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"Dediquei a vida a isto, mas ainda me dizem que tive um golpe de sorte"

Elisabete Jacinto, a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto, conversou connosco sem qualquer filtro. Abordou a presença das mulheres no mundo do desporto e deliciou-nos com as suas aventuras e desventuras.

"Dediquei a vida a isto, mas ainda me dizem que tive um golpe de sorte"
Notícias ao Minuto

08:20 - 25/08/17 por Luís Moreira com Carlos Fernandes

Desporto Elisabete Jacinto

Em Portugal, é impossível falar de ícones do desporto feminino sem referir Elisabete Jacinto, uma mulher que não teve medo de apostar numa modalidade repleta de homens e fazer disso carreira. Uma professora de geografia que um dia decidiu deixar tudo pelo amor aos motorizados e à aventura. 

A piloto começou a dar os primeiros passos no desporto motorizado através das motas, tendo somado várias participações no Rally Dakar. Mas foi anos mais tarde que fez história, ao tornar-se numa das poucas mulheres no mundo a conduzir um camião de competição e ao vencer uma prova: o Rallye Optic Tunisie 2000.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Elisabete Jacinto deu a conhecer as suas perigosas experiências nas provas mais difíceis do mundo - como é o caso do Rally Dakar - e, acima de tudo, falou do papel das mulheres num desporto onde os homens reinam... em termos de números.

No início, o objetivo era sobreviver e chegar ao fimComo começou toda esta sua jornada no desporto motorizado?

Para ser sincera, comecei a fazer todo-o-terreno como um hobbie. A 'brincadeira' começou quando eu e o Jorge [o seu marido] passámos aleatoriamente por um quiosque, pegámos numa revista de motas e ele disse: 'isto das motas é muito giro'. A partir desse momento, decidimos tirar a carta de mota. Assim do nada. Mais tarde, comprámos uma mota para os dois e, por graça, decidimos entrar no Clube Todo-o-Terreno e passámos a receber os folhetos dos passeios que faziam.

No início, utilizávamos a mota apenas como meio de transporte pessoal. Eu ia sempre de mota para as aulas e para a faculdade. No entanto, passados dois anos de nos termos inscrito no tal Clube Todo-o-Terreno e de o Jorge ter comprado uma mota só para ele, decidimos fazer um dos seus passeios, a ronda de todos os castelos, na Serra da Lousã. Sei que o percurso tinha 200 quilómetros, eu fiz 80 [risos], caí uma ou duas vezes e tive de parar por causa de problemas mecânicos – isto porque na altura não tinha experiência nenhuma, nem conhecimento. No final, olhei para o meu marido e disse-lhe: 'isto é uma brincadeira fantástica, é o hobbie das nossas vidas'. A partir desse momento, tanto eu como o Jorge decidimos permanecer em casa e deixámos de ir jantar fora ou ao cinema para podermos juntar dinheiro para comprar uma mota todo-o-terreno para cada um. A certa altura, comecei a ler aquelas revistas francesas que ensinavam como se conduzia para depois meter em prática ao fim de semana, quando pegava na mota para passear [risos].

Entretanto, participei com o meu marido numa prova na serra de Grândola, que tinha 300 quilómetros. Lembro-me de que, nessa competição, aos 100 quilómetros tinha tantas dores no corpo que já não conseguia mexer-me. Pensei que não era capaz, mas cerrei os dentes com tantas dores que tinha e continuei em prova. Contudo, aquela zona tinha muitas ribeiras e eu acabei por cair numa e, infelizmente, a minha mota deixou de funcionar. Fui obrigada a desistir. Mas, se me fossem perguntar quem era a pessoa mais feliz naquele momento. não dizia que era o rapaz que tinha vencido a prova… era eu! A partir desse momento ganhei uma paixão por este desporto, nunca mais parei de pensar nisso.

Como foi feita a transição de piloto amador para profissional?

Isso começou a ganhar forma quando comecei a ir às provas do campeonato nacional. No início, o objetivo era sobreviver e chegar ao fim. Entretanto, ao longo dos anos, fui ganhando a Taça feminina e dei por mim a pensar que queria fazer uma prova internacional. Eu e o meu marido pensámos na hipótese de ir fazer uma prova a Espanha, em Aragón, o percurso da competição tinha 630 km! Só me lembro de pensar na altura: '600 kms com 40 graus, como é que vou aguentar?'. No meio da prova, achei que não aguentava mais e que não conseguia chegar ao fim, mas quando cheguei à assistência – local onde metemos gasolina na mota e comemos alguma coisa – o meu marido, que me estava assistir na corrida, disse-me que estava à frente de diversos pilotos e eu comecei a pensar: 'Epá, estes pilotos são uns craques e estão atrás de mim', e por causa disso ganhei uma força maior para prosseguir a corrida.

Após a minha primeira competição internacional, dei por mim toda contente, a competir em mais provas em Espanha. Porém, um dia estava na minha cozinha a lavar a loiça e a pensar que estava na hora de dizer adeus à competição, porque na minha cabeça achava que já tinha feito o suficiente e além disso queria ter filhos – motas e filhos é uma coisa muito difícil de conciliar – coloquei mesmo a hipótese de dizer adeus à minha carreira. Contudo, assim do nada, veio-me à cabeça: 'por que não apostar numa competição em África?'. Como professora, ensinava os meus alunos sobre o que era uma duna e nunca tinha visto nenhuma… De repente, imaginei-me numa mota grande a andar em cima das dunas. Aquela imagem ganhou tanta força que eu não desisti enquanto não fui ao Dakar.

Depois, comecei a tentar arranjar forma de ganhar dinheiro e a pedir dispensa na escola. Fiz o rali da Tunísia, como forma de me preparar para o Dakar. Lembro-me que, para a prova da Tunísia, tive de pedir dinheiro emprestado, porque não consegui arranjar patrocínios suficientes, mas, para compensar, a prova correu-me melhor do que estava à espera. Já perto do Dakar, decidi ir bater à porta de uma empresa e consegui o dinheiro suficiente para ir. Resumindo, fiz o Dakar mais do que uma vez e dei por mim nesta vida.

Um jornalista marroquino entrevistou o meu marido e perguntou-lhe com todas estas letras: 'O facto de uma mulher ganhar não desvaloriza a categoria dos camiões?'

Falando agora do atual estado do desporto motorizado em Portugal, qual é a sua análise?

O problema de Portugal é que há poucos apoios, poucas equipas. Acima de tudo, não há uma mentalidade virada para o desporto em si. O facto de toda a atenção - inclusive da comunicação social - estar virada para o futebol, não ajuda em nada. O desporto é um bem fundamental para a sociedade e nós pecamos um pouco nesse sentido.

Sentiu dificuldades em entrar num desporto que, na sua maioria, é disputado por homens?

É difícil, há muitas coisas que não jogam a nosso favor. No entanto, o facto de ser mulher neste desporto foi mais fácil para dar nas vistas, tenho de ser sincera quanto a isso. Mesmo quando as coisas não me corriam tão bem, conseguia ter alguma visibilidade. Em relação a todas as outras coisas, foram complicadas e há algumas que me custaram imenso. Aliás, ainda me custam muito… que é a questão da credibilidade. Se é um desporto de homens? OK, é um desporto difícil, duro, é só para 'homens de barba rija'. Mas, se uma mulher consegue tirar bons resultados, já não é um desporto assim tão difícil. Ainda hoje passo muito por essa situação, de dizer às pessoas que fiquei bem classificada e elas responderem: 'Ah e tal, devia haver poucos camiões ou as equipas não eram tão boas'. Na generalidade, ainda existe este preconceito.

Um exemplo que eu costumo de dar, é uma situação que me aconteceu em Marrocos, há dois anos. Depois de ter vencido o rally de Marrocos na categoria de camiões, houve um jornalista marroquino que foi entrevistar o meu marido - em vez de a mim - e perguntou-lhe com todas estas letras: 'O facto de uma mulher ganhar não desvaloriza a categoria dos camiões?'. É este tipo de comportamentos que mais me custa neste desporto. Eu dediquei 100% da minha vida a isto e não há ninguém que diga que eu tenho os resultados que tenho porque sou uma boa profissional… Dizem que tive um golpe de sorte ou que, afinal, as equipas boas não estavam presentes. As pessoas não me dão o mérito que eu acho que mereço.

Há maneira de dar a volta a esse tipo de pensamento?

Acima de tudo, trabalhar com qualidade e dar um bom exemplo às pessoas. Se todas nós fizermos isso, toda a perspetiva do deporto feminino muda um bocadinho. Ainda somos poucas a praticar desporto, continuamos a ter mais homens nesta vertente, as mulheres ainda têm de fazer uma grande conquista nessa área. Quer seja como atletas, treinadoras, árbitras, como tudo. Por exemplo, eu ganhei bastante notoriedade quando comecei a andar de camião porque havia poucas mulheres nessa categoria, mas penso que agora não há nenhuma razão para que a mulher não possa andar de camião.

O meu maior medo nas motas era a solidão, não gostava de ficar sozinha

Por que razão trocou o mundo das motas pelos camiões de competição?

Deixei as motas com um grande sentimento de frustração, porque trabalhava muito, dedicava-me muito e achava que não tinha o reconhecimento do meu trabalho. Isto porque não conseguia chegar ao topo das classificações. Em Portugal, só os três primeiros lugares é que contam, estar no meio da tabela já não conta. Na altura, fiquei bem classificada, ainda hoje as raparigas que participam nesse tipo de provas ficam atrás de mim, mas como eu ficava no meio da tabela - em cerca de 150 homens ficava em 60.º ou 50.º lugar - as pessoas não valorizavam. Por isso mesmo, ponderei em abandonar a competição de mota e foi aí que apareceu o camião. Apesar de ser um veículo bastante difícil não puxa tanto pelo corpo como sucede com a mota. Na altura, tomei a decisão de deixar as motas e imaginei que podia fazer algo giro nos camiões.

Quais são as maiores diferenças entre ambos?

Apesar de as motas serem um desporto mais violento, podemos pegar nela e cair umas 500 vezes e ninguém dá conta disso, só mesmo o nosso corpo. Lembro-me de que muitas das vezes tinhas as pernas cheias de nódoas negras mas ninguém dava conta porque andava de calças. No camião, isso não acontece. Se se vira o camião uma vez é difícil encobrir isso e ainda tem de se pedir ajuda para o virar de volta. Neste sentido, temos de assumir a responsabilidade sem medo. Nos camiões temos de ser perfeitos, não podemos mesmo falhar.

Como foi passar de um desporto em que estava habituada a andar sozinha para os camiões, onde tem de trabalhar em grupo?

O meu maior medo nas motas era a solidão, não gostava de ficar sozinha. Quando troquei para os camiões, pensei que seria giro e divertido trabalhar com mais duas pessoas, mas enganei-me… Foi a coisa mais horrível que tive de enfrentar na minha vida. Trabalhar com os outros em situações de stress é muito complicado. Talvez ser mulher não me tenha ajudado muito, não digo isto só pelo facto de existir preconceito, mas também porque homens e mulheres têm uma maneira muito distinta de lidar com as coisas. Na altura, não tinha perceção disso e as coisas não correram da melhor maneira.

Quais foram os maiores desafios dessa transição?

Quando cheguei aos camiões, mudei-me com o intuito de lutar pela classificação, ao contrário do que sucedeu com as motas. Nesta mudança, tive alguns problemas com a questão da competitividade. Por exemplo, aconteceu-me várias vezes, durante as provas, ter um camião à minha frente que não me deixava ultrapassar para poder estar em vantagem… Até já me chegou a acontecer ter um fulano a mandar o seu camião para cima do meu para me atrasar. 

Como foi voltar ao Dakar, mas agora noutro tipo de veículo?

No meu primeiro ano fui ao Dakar sem saber ler nem escrever [risos]. Foi uma experiência de outro mundo. Vivi coisas mesmo de outro mundo, mas, no final, vim de lá com a ideia de que, com o camião, posso ser uma piloto mais competitiva do que fui com as motas. Na primeira vez, aconteceu-me mesmo de tudo, virei o camião, passei dias a conduzir de dia e de noite sem parar… foi de loucos.

Desisti do Dakar e esse foi o dia mais difícil da minha vida. Até lá, pensava que era a super mulher

Na sua generalidade, o que é mais desafiante para si enquanto piloto?

Para mim são as dunas, é sem dúvida é o mais difícil. Passados estes anos todos, o meu coração continua a bater forte, a respiração fica ofegante e gotas de suor caem umas atrás das outras. Mas hoje em dia já estou muito melhor.

Qual foi o momento mais difícil da sua carreira?

Foi quando ainda andava pelas motas. No primeiro Dakar de mota sofri imenso, porque fui para a prova com a mota mais pesada. Só para ter a noção, se a minha mota caísse eu não conseguia levantá-la. Numa modalidade em que é normal cair, foi bastante duro para mim. Nesse Dakar, lembro-me de que desisti da prova e esse… foi o dia mais difícil da minha vida. Porque, até lá, pensava que era a super mulher e podia alcançar tudo se tivesse força de vontade, mas isso não aconteceu e acabou por me afetar muito.

E nunca pensou em desistir da carreira em si?

Quando fazia as provas do campeonato nacional, em todas elas pensei em desistir [risos]. Curiosamente quando veio aquela ideia maluca do Dakar, sofri imenso, mas foi uma obsessão minha. Queria provar a toda a gente que conseguia fazer o Dakar… ou seja, na altura em que mais sofri, foi aquela em nunca pensei desistir. Nunca.

Quanto ao estrangeiro, nunca pensou nessa hipótese? 

Sim… pensei. Cheguei a ter uma proposta em cima da mesa, mas é muito difícil sair. No fundo, estou muito agarrada a este país onde nasci, gosto de estar cá e nunca levei essa hipótese a sério.

Quais são os planos para o futuro?

Por agora, queria chegar ao topo da classificação geral e, acima de tudo, queria ser reconhecida como boa piloto… era mesmo isso que queria.

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