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"Da enorme popularidade de Marcelo vem uma força política imensa"

Jorge Reis Novais, constitucionalista, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Da enorme popularidade de Marcelo vem uma força política imensa"
Notícias ao Minuto

09:00 - 01/02/18 por Filipa Matias Pereira

País Jorge Reis Novais

Foi consultor para Assuntos Constitucionais de Jorge Sampaio e de José Sócrates. Assinou várias obras de revelo no panorama do Direito Constitucional. É docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Hoje, é um nome sonante no mundo do Direito, o que, no fundo, é o corolário de 40 anos dedicados ao ensino e à investigação. Falamos de Jorge Reis Novais.

Os dois anos de mandato que Marcelo Rebelo de Sousa recentemente completou deram o mote a esta entrevista ao Notícias ao Minuto, que decorreu em ambiente académico, num espaço da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se 'respira' História. Ali, sob a égide de ilustres figuras que passaram por aquela casa do conhecimento, Jorge Reis Novais fez um balanço do mandato do atual Presidente da República, aproveitando ainda a oportunidade para defender melhorias na organização do sistema político.

Marcelo Rebelo de Sousa assinalou recentemente dois anos de mandato como Presidente da República. Como analisa a sua performance enquanto chefe da Nação?

Do meu ponto de vista, o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa tem sido uma surpresa positiva, já que deu uma nova vida, vitalidade e força ao cargo de Presidente da República (PR) que estava menos bem visto aos olhos dos cidadãos nos últimos mandatos. Em muito pouco tempo o professor Marcelo conseguiu dar uma viragem à forma como o chefe de Estado era visto. O Presidente Marcelo tem afirmado verdadeiramente um mandato típico de um presidente de semipresidencialismo. Este Presidente não precisa de intermediação para estar com os portugueses e isso dá-lhe uma enorme popularidade e daí vem uma força política imensa.

No fundo, cada um dos nossos Presidentes tem exercido o mandato de uma maneira própria, muito influenciada pela personalidade de cada um. Já Marcelo tem feito uma síntese muito feliz que no fundo nos permite ver o que significa o cargo de Presidente da República no nosso sistema de governo que nem é parlamentar, onde o presidente praticamente não tem peso político, nem é um sistema presidencial, onde quem governa é o Presidente da República. O nosso Presidente tem poderes e funções importantes, mas não faz governação. Não é uma figura de tipo presidencial, mas tem uma intervenção política significativa. E essa intervenção pode ser feita, por exemplo, através do exercício dos poderes formais que Constituição da República Portuguesa (CRP) lhe atribui, como o poder de veto, de dissolução da Assembleia da República e da nomeação de altas figuras.

Porém, o professor Marcelo tem sido a prova de que mesmo sem exercer esses poderes formais, o Presidente consegue ter uma presença política ativa. Durante todo o mandato deste Presidente é de destacar a forma como se relaciona com os portugueses; é isso que lhe dá a força que lhe vem de uma popularidade enorme, e que condiciona todos os outros partidos políticos. O Governo, apesar de nesta altura podermos dizer que está apoiado numa maioria parlamentar, tem de ter em conta a opinião do Presidente. Muita gente confunde o papel do Presidente neste modelo de governo. Mas tem uma importância enorme no funcionamento do sistema político se souber exercer as suas funções.

Outro dos poderes de que só se fala nas alturas de crise é aquele que lhe garante uma presença que não pode ser eliminada: a dissolução do Parlamento. Não tanto pelo facto de o poder dissolver, mas porque com a sua dissolução ele convoca novas eleições. Isto significa que no nosso sistema de Governo, quando há alguma crise, acaba por ser o Presidente a escolher o momento das eleições. Ora, esse fator é decisivo. Todos os governos têm momentos de maior ou menor popularidade e interessa-lhes fazer eleições numa altura em que estejam bem. Mas o Presidente da República pode escolher uma altura que não seja de agrado do Governo. Esta faculdade de poder escolher o momento das eleições é também um dos poderes que lhe dá uma presença extraordinária no sistema.

Joana Marques Vidal só continuará no cargo de procuradora-geral da República se o professor Marcelo assim o entenderOutro dos poderes do Presidente da República (PR) prende-se com a aprovação do Procurador-Geral da República…

No caso do Procurador-Geral da República (PGR), este é nomeado por proposta do Governo, mas a decisão final cabe ao PR. Quem acaba por aprovar ou não a proposta do Governo é o Presidente da República e é esta possibilidade que acaba por lhe dar a última palavra.

Podemos dizer que a iniciativa política é do Governo, mas se o Presidente da República não quiser tem de fazer outra proposta. Transpondo a teoria para a realidade, a procuradora Joana Marques Vidal só continuará no cargo se o professor Marcelo assim o entender.

O Governo deve, por isso, tentar saber qual a opinião do Presidente sobre este tema. Por isso é que António Costa diz que a primeira pessoa a quem vai comunicar é ao Presidente da República. Por vezes, noutras ocasiões, os governos, para condicionar um pouco o limite do Presidente, fazem passar para a imprensa o nome da pessoa que estão a pensar propor. O Presidente, se não quiser aceitar essa pessoa, é obrigado a divulgar publicamente e pode não lhe dar muito jeito. Então, de certa forma, há um interesse dos dois órgãos de tratarem o caso sem grande mediatismo antes de a questão estar decidida.

Sá Carneiro e Mário Soares tinham a intenção de diminuir as funções do Presidente. Aconteceu o inverso. Aumentaram-nos inadvertidamenteJá relativamente à possibilidade de dissolver a Assembleia da República, este foi um poder que saiu reforçado na revisão constitucional de 1982?

Essa não é a opinião comum. Praticamente quase toda a gente defende que o nosso sistema era semipresidencialista na origem, mas na revisão de 1982 diminuiu os poderes do Presidente. Na altura, os líderes dos dois maiores partidos, Sá Carneiro (PSD) e Mário Soares (PS) tinham a intenção de diminuir as funções do PR e fizeram a revisão com essa intenção subjacente. Mas, curiosamente, aconteceu o inverso. Em vez de diminuí-los, aumentaram-nos inadvertidamente. E isto porque lhe aumentaram o poder de dissolver a Assembleia da República. Se este poder é reforçado, a presença do PR em toda a vida política cresce extraordinariamente.

No nosso sistema, o poder verdadeiramente importante é o presidencial. Quando em 1982 os partidos reduziram o poder de demissão do Governo, não afetaram muito o Presidente porque lhe aumentaram, em contrapartida, o poder de dissolução. Antes da revisão, o presidente só podia dissolver o Parlamento com o acordo do Conselho da Revolução. Hoje não; o parecer do Conselho de Estado é meramente indicativo. Além disso, havia algumas situações em que o Presidente não podia dissolver. Hoje o chefe de Estado dissolve quando quer, pelos motivos que quiser.

Em suma, este é um poder que é conferido ao Presidente Marcelo que, aliás, confirma a notoriedade e a importância do PR, mas de uma forma peculiar, nomeadamente através do diálogo com os portugueses.

A que propósito é que António Costa ia pedir a fiscalização se o Presidente da República o podia fazer? Acho condenável que Marcelo não tenha vindo a público dizer alguma coisa

Há, no entanto, algum aspeto negativo a apontar ao seu mandato?

Apesar de se fazer uma síntese muito feliz do mandato de Marcelo, não quer dizer que ele não faça coisas das quais discordemos, nomeadamente no que se refere à questão da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos.

Fomos habituados a um Presidente que fala muito sobre tudo, mas relativamente a este assunto, fez publicar na página da Presidência um comunicado onde mencionava que tinha de esperar alguns dias antes da promulgação ou do veto, dando a entender que o primeiro-ministro podia pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma. Ora, não era exatamente isso que Marcelo queria dizer. Naquelas circunstâncias, a Constituição obriga a esperar oito dias porque em abstrato, o primeiro-ministro podia querer pedir a fiscalização. Mas a forma como aquele comunicado estava redigido dava ideia de que o PR estava a desafiar António Costa a pedir a fiscalização. Na realidade não passava de uma leitura errada.

A partir daí os jornalistas começaram a especular. Óbvio que tudo isto se fundava num equívoco. O primeiro-ministro concordava com aquela lei, o Governo tinha aprovado e não havia problemas de constitucionalidade. A que propósito é que António Costa ia pedir a fiscalização se o PR o podia fazer? Acho condenável que o PR, assistindo a este cenário, não tenha vindo a público dizer alguma coisa para acabar com a especulação. Deveria ter esclarecido que se estava a especular no vazio.

Marcelo optou por vetar a Lei do Financiamento dos Partidos. Este foi o caminho certo?

A partir do momento em que se cria uma reação com esta repercussão, não propriamente pelo conteúdo, mas pela ideia que ficou de que os partidos políticos estavam a aproveitar o facto de a opinião pública estar distraída para fazer passar uma lei com esta importância, o PR não podia fazer mais nada a não ser vetar. E este é um veto fundamental porque a questão é tão importante que interessa que as pessoas saibam porque é que a matéria foi aprovada. Este veto tem um sentido muito procedimental, não tanto por razões substantivas.

Agora, a Assembleia da República ou altera aquela lei e abre um novo processo, ou mantém aquela lei nos termos em que está e aí precisará de reunir dois terços da Assembleia para que o PR seja obrigado a promulgar o diploma. 

Aos tribunais não cabe participar na feitura da lei, muito menos ao ConstitucionalO Tribunal Constitucional (TC) pediu ao Parlamento que a Lei do Financiamento dos Partidos tivesse efeitos retroativos. Como avalia esta intervenção?

A intervenção do TC na feitura de uma lei é um pouco atípica. Aos tribunais não cabe participar na feitura da lei, muito menos ao Constitucional porque este tribunal depois tem um papel fiscalizador da lei aprovada no Parlamento. Se o TC participa na feitura da lei, de alguma forma está a distorcer o sentido, a lógica, a racionalidade da função legislativa e da função fiscalizadora.

O TC não tem os poderes suficientes para garantir o cumprimento das suas funções

No final do ano passado, o Tribunal Constitucional assumiu que em 15 anos nunca conseguiu cumprir prazos de fiscalização das contas dos partidos. É normal que este cenário aconteça?

O TC deveria ser um tribunal de garantia da Constituição, designadamente de garantia dos direitos fundamentais dos portugueses. Esse era o papel que o Constitucional deveria ter e deveria ser praticamente o único. Mas o que acontece é que o TC não tem poderes para garantir os direitos fundamentais dos portugueses em grande parte dos casos, portanto o tribunal não tem poderes exercer a sua função.

Entretanto, o legislador atribui-lhe todo um outro conjunto de funções, nomeadamente do domínio eleitoral e de fiscalização de contas que não tinham de ser do Constitucional. Este tribunal não dispõe de estrutura e de especialistas para fazer um controlo de contas eficaz. Esta é a questão de fundo: o TC não tem os poderes suficientes para garantir o cumprimento das suas funções.

Tendo o Presidente uma base partidária, durante o seu mandato consegue afastar-se do partido que o apoiou? Ou ficará refém?

Se for um bom presidente consegue afastar-se. Praticamente todos os presidentes têm feito isso e ido além da base partidária. Normalmente, fazem um primeiro mandato de tal forma independente das forças partidárias que estiveram na base da sua candidatura que, num segundo mandato, têm sido reeleitos por outras forças que à primeira vista não os tinham apoiado. O sistema está construído dessa forma e, de facto, tem-se provado que o Presidente, se quiser, pode exercer um mandato de forma independente dos partidos que o propuseram.

Esta realidade começou logo com Ramalho Eanes, que foi proposto por vários partidos políticos e ao longo do seu mandato tornou-se de tal forma independente que estes começaram a hostilizá-lo. Sá Carneiro e Mário Soares estiveram contra Ramalho Eanes e começou a provar-se que o Presidente, apesar de ser eleito com o apoio dos partidos, exerce um mandato de forma independente.

Agora, um Presidente pode ser mais ou menos partidarizado, pode instrumentalizar mais ou menos o seu mandato contra ou a favor de um partido político. Um Presidente do nosso sistema de governo não o deve fazer porque há muitos (e diferentes) semipresidencialismos.

O sistema parlamentar britânico é muito diferente do italiano, o presidencial americano é distinto do brasileiro ou venezuelano e pode e deve ser assim. Para além disso, temos um semipresidencialismo em França completamente diferente do português. Em França o presidente é partidário e assume a governação, assume a liderança de um partido político, assume uma liderança de uma maioria política.

Já em Portugal o Presidente abstém-se desse tipo de intervenção. Trata-se de um presidente moderador, arbitral, que não governa, deixa o governo governar. São ambos semipresidencialismos, mas com uma matriz diferente. A matriz, formada logo pelo general Ramalho Eanes, e depois continuada pelos Presidentes seguintes é esta. Um Presidente moderador, um presidente arbitral, suprapartidário, à margem dos partidos. O que algumas pessoas não percebem é que continua a ser semipresidencialismo.

O PS pede perda de mandato de deputados que "culposamente" não entreguem declaração de rendimentos. Como vê esta iniciativa?

É sempre correta a tentativa de criar transparência na vida política dos protagonistas dos partidos. Embora também me pareça que há muitas questões que, por mais legislação que se faça, necessitam de autorregulação.

Centeno e bilhetes do Benfica? A meu ver esta situação é de uma imprevidência total. É completamente imprudenteE relativamente à situação em que Mário Centeno terá pedido bilhetes ao Benfica…

O Governo tinha acabado de aprovar um regime de como é que os governantes se deveriam comportar e imediatamente nessa altura surge a polémica que dá conta de que o ministro das Finanças tinha pedido bilhetes a um clube de futebol. A meu ver esta situação é de uma imprevidência total. É completamente imprudente.

Acórdão de Neto Moura foi chocante. Um exemplo daquilo que não se deve nem pode fazer

O juiz Neto de Moura justificou, num acórdão, violência doméstica com adultério da vítima com base em citações bíblicas. Enquanto constitucionalista, como analisa esta situação?

Esse acórdão foi chocante não apenas pelo tipo de decisão, mas também pela argumentação que foi alegada. Os juízes que decidem este tipo de questões não devem recorrer a argumentos que não sejam partilháveis por toda a gente. Uma sentença fundada na Bíblia só é legitimada para quem acreditar nela.

É absolutamente inadmissível que os juízes decidam argumentando com base em convicções, em documentos e catecismos que não são generalizáveis por todos. Os tribunais só podem decidir com base em relações públicas, nunca com base em razões ideológicas, filosóficas ou religiosas. Esse acórdão, no fundo, acabava por ser um exemplo daquilo que não se deve nem pode fazer. Mas esta situação teve uma nota positiva: a forma como se reagiu na sociedade portuguesa. A repercussão que o tema teve só mostra como a sociedade está muito mais interventiva e preocupada e acompanha este tipo de questões. O poder judicial não fica imune a este controlo público.

A Constituição, em 41, anos foi alvo de sete revisões. Continua a ser a trave mestra da democracia?

Trata-se de uma Constituição que é cumprida do ponto de vista da organização e planeamento do sistema político. Mas há também uma outra dimensão: os direitos fundamentais dos cidadãos estão também na Constituição e aí podemos dizer que há défices de proteção. Sou muito crítico em relação a isso. Acho que a Constituição podia ser melhorada, mas no essencial o Tribunal Constitucional tem garantido o Estado de Direito aí previsto. Podemos dizer que esta é uma Constituição normativa, feita com intenção de limitar o poder e consegue fazê-lo. Há aperfeiçoamentos que podiam ser feitos, designadamente no domínio da fiscalização da constitucionalidade, do acesso dos cidadãos ao TC, mas em geral tem cumprido o seu papel de forma positiva.

É partidário, portanto, de uma oitava revisão da CRP?

Se fosse para este tipo de alterações, sim. Para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos acho que sim; efetivamente era necessário alterar o sistema de fiscalização da constitucionalidade. Os portugueses têm menos acesso ao TC para defesa dos direitos, quando comparados com os que vivem em países americanos ou europeus.

Obviamente também havia coisas a melhorar na organização do sistema político e a principal alteração do meu ponto de vista seria a introdução da chamada moção de censura positiva, construtiva. Trata-se de um requisito que prevê que, em casos de moção de censura, só se pode destituir um governo se entretanto o Parlamento votar um primeiro-ministro em alternativa, como acontece em Espanha, na Alemanha e na Polónia.

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