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De Portugal até à Catalunha para votar no referendo que não o é

Hoje a Catalunha vai a votos num referendo que é uma incógnita. Para o presente e para o futuro. E há até quem tenha viajado de outros países para participar numa votação considerada ilegal. Incluindo de Portugal.

De Portugal até à Catalunha para votar no referendo que não o é
Notícias ao Minuto

08:05 - 01/10/17 por Pedro Filipe Pina

Mundo Catalunha

De avião, são pouco mais de 500 quilómetros que separam Madrid de Barcelona. Mas entre as duas maiores cidades de Espanha escondem-se diferenças culturais e linguísticas e uma tensão que, em anos mais recentes, talvez até tenha sido mais vivida pelas rivalidades futebolísticas entre Real Madrid e Barcelona. Mas não nos enganemos: o separatismo existe. As rivalidades também. E a 'guerra de palavras' que se tem prolongado entre ambas as partes não tem parado de aumentar, culminando neste domingo, dia de um referendo de todas as divergências.

Pelas ruas de Barcelona, coração da Catalunha, são visíveis as placas em catalão e castelhano. E há toda uma longa história de aproximação e afastamento, de maior ou menor autonomia regional, que ganhou contornos mais violentos com a Guerra Civil, a que se seguiu a repressão violenta da ditadura franquista, que terminou com direitos e procurou 'abafar' traços da cultura catalã.

Os tempos são outros. Mas este domingo há referendo na Catalunha, um referendo que a constituição espanhola não permite e que Madrid está empenhada em impedir. O que quer que aconteça, as dúvidas não irão terminar hoje. Muito pelo contrário.

Até à Catalunha, para votar

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com uma catalã que vive e trabalha em Portugal há mais de 20 anos, e que este domingo estará em Barcelona, pronta para votar, "logo pela manhã". Na sexta-feira de manhã, quando falámos ao telefone, 'Maria' (nome fictício a pedido da entrevistada) contava-nos, já a partir de Barcelona, que a cidade parecia calma  àquela hora. "Vê-se alguma publicidade nas ruas a favor do referendo mas de resto não se vê nada de anormal".

Para Maria, há "um acumular de sentimentos de muitos anos, inclusive séculos", a justificar o espírito independentista. "Levamos isto dentro de nós, no nosso sangue, temos uma língua diferente, uma cultura diferente", conta-nos, admitindo que na Catalunha há quem há muito não se identifique com Espanha. "E agora ainda menos”.

Este "ainda menos" não é acaso. A "ida [da questão] para os tribunais" não foi bem recebida, afirma, acrescentando que "já não se acredita no que vem da parte do governo de Madrid".

Se as diferenças são antigas, o fenómeno do independentismo começou a ter novo fôlego a partir de 2010 quando o Tribunal Constitucional espanhol rejeitou a proposta de novo estatuto regional para a Catalunha, votado pelos catalães em referendo em 2006, e que previa um aumento da autonomia da região.

"A partir daí, começou a crescer um sentimento de raiva e impotência", acusando o executivo do PP de Mariano Rajoy de "falta de respeito".

A 7 de setembro deste ano, o governo catalão (Generalitat) marcou o referendo que hoje se realiza e desde então a tensão não tem parado de aumentar.

As autoridades catalãs têm assumido frontalmente a desobediência ao Tribunal Constitucional, órgão que suspendeu no início de setembro, como medida cautelar, todas as leis regionais aprovadas pelas autoridades catalãs que davam cobertura legal ao referendo de autodeterminação.

De Madrid vieram avisos que foram rejeitados. E, com o tom a subir, chegaram à região mais de 10 mil agentes das forças de segurança. A polícia nacional atracou em Barcelona e juntou-se às forças da região, Mossos d'Esquadra e Polícia Urbana de Barcelona, para tentar garantir que a proximidade entre estas forças e a população não afetasse a missão principal: impedir a utilização de qualquer edifício público nesta votação.

Maria realça que há catalães que não vão votar e catalães que não concordam com o referendo. De resto, no futuro, "catalães e espanhóis terão de sentar-se à mesa" para falar de algo que é "muito complicado".

Mas o espírito que sente e que parece ter crescido com a reação de Madrid a esta votação é claro para os catalães que querem votar. "Agora vamos até ao fim. E vamos votar", diz-nos Maria, que foi de Portugal até Barcelona para votar. E que nos conta que, desde que chegou, já ouviu histórias de quem tenha vindo da Argentina e até do Japão para participar.

Notícias ao MinutoReferendo realiza-se este domingo entre muitas dúvidas© Reuters

O referendo que não o é

A Catalunha conta com uma população de cerca de 7,5 milhões de pessoas e é a região mais rica de Espanha, com um PIB superior, por exemplo, ao de Portugal. 

Para os independentistas, cabe apenas aos catalães a decisão sobre a permanência da região em Espanha, e argumenta-se com o princípio de autodeterminação dos povos. Já Madrid discorda e apoia-se na Constituição para defender que uma eventual divisão no país tem de ser tomada por todos os espanhóis.

Em termos legais, o referendo deste domingo teria sempre fragilidades óbvias. Nestes moldes, não deverá ter também o reconhecimento da comunidade internacional. Mas os sinais de força que chegaram de Madrid não abrandaram as intenções de quem quer levar a consulta popular adiante. E em certos casos podem até ter tido o efeito contrário.

Posição de força, sinal de fraqueza?

Nestas últimas semanas houve cartazes sobre o referendo retirados das ruas, milhões de boletins de votos confiscados centenas de sites com informação sobre a votação bloqueados, tarefa algo infrutífera na era da internet. "Quando um é bloqueado aparece logo outro", conta-nos Maria.

A estas medidas juntou-se uma quarta-feira de desastre, no passado dia 20 de setembro, com buscas e até detenções de 14 funcionários do governo catalão que participavam na organização do referendo. O episódio levou a que dezenas de milhares de catalães saíssem às ruas em protesto. Mesmo em bairros onde os independentistas não têm habitualmente força eleitoral ouviram-se panelas a bater em varandas.

Na última semana, o procurador-geral não excluiu sequer a hipótese de detenção de Carles Puigdemont, presidente da Generalitat, de ser detido.

Notícias ao MinutoCarles Puigdemont, presidente do governo regional catalão© Reuters

Como a Lusa tem reportado por estes dias, o 'Sim' à independência venceria num cenário relativamente previsível nesta altura: o de os seus apoiantes acorrerem em massa às urnas improvisadas. Não é tão certo que, num referendo acordado com Madrid, vencesse a independência. Mas há uma maioria clara, acima de 70%, que se mostra favorável a um referendo com o devido enquadramento legal.

Outros exemplos e as dúvidas sobre o futuro

No nosso tempo foram realizados dois outros referendos sobre o direito à autodeterminação. Aconteceu no Quebec, em 1995, e mais recentemente na Escócia, em 2014.

Em ambos os casos a ida às urnas teve o 'ok' do Estado que poderia ser objeto da separação (Canadá e Reino Unido, respetivamente). E, curiosamente, em ambos os casos as pessoas foram votar e a independência perdeu.

As autoridades catalãs mantem o discurso de que, em caso de vitória do 'Sim' à independência, irão no espaço de 48 horas avançar para o processo. 

Como seria a Catalunha separada de Espanha é uma incógnita que se mantém. Mais de um ano após o Brexit ainda abundam dúvidas sobre como será o 'divórcio' entre o Reino Unido e a União Europeia. Não há, portanto, cenários previsíveis que se possam fazer sobre a Catalunha.

Apesar do agravar da tensão, nenhuma das partes recuou. Madrid e Barcelona continuam a pouco mais de 500 quilómetros de distância. Mas este domingo, para alguns, essa distância será figurativamente muito maior.

Na sexta-feira, já após termos falado por telefone, recebemos uma SMS em que Maria contava que um familiar seu tinha testemunhado a chegada de um grupo de tratores, vindos das zonas rurais, preparados para dar o seu apoio à consulta popular. O desafio a Madrid, parece claro, não se fica pelas autoridades catalãs.

Notícias ao MinutoNa passada sexta-feira, tratores com bandeiras da Catalunha ocuparam parte do centro de Barcelona© Reuters

Este domingo, nas ruas, muitos catalães vão sair de casa para votar.

Vão votar, mesmo quando o lado do 'Não' evitou fazer campanha para evitar dar credibilidade à votação. Vão votar, mesmo quando de Madrid chegam críticas para os separatistas, a quem acusam de "rebelião". Vão votar ainda que os seus votos não sejam vinculativos para quem olha de fora. Vão votar mesmo que tribunais e governo espanhol repitam que o ato é ilegal. 

O dia de hoje promete ser mais um momento marcante na relação entre Espanha e a Catalunha. Falta agora saber como será o dia seguinte.

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