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"Escrever é lutar, o tempo todo. Não há trabalho melhor no mundo"

'A Nossa Alegria Chegou' é o mais recente romance de Alexandra Lucas Coelho. Neste novo livro da escritora e jornalista, somos apresentados a um mundo imaginário, onde as 12 horas do equinócio acompanham uma revolução. Apesar de mítico, o mundo retratado fala do planeta Terra e nada do que aqui acontece é impossível, "por mais improvável ou delirante que seja".

"Escrever é lutar, o tempo todo. Não há trabalho melhor no mundo"
Notícias ao Minuto

12:20 - 16/10/18 por Pedro Bastos Reis

Cultura Alexandra L. Coelho

Ossi, Ira e Aurora fizeram um pacto e têm um plano: fazer a revolução em Alendabar. É neste lugar imaginário algures no planeta Terra - “é da Terra que este romance fala” - que se passa o novo romance de Alexandra Lucas Coelho.

Ao longo das 12 horas do equinócio em que se desenvolve a ação revolucionária de ‘A Nossa Alegria Chegou’, acompanhamos também as histórias de outras personagens cujos destinos se cruzam na chegada do fim do verão e início do outono.

Depois de ‘Deus-dará’, um romance que capta a essência do Rio de Janeiro em toda a sua complexidade, em ‘A Nossa Alegria Chegou’, publicado pela Companhia das Letras, chancela da Penguin Random House, a autora de ‘E A Noite Roda’ ou ‘O Meu Amante de Domingo’, mas também de livros de reportagem como ‘Vai, Brasil’ ou ‘Oriente Próximo’, apresenta um romance que, enquanto retrato do Ser Humano, é “totalmente político, feminista, anti-nacionalista e transgénero” numa “narrativa não situável em qualquer lugar conhecido do planeta, e sem coordenadas da cultura dita ‘ocidental’”, como explica a autora ao Notícias ao Minuto.

Nesta entrevista por e-mail, Alexandra Lucas Coelho desvenda ainda um pouco sobre o seu próximo romance, que “está na cabeça, em preparação”, e fala sobre a frustração mas também paixão pela escrita, porque “escrever é lutar, o tempo todo” e “não há trabalho melhor no mundo”.

‘A Nossa Alegria Chegou’ poderá ser um livro estranho para quem leu os anteriores, embora eles sejam todos diferentes entre si. Mas liga-se aos anteriores por outros canais, e como eles resulta de uma necessidadeDe onde surgiu a ideia para ‘A Nossa Alegria Chegou’?

Do anterior romance, ‘Deus-dará’. Depois de ele ser publicado, há dois anos, fiz uma viagem que o continuava de outro modo. A viagem que um dos protagonistas se prepara para fazer no momento em que a narrativa acaba. Aí, ao caminhar numa longa praia até à foz de um rio, surgiu a ideia deste romance. E da primeira imagem veio tudo o resto: três jovens nus, de diferentes cores de pele, numa cama de rede. Um triângulo transracial, fora de qualquer nação conhecida.

Em ‘E A Noite Roda’ e ‘Deus-dará’ a narrativa centra-se em países que conhece bem e com realidades sociais e políticas muito concretas. Neste livro, sai desse registo e cria um mundo novo. Por que razão decidiu fazê-lo?

Quis criar um lugar de raiz, com a sua fauna, a sua flora, restos de uma língua quase perdida. Porque nunca o tinha feito, e me interessa que cada romance seja uma experiência diferente de escrita, de vida, que desencadeie a sua própria estrutura, as suas próprias regras. Também pelo prazer de inventar um mundo, palavras, nomes, seres vivos, deuses, constelações. E porque este livro pediu isso, desde a primeira imagem. Uma narrativa não situável em qualquer lugar conhecido do planeta, e sem coordenadas da cultura dita 'ocidental'.

Manter o texto fora dessas coordenadas foi um desafio permanente. Temos tantos ecos na cabeça, tantas imagens, cada vez mais, que criar um lugar alheio a isso é um trabalho de libertação, frase a frase, ou de deslocamento para outras regiões da memória, da imaginação. Para ir além da empatia mais imediata, de nos reconhecermos nos lugares, nas referências.

Os livros que escrevo são os livros que preciso mesmo de escrever. Nada há de forçado na origem de ‘A Nossa Alegria Chegou’Isso gera uma estranheza, e ‘A Nossa Alegria Chegou’ poderá ser um livro estranho para quem leu os anteriores, embora eles sejam todos diferentes entre si. Mas liga-se aos anteriores por outros canais, e como eles resulta de uma necessidade. Os livros que escrevo são os livros que preciso mesmo de escrever. Nada há de forçado na origem de ‘A Nossa Alegria Chegou’. Já nasceu convocando essa estranheza, o trabalho de chegar a ela. De a criar, não de a explicar.

“O mal de toda a parte está em Alendabar, o mal de Alendabar está em todo a parte.” Inspirou-se em algum sítio em particular para criar este mundo?

‘A Nossa Alegria Chegou’ passa-se num lugar imaginário mas algures na Terra. É da Terra que este romance fala. De nós, do humano, do que é ser humano em relação a outras espécies, ser homem, ser mulher, os custos da evolução biológica, o que existe antes, depois ou entre os géneros, as peles, as identidades, as nações. Nesse sentido, é um livro totalmente político. Feminista, anti-nacionalista, transgénero.

Parti de universos indígenas, como os da Amazônia e da Oceânia, do México ou de África. Mundos arcaicos, que se relacionam fortemente com a natureza, com os céus, até hoje. Mundos míticos, e mitos. Em ‘A Nossa Alegria Chegou’ esse tempo arcaico, mítico, coincide com um tempo contemporâneo. Há deuses, pirâmides e escravos, alguém chamado Rei. E há helicópteros, carros, matadouros, colapso ambiental.

O mundo mítico é frequentemente inverosímil. Como a vida, o real, é tantas vezes inverosímil, improvável, delirante. O que não quer dizer impossível. Nada do que acontece em ‘A Nossa Alegria Chegou’ é impossível. Por mais improvável ou delirante que seja.

Há muitas perguntas em aberto neste livro, possibilidades para o leitor decidir. Quis que fosse assim mesmo. O leitor escolherá. Incluindo sobre o que acontece de facto no fimQue género literário define melhor este livro, a utopia ou a distopia?

Nem uma nem outra. Nem alegoria nem parábola. Não sinto qualquer necessidade de arrumar o texto numa gaveta. Ao contrário. A maravilha do romance é ser um território livre, em que podem confluir vários géneros.

A revolução dos três jovens — Ossi, Ira e Aurora — é uma mensagem de esperança na irreverência da juventude?

‘A Nossa Alegria Chegou’ é a pequena história de uma revolução ao longo de 12 horas. A história de como o luto gera luta, e a união a fortalece, uma história de resistência. E como a alegria, o prazer, são já a revolução. O que move Ira, Ossi e Aurora não é uma irreverência. Têm em comum grandes perdas, a determinação deles é total. Fizeram um pacto, têm um plano, levam-no até ao fim. Como no começo se diz: não querem morrer, mas não têm medo de morrer, e ainda não têm 20 anos.

Notícias ao Minuto'A Nossa Alegria Chegou', o mais recente romance de Alexandra Lucas Coelho, chegou às livrarias em setembro© Companhia das Letras / Penguin Random House

Identifica-se com alguma personagem deste livro em particular?

Eles foram aparecendo, primeiro o trio inicial, depois mais um trio, depois os restantes, de uma forma que é sempre misteriosa, quase prodigiosa. Sei mais sobre uns do que sobre outros. De alguns senti que era para não saber mesmo mais. E há muitas perguntas em aberto neste livro, possibilidades para o leitor decidir. Quis que fosse assim mesmo. O leitor escolherá. Incluindo sobre o que acontece de facto no fim.

Foi uma sorte, uma alegria poder ter feito jornalismo, especialmente reportagem, durante três décadas. Nos últimos tempos, fiz reportagem apenas uma vez por ano. E este ano, tanto quanto vejo, foi a despedidaO Rei é apresentado como uma figura opressiva mas sabemos pouco sobre ele. É o símbolo de todos os tiranos e ditadores do mundo, ou é algo mais concreto?

A personagem que se chama Rei — e não é um rei mesmo — não tem passado nem explicação. Não sabemos de onde vem, ou porque é como é. Não o quis psicologizar, dar interpretações ao leitor. A primeira vez que o Rei fala, abre “a sua boca das cavernas”. Vejo-o como essa boca das cavernas. Um lugar escuro onde o leitor pode projectar o que quiser. Ou ouvir algum eco, medos ancestrais, subjugações, pesadelos.

Os capítulos dividem-se pelas 12 horas do equinócio, o tempo antes da revolução. Num próximo livro pretende dar continuidade à insurreição que aqui começa?

Não. ‘A Nossa Alegria Chegou’ termina ao pôr-do-sol, quando as 12 horas de luz acabam. As 12 horas são a ação revolucionária do livro.

Os romances não caem do céu no dia em que nos sentamos à mesa para começar a escrevê-los. Demoram muito antes e muito duranteAinda é cedo para perguntar, mas já está a pensar ou a trabalhar num novo romance? O que pode desvendar?

Está na cabeça, em preparação. O título, em princípio, é ‘Levante’. Será o romance de Karim, a personagem que surge no meu primeiro romance, ‘E A Noite Roda’, mas nunca chega a aparecer. Karim é referido depois no meu segundo romance, ‘O Meu Amante de Domingo’. E no terceiro, ‘Deus-dará’, dois dos protagonistas são irmãos de Karim, e o eixo do livro é a casa de família deles, no Rio de Janeiro, mas Karim continua ausente, na Síria. Então, o próximo romance será o dele, e vai ter como eixo a guerra da Síria.

Nos últimos tempos, além da literatura, tem continuado a escrever crónicas e algumas reportagens. Sente falta de fazer jornalismo com mais frequência?

Não. Foi uma sorte, uma alegria poder ter feito jornalismo, especialmente reportagem, durante três décadas. Nos últimos tempos, fiz reportagem apenas uma vez por ano. E este ano, tanto quanto vejo, foi a despedida. Continuarei a escrever crónicas, mas não tenho vontade de fazer mais reportagem.

Escrever é lutar, o tempo todo. Sempre na esperança do raio que por um instante eletriza tudo, e nos faz sentar na cadeira outra vez no dia seguinte, mais dez ou 12 horas para meia página ou um parágrafo, porque não há trabalho melhor no mundoDesde 2012, todos os livros que escrevi são romances, e o que tenho na cabeça também. É o que quero fazer. Espero que seja possível, mas não é fácil. O romance requer um tempo longo e contínuo, uma escala larga de concentração. Requer preparação prévia, pesquisas, leituras, por vezes viagens. Depois, longas imersões, muitos meses ou anos, dependendo do livro. Os romances não caem do céu no dia em que nos sentamos à mesa para começar a escrevê-los. Demoram muito antes e muito durante. Há dias de 12 horas em que se aproveita meia página. Que se calhar no dia seguinte será totalmente reescrita. Infinitas horas sem resultados visíveis.

Sendo que durante todo esse tempo — incluindo o tempo em que não estamos a escrever, mas estamos a trabalhar para o livro de outras formas — é preciso pagar as contas.

Falei em mistério e mesmo prodígio. Sim, esses são os raios raros deste trabalho. Os seus relâmpagos. E o resto, uma luta exasperante com as palavras, com as frases, com os parágrafos. Escrever é lutar, o tempo todo. Sempre na esperança do raio que por um instante eletriza tudo, e nos faz sentar na cadeira outra vez no dia seguinte, mais dez ou 12 horas para meia página ou um parágrafo, porque não há trabalho melhor no mundo.

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