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Deathclean. As pessoas que aparecem para ajudar no pior momento da vida

A Deathclean é uma empresa portuguesa certificada de limpeza e desinfeção de locais com resíduos de risco biológico. Estão presentes em cenas de crime, morte natural ou suicídio, depois da investigação e da remoção do corpo, para fazer "o trabalho que ninguém quer". O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o diretor, Pedro de Viterbo Badoni.

Deathclean. As pessoas que aparecem para ajudar no pior momento da vida
Notícias ao Minuto

09:20 - 23/10/18 por Anabela de Sousa Dantas

País Reportagem

Este não é assunto agradável, nem assunto em que a maior parte dos cidadãos pense de antemão. Se uma pessoa morre em casa, ou comete suicídio, quem fica responsável pela limpeza do local? Quem fica responsável pelos resíduos biológicos de um corpo em decomposição ou pelo sangue resultante de um homicídio? Não são as autoridades. Naquele que será um dos momentos mais traumáticos para um familiar, é mesmo este que tem de acertar a limpeza e a desinfeção do local onde um ente querido tenha perdido a vida.

Este é um dos trabalhos da Deathclean, a única empresa em Portugal certificada e legalizada para limpeza e desinfeção de locais com resíduos de risco biológico, ou seja, tudo aquilo que pode transmitir, através de microrganismos, algum tipo de infeção ou doença. O sangue, por exemplo, pode ser portador de microrganismos patogénicos, o que o torna um risco biológico.

A empresa trata da limpeza de locais onde aconteceu uma morte, locais insalubres, contaminados por pragas e outros, morgues, salas de autópsia ou unidades de saúde.

O tipo de negócio tem a sua génese nos Estados Unidos, onde a procura por este tipo de serviço é muito maior, mas as mortes, naturalmente, acontecem em todos os países. Quem fazia o trabalho até aqui? “Alguém tinha de o fazer, se não era o familiar, alguém tinha de ser. Um curioso, alguém de uma funerária que pudesse ajudar, não podemos criticar quando não havia soluções”, indica Pedro de Viterbo Badoni, fundador e diretor da empresa.

"Há dias em que o telefone não toca, há dias em que o telefone toca 15 vezes"

A Deathclean abriu em 2008 mas só teve os primeiros trabalhos em 2009, quando o vírus H1N1 causou uma pandemia de gripe em Portugal. Os dois primeiros trabalhos foram, aliás, uma limpeza num espaço administrativo num hotel por causa de uma pessoa com tuberculose e, mais tarde, no mesmo hotel, uma infeção de H1N1, que se veio a revelar falso alarme.

O verdadeiro crescimento em termos de trabalho aconteceu, porém, em 2012, depois da ida a alguns programas de televisão, que gerou algum reconhecimento por parte do público. Não há um dia típico. “Há dias em que o telefone não toca, há dias em que o telefone toca 15 vezes”.

Pedro lembra-se, ainda assim, do primeiro trabalho ‘a sério’ que a empresa conseguiu, um suicídio com caçadeira em Santarém.

Notícias ao MinutoPedro Badoni, de 38 anos, fundou a empresa com um amigo, em 2008. © Notícias ao Minuto

Porque é que são a única empresa do género, legalizada, em Portugal? “Apesar de ser uma atividade muito curiosa para alguns é muito muito dispendiosa e muito complicada, estamos a lidar com risco biológico e há legislação em Portugal e na Europa que tem de ser cumprida”.

“Somos a única entidade nacional, e única da Europa, que tem formação para intervir num cenário onde haja libertação de um agente químico ou biológico de guerra [como antrax]”. Em Portugal, nunca foi necessário.

A memória do quádruplo homicídio em Barcelos

Sendo a única empresa em Portugal certificada para o tipo de trabalho que realiza, a Deathclean beneficia de uma estreita ligação com as autoridades, tendo já sido chamada diretamente para colaborar na altura dos incêndios de Pedrógão Grande ou referenciada a familiares, como no caso do quádruplo homicídio em Barcelos, os dois casos no ano passado.

“Atuámos na altura de Pedrógão Grande, fomos nós que tratámos das duas viaturas, a de recolha de cadáveres e a que serviu de arca frigorífica provisória em Coimbra. Tratámos da desinfeção e da limpeza”.

Pedro Badoni recorda a viva memória, porém, o caso dos homicídios em São Veríssimo, Barcelos. A equipa fora chamada para limpar as residências onde ocorreram mortes. “Posso dizer que são cenários que não partilhamos com ninguém”.

O responsável lembra que foram contactados pelos familiares. “Quando lá chegámos era já de noite, a autoridade tinha lá estado nesse mesmo dia. Disseram-nos que aquilo estava muito mau, não convinha ninguém ver e tinha de ser tratado o quanto antes”.

“Recordo-me perfeitamente que nesse dia fui almoçar a um café local e estava a dar a notícia na televisão. Era um café numa rua perto de onde tinha acontecido. Estava cheio e eu entrei com o pólo da Deathclean, as pessoas identificaram, toda a gente se calou. Enquanto eu estava a comer ninguém fez um comentário”.

Para Pedro Badoni, os traços de personalidade de um colaborador são muito importantes nestas alturas, porque é preciso saber lidar com os familiares e ser merecedor da sua completa confiança. Afinal, diz, eles ficam responsáveis por aquele espaço num intervalo de tempo que pode ir de horas a semanas. E ninguém pode entrar além dos técnicos.

“Uma vez encontrámos 12 mil euros numa casa de um cliente, que ninguém sabia. Era um corpo em decomposição. Colocámos num envelope e entregámos ao cliente. Estava junto com coisas da cozinha, ninguém sabia daquele dinheiro, a não ser os técnicos que estavam no local”.

Notícias ao MinutoNa altura dos incêndios em Pedrógão Grande, a Deathclean ficou encarregue da limpeza posterior de dois veículos de transporte de cadáveres, um dos serviços que a empresa presta© Global Imagens

Casos mais difíceis de trabalhar: Decomposições e acumuladores compulsivos

“Aqui em Portugal os casos em que trabalhamos mais são: morte natural que origina decomposição, suicídios com armas de fogo e alguns acumuladores compulsivos. Os casos de homicídio, este ano, [foram] três ou quatro”.

O trabalho mais caro e mais moroso é o do acumulador compulsivo ou ‘hoarder’ – pode demorar semanas. “O problema com o acumulador compulsivo é que, se estiver vivo, não pode sair de casa, nem a família o consegue tirar de casa. É uma questão muito morosa. Normalmente, ou morrem em casa ou vão para um lar e a família aí chama-nos”.

Os casos mais difíceis de trabalhar? “As decomposições e os acumuladores”. No caso dos acumuladores, Pedro Badoni relembra um caso na Covilhã de uma pessoa que morreu em casa. “A pessoa tinha morrido com 14 gatos em casa. Morreu na casa da banho. Tinha sete gatos vivos, o resto estava morto”, explica, relembrando que o cheiro de uma decomposição animal é muito pior de que o do um humano.

“Um cenário de um suicídio com uma caçadeira ou com uma arma de fogo em casa é um cenário completamente desgastante para qualquer pessoa, inclusive para os agentes de autoridade”, indica. “Tudo o que está dentro da nossa cabeça fica espalhado pelas quatro paredes e teto, fica agarrado. Massa encefálica, bocados de dentes, carne, tudo. Imagine o que é um familiar pegar numa espátula e começar a limpar”.

"As autoridades de Saúde também cometem ilegalidades"

Se é uma questão de saúde pública, não devia existir algum interesse público? “As autoridades de Saúde também cometem ilegalidades, a empresa existe há dez anos, já vimos muita coisa”.

“Nem vou falar de limpar um pavimento [cena de crime] com mangueira, é risco biológico na mesma, devia ser tratado como tal, mas nem vou falar nisso. Vou dar um exemplo: uma situação de insalubridade, no caso dos acumuladores compulsivos - o ‘hoarding’, que nós temos muito. Uma morte numa casa que não pertence à Câmara, mas que é responsabilidade da autarquia resolver por questões de saúde pública. Temos conhecimento de delegados de saúde que vão ao local, fecham os olhos e dizem ao familiar para limpar com água e sabão. Isso foi-nos dito em primeira pessoa”, relata Pedro Badoni.

Mesmo na presença de resíduos infeciosos de risco biológico, que quando mal limpos libertam fungos com o decorrer do tempo, conforme explicou o responsável, a responsabilidade é da família, porque é propriedade particular, e, portanto, “ninguém vai fiscalizar o trabalho”.

A Deathclean já se reuniu com a Direção-geral da Saúde (DGS) para sensibilizar para o tema, em específico para a determinação em lei dos resíduos que são considerados infeciosos. “Os decretos foram alterados mas aquela portaria mantém a designação de ‘hospitalar’. Os resíduos provenientes de funerárias também são considerados infeciosos e têm que ter um tratamento, como a acupuntura e como os tatuadores. O nosso entra também aí. Sugerimos algumas alíneas de alteração, e tivemos alguns contactos posteriores. Havia já um projeto, um documento feito entre a DGS e Agência Portuguesa do Ambiente mas são dois departamentos distintos, vai de um lado para o outro e até hoje ainda não saiu. Se é que há interesse em sair”.

Entretanto, são muitas vezes contratadas empresas de limpeza doméstica para fazer um trabalho para o qual não possuem certificação ou acreditação, em parte por desconhecimento das partes envolvidas, mas também por desinteresse no tema.

“Somos a única empresa no ramo da limpeza que tem acordo com uma entidade capacitada para receber resíduos contaminados. E eu pergunto: com tantas mortes que há em Portugal, nem limpamos um terço, para onde vai esse resíduo?” A empresa sublinha que “chega a entregar por ano mais de uma tonelada de resíduo infecioso”.

"Já entrou e saiu muita gente. Não aguentaram"

Pedro Badoni fala sobre o processo de recrutamento para a Deathclean sem pretensões. A sua principal exigência não é académica, são traços de personalidade. Uma pessoa com “alguma capacidade física e psicológica”, “uma pessoa que se desenrasca, é preciso tirar chão, tirar ladrilho, tirar sanitários, cortar madeiras, já aconteceu ter que partir uma parede”. “Uma pessoa honesta, acima de tudo”, concretiza.

“Quando nós vamos para um local, sabemos que o verdadeiro trabalho é aquele familiar”, elucida, lembrando um caso de uma senhora que, volvidos meses do trabalho, mandou mensagem a um técnico a perguntar de que cor é que era a corda com que o filho se enforcou. O primeiro impacto, contudo, é crucial. “Nós chegamos lá, está o familiar a chorar”.

“Isto é um trabalho muito delicado, não podemos ir para o café comentar o que se passa”, refere, explicando que uma pessoa com curiosidade mórbida é a última pessoa que contrataria.

É preciso ter estômago? “Uma coisa é dizer que se está confortável com sangue outra é ir ao local de uma decomposição, por exemplo. Uma decomposição tem lá larvas, pele, dentes, unhas, carne, cabelo, escalpe, líquido, bocados de gordura. Num suicídio vemos miolos, dentes, bocados de olho, fragmentos ósseos com carne. (…) Desde 2012, quando começámos a recrutar pessoas, já entrou e saiu muita gente. E não saíram porque eram maus funcionários, mas porque não aguentaram”.

A equipa da Deathclean é composta atualmente por cerca de 20 técnicos, que trabalham por turnos. Recebem em regime de part-time agentes da PSP, GNR, bombeiros, elementos da Cruz Vermelha. “Geralmente temos alguns a part-time assim, mas mesmo assim muitos deles não aguentam. Fazem um, dois, três, quatro trabalhos, e depois não voltam mais”.

Nenhum dos funcionários que trabalhe na Deathclean alguma vez poderá trabalhar num cenário que envolva um amigo ou um familiar.

“No final, quando deixamos aquilo limpo, as pessoas agradecem, como se não tivessem pago por aquele trabalho. As pessoas sentem-se gratas porque houve alguém que teve coragem de o fazer”.

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