo com duas perspetivas: um imperativo constitucional e um direito do cidadão. O Estado tem conseguido assegurar esse direito?

Sim, de facto, tentei trazer essa dicotomia para a discussão sobre a segurança. Temos a ideia de que a segurança é do Estado e que somos apenas um destinatário passivo. Não. Temos o direito à segurança, como temos o direito à vida, à liberdade, à honra. Temos o direito de exigir ao Estado e às estruturas de segurança que protejam o cidadão. E, portanto, onde houver falhas de segurança, o cidadão deve exigir que elas não aconteçam e, se ocorrerem por negligência ou incompetência, deve acionar o Estado para ser devidamente indemnizado e politicamente responsabilizado.

Falta-nos um pouco a consciência de que a segurança não é só um bem-estar coletivo, mas do mesmo modo um bem individual. Este direito individual à segurança não é algo novo. As revoluções constitucionais foram feitas sob esse lema. Liberdade, igualdade e fraternidade eram os ideais da revolução francesa. A nossa, que se inspirou na francesa, apelava à liberdade, igualdade e segurança. Portanto, a segurança está na base do Estado constitucional e há um célebre autor – Thomas Hobbes, no Leviatã, muito antes da Revolução Liberal – que justifica o nascimento do Estado com o principal objetivo de garantir a segurança de todos.

Na obra publicada, explica que existem 29 órgãos de polícia criminal. Como se articulam estas forças de segurança?

Há uma grande diversidade de matérias onde pode haver crimes. Cada entidade reguladora de um setor da vida tem possibilidade de instaurar procedimentos criminais e de dar início a um inquérito criminal. É por isso mesmo que há um tão grande número de órgãos de polícia criminal, são órgãos que podem recolher provas e dar início a um inquérito, que ficará depois sob a responsabilidade do Ministério Público. Este aspeto é positivo no sentido em que qualquer entidade que intervenha numa área da vida, ao verificar a prática de um crime, pode intervir de imediato. Só que isso tem de ser feito com uma certa coordenação porque há um conjunto de técnicas de investigação criminal que não são igualmente bem realizadas por estas 29 instituições, que não têm o mesmo grau de proficiência. A meu ver, seria interessante agrupar estes 29 órgãos em três ou quatro conjuntos, liderados por instituições prestigiadas de investigação criminal.

Se houver dúvidas quanto à constitucionalidade, correremos o risco de sermos o único país da Europa cujos serviços de informações não terão acesso a interceções telefónicas nem a metadados

Em agosto de 2017, foi promulgado um diploma que prevê que as secretas tenham acesso a dados de tráfego e de localização de suspeitos de espionagem e terrorismo. Mas, até hoje, essa lei não está posta em prática. Há algum motivo que possa explicar a não aplicação do diploma?

Este é um dos assuntos na área da segurança que tem de ser revisto na Constituição, onde se prevê haver interseções de chamadas telefónicas somente no âmbito do processo criminal, com autorização do juiz. O problema é que os serviços de informações não fazem, em Portugal, investigação criminal. Realizam uma atividade que está a montante disso. Trata-se de um trabalho de recolha de dados e de informação, preparando relatórios para municiar o poder político da probabilidade de certos cenários de ameaça se venham a concretizar.

Penso que em Portugal, de uma vez por todas, devemos dotar os serviços de informações dos meios necessários, tal como acontece noutros países tão ou mais democráticos do que nós e ninguém duvida da sua capacidade.

Por outro lado, e isso já é menos complicado, seria de aceitar que os serviços de informações tivessem acesso aos metadados. Não me refiro ao conteúdo das mensagens, mas aos dados de tráfego, de localização, de quem enviou e recebeu, quando e onde. Sobre esse assunto foi feita uma lei há três anos, que foi considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva. No entanto, no ano passado foi aprovada uma nova lei, diferente da primeira que foi chumbada, que não foi submetida a fiscalização preventiva e que foi promulgada.

É certo que está em curso um processo de fiscalização sucessiva pedido pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. A meu ver, não é inconstitucional porque é muito diferente da primeira, já que não tem o grau de interferência na privacidade e o acesso por parte dos serviços de informações aos dados é sempre garantido com intervenção de uma secção especial do Supremo Tribunal de Justiça com a participação de juízes conselheiros.

Se houver dúvidas quanto à constitucionalidade, correremos o risco de sermos o único país da Europa cujos serviços de informações não terão acesso a interceções telefónicas nem a metadados, quando esta foi uma indicação da União Europeia numa diretiva aprovada por todos os países depois dos atentados de Londres. Acho que ficaríamos muito mal nessa fotografia.

A progressiva diminuição de influência do Daesh pode ter consequências perniciosas sobre a Europa

No ordenamento jurídico português, até declaração do Tribunal Constitucional em contrário, a lei mantém-se em vigor. Por que motivo não está então a ser aplicada?

De facto, não percebo porque é que ela não está a ser posta em prática. Segundo me dizem, faltará um regulamento ou uma portaria. Acho que o Governo deve, com urgência, aprovar esse diploma porque se não o faz coloca-se numa posição difícil. Não foi o Governo que pediu a fiscalização sucessiva e, através do partido que o apoia, o PS, aprovou a lei, tendo-se seguido a promulgação por parte do Presidente.

Mas se o Governo não a põe em prática faz transparecer para a opinião pública que tem dúvidas quanto à sua constitucionalidade e cai numa contradição. Talvez procure um equilíbrio de assumir que considera a lei válida, mas como o apoio parlamentar mais à Esquerda acha que tal lei é inconstitucional – forma o BE e o PCP que pediram a tal fiscalização – resolveu não a aplicar, assim arranjando um equilíbrio com essa franja parlamentar de apoio.

Enquanto o diploma não for declarado inconstitucional, presume-se que é válido. Não há nada que impeça a sua aplicação e é, sobretudo, uma questão de necessidade. As ameaças existem e são reais. Ao contrário do que se pensa, a progressiva diminuição de influência do Daesh pode ter consequências perniciosas sobre a Europa porque as suas células são completamente deixadas à deriva e agem por conta própria. Aliás, tem-se provado que os mais recentes atentados são feitos por gente jovem que já não tem nada que ver com o Daesh e, portanto, se a sede do grupo terrorista terminar, isso não significa que acabe a ameaça periférica que paira sobre a Europa. Portugal não pode, pois, deixar de ter essa alavanca de proteção que é, neste caso, o acesso aos metadados por parte dos serviços de informações com todas as garantias que me parecem razoáveis.

O facto de no passado recente os outros terem tido atentados terroristas e nós não é acrescido fator de preocupação. Podemos ser dos próximos alvos Portanto, é a segurança de Portugal contra o terrorismo que está em causa?

Sim, com certeza. Muitos dizem que Portugal ainda não teve um atentado terrorista. Isso não é verdade porque já teve vários nos anos 80. No passado mais recente, efetivamente, não teve e o facto de os outros terem tido e nós não é um acrescido fator de preocupação porque significa que podemos ser um dos próximos alvos. Esperemos que isso não suceda. Para termos essa garantia, é imperioso dotar o Estado dos meios disponíveis. 'Depois de casa roubada, trancas à porta': é esta, infelizmente, a forma de agir na política portuguesa e temos de contrariar isso.

Tem-se discutido, nos últimos dias, a despenalização da eutanásia. Qual a sua posição sobre o tema?

Sou contra, sempre fui. E à medida que vou envelhecendo, a minha posição não muda e espero que a eutanásia não seja legalizada. Reconheço que é um assunto complexo, mas a questão essencial, além da religiosa, é ética. Parece-me eticamente inaceitável que se transfira o poder de morte sobre uma pessoa para um profissional de saúde ou para o próprio Estado. Ou ainda que muitas vezes a eutanásia se possa desenvolver nalguns casos marginais com uma ótica economicista, em que o Estado pouparia dinheiro à custa da morte antecipada de pessoas sob o pretexto de lhes poupar sofrimento, mas com isso evitando umas despesas apreciáveis. Há que lembrar que há pessoas que recuperam depois de 10 anos em coma. Há sempre uma réstia de esperança em relação ao futuro.

Barrigas de aluguer mereciam, porventura, ao nível de direitos humanos, um tratamento mais incisivo, com discussão científica

Já em relação à Lei de Procriação Medicamente Assistida (PMA), o Tribunal Constitucional chumbou a regra do anonimato de dadores. Enquanto constitucionalista, como avalia esta decisão?

É uma questão árdua. A decisão do Tribunal Constitucional deve ser a mais extensa até hoje, são 150 páginas e há votos cruzados. Não se vê aqui uma Esquerda e uma Direita, se é que me é possível exprimir nestes termos em relação aos juízes, que são imparciais e independentes, embora indicados e votados por deputados que pertencem a partidos políticos. Porém, na esmagadora maioria dos casos, têm sido fiéis à sua independência e consciência e, por isso, louvo o TC nessa sua capacidade em vários momentos, alguns deles até recentes da vida política portuguesa.

Se fosse juiz do Constitucional, não sei se decidiria pela inconstitucionalidade desta matéria porque aqui há questões éticas, mas também pragmáticas porque vivemos num mundo global em que a PMA é feita noutros países e há uma dimensão de inserção na realidade. E algumas proibições são facilmente contornadas pelas pessoas que têm mais dinheiro e podem ir a outro país onde não existem essas regras. Penso, por isso, que o mais importante é pensar numa convenção internacional que estabeleça um conjunto de direitos. Já existe uma convenção, sobre direitos humanos e biomedicina, que não chega a este pormenor porque está sobretudo direcionada para a questão da clonagem. Mas as barrigas de aluguer mereciam, porventura, ao nível de direitos humanos, um tratamento mais incisivo, com discussão científica.

Manuel Pinho já não é arguido no caso EDP. O juiz deu razão à defesa que advogava a arguição da nulidade da constituição de arguido. O Ministério Público já anunciou que vai recorrer. É ou não arguido?

É sempre necessário procurar a verdade e não pode ser à ‘bruta’, mas sim de acordo com a legalidade e com as regras do Processo Penal. Desse ponto de vista, acho que o Ministério Público deve respeitar a lei e se fez a constituição de arguido de uma forma errada, tem de se sujeitar a que seja considerada nula. É preciso distinguir dois tipos de apreciação, a mediática, que tem sido bastante abrasiva em relação ao assunto - e compreendo porque ele foi um governante com responsabilidade e, no fundo, ocultou um conjunto de informações que não significavam que ele fosse criminoso, mas que era importante saber-se por parte da opinião pública.

A outra apreciação está relacionada com o julgamento de natureza criminal que só à justiça compete fazer. Acredito que os dois processos são paralelos, embora não se deva achar que por haver presunção de inocência do arguido fiquemos proibidos de discutir, na opinião pública, aspetos de natureza política por ele ter ocultado um conjunto de informações que se vieram a revelar verdadeiras. Acho muito bem que o Parlamento faça uma comissão de inquérito.

A defesa do ex-ministro alega que está há mais de dez meses a aguardar para que Manuel Pinho seja ouvido pelo Ministério Público. É legítima esta demora?

Este é um processo complexo, o Ministério Público não tem muitos meios e há sobretudo outros casos que têm absorvido muitos recursos. Mas isso é um problema geral da justiça, de falta de meios e de ausência de celeridade. Apesar de tudo, a justiça penal tem sido bastante rápida, apesar de haver casos complicados como é o caso Sócrates.

Não me repugnava que houvesse uma reflexão no âmbito da presunção inocência

Precisamente em relação ao caso Sócrates, apesar de prevalecer a presunção de inocência até trânsito em julgado, acredita que ‘mancha’ a imagem política do país?

A presunção de inocência, um valor constitucional, tem de ser vista na verdade das coisas. Claro que se vir alguém a matar uma pessoa, terei uma conceção da inocência diferente da pessoa que não assistiu ao crime. Aliás, a presunção de inocência tem conceções diferentes em vários países. Nós, porventura, em algumas questões, temos uma visão maximalista da presunção de inocência do arguido. Este é um assunto que deve ser refletido. A ideia da multiplicação dos crimes, do prolongamento da decisão e dos sucessivos recursos criam uma sensação de impunidade. Portanto, não me repugnava que houvesse uma reflexão no âmbito da presunção inocência.

Este arranque do Dr. Rui Rio tem sido difícil. O início da viagem tem-se revelado mais espinhoso do que se pensava

Enquanto antigo deputado do PSD, acredita que Rui Rio é um líder prazo?

Sou militante do PSD desde os 18 anos; agora não tenho atividades políticas, sou apenas militante de base. Trata-se de um partido que faz parte da história do país. O Portugal Democrata deve muito ao PSD e aos seus diferentes dirigentes.

Mas, realmente, este arranque do Dr. Rui Rio tem sido difícil. O motor de arranque tem tido algumas falhas. O início da viagem tem-se revelado mais espinhoso do que se pensava. Apoiei o Dr. Santana Lopes, mas uma vez que Dr. Rui Rio ganhou, com toda a legitimidade, o partido deve unir-se em torno dele e não haver oposições internas. E saliento que estou disponível para trabalhar naquilo que for útil e adequado. Há muitas áreas que conheço bem e em que posso colaborar, sobretudo na justiça, na segurança, na reforma do Estado e na revisão constitucional, que é, aliás, uma importante bandeira do Dr. Rui Rio e a meu ver bem. Infelizmente, o PS já veio dizer que não quer rever a Constituição: acho inacreditável.

Até agora, os resultados políticos do Dr. Rui Rio não são copiosos, mas vamos dar tempo ao tempo e esperar que o Dr. Rui Rio se possa afirmar como um líder e levar o PSD à vitória nas próximas eleições.

Bruno de Carvalho começou bem e todos lhe reconhecemos os benefícios que para o clube foram trazidos pela sua energia e inteligência

Enquanto ex-presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar do Sporting, como vê a polémica na qual o clube tem estado envolto, sobretudo as agressões na academia de Alcochete?

Não tenho informação privilegiada, mas é uma coisa horrível, impensável, porque ainda por cima significou a violação de um espaço reservado de um clube. Os prevaricadores passaram por todos os controlos que uma instituição como o Sporting deveria ter para conter uma intervenção com aquelas características com objetivo de ameaçar, de agredir e de destruir instalações.

O Dr. Bruno de Carvalho, perante isso, tomou algumas decisões importantes no âmbito da segurança, ainda que só anunciadas depois do final da Taça. Vejo uma grande desorientação e desentendimento nos órgãos sociais do clube: a Mesa e o Conselho Fiscal e Disciplinar, ao que sei, demitiram-se e o conselho diretivo entendeu que deve continuar em funções. Trata-se, como se percebe, de uma situação insustentável do ponto de vista de estabilidade do clube. Acho que os sócios devem ser chamados a intervir. Quando há dúvidas com esta gravidade sobre a continuidade das pessoas, é o povo quem deve decidir e deve ser o 'povo sportinguista' a ter a palavra sobre o assunto. Da minha parte, sempre estive e estarei disponível, apesar de nos últimos tempos sem funções sociais, para ajudar o Sporting Clube de Portugal, que é o meu clube de sempre.

O atual presidente começou bem e todos lhe reconhecemos os benefícios que para o clube foram trazidos pela sua energia e inteligência, permitindo salvar o clube e colocá-lo nos três grandes porque, durante muito tempo, o Sporting sempre esteve arredado do que quer que fosse. Porém, em alguns comportamentos recentes não foi feliz - para não dizer infeliz – e a sensação é de crise interna grave. A única solução é a de que os sócios digam de sua justiça.

O que aconteceu em Alcochete não foi culpa do SportingSe Bruno de Carvalho não se demitir, pode ser destituído? Como?

Os estatutos devem ser respeitados. Se o órgão está em funções e não perde o quórum, mantém-se em funções. Mas uma coisa é uma legalidade formal, outra é uma legitimidade política para gerir um clube. Precisamente por isso, antes propriamente de uma assembleia eletiva – só pode haver eleições quando há vacatura dos lugares ou demissões – deve haver uma assembleia geral.

Muito se tem falado também sobre a rescisão contratual dos jogadores do Sporting. É legítimo que isso aconteça?

Não porque o que aconteceu em Alcochete não foi culpa do Sporting. O clube tem a estrutura da academia que tem funcionado bem e ninguém poderia alguma prever o que de grave aconteceu: um conjunto de pessoas que entrem e partam tudo. Pode acontecer em qualquer lugar. São factos que não podem ser imputados ao clube.

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