Meteorologia

  • 19 ABRIL 2024
Tempo
20º
MIN 15º MÁX 21º

Derrota do Daesh em Mossul é o fim de uma batalha mas não da guerra

O autodesignado Estado Islâmico foi derrotado em Mossul e as perdas de território do grupo terrorista são cada vez mais significativas. No entanto, o receio de novos conflitos sectários no Iraque não permite um grande optimismo relativamente ao futuro do país, isto enquanto milhares de pessoas tentam renascer das cinzas.

Derrota do Daesh em Mossul é o fim de uma batalha mas não da guerra
Notícias ao Minuto

08:40 - 23/07/17 por Pedro Bastos Reis

Mundo Iraque

O mundo foi apanhado de surpresa e ficou perplexo quando a 29 de junho de 2014, em pleno início do Ramadão, na mesquita Al-Nuri, em Mossul, o extremista Abu Bakr al-Baghdadi, líder do autodesignado Estado Islâmico, proclamou o califado na Síria e no Iraque. Três anos depois, o exército iraquiano conseguiu recuperar a cidade onde o califado foi proclamado, numa batalha sangrenta e devastadora.

Os relatos feitos pelos media internacionais são avassaladores. Mossul é uma cidade arrasada, com ruas e edifícios totalmente destruídos, corpos no chão, milhares de pessoas desesperadas por ajuda, uma crise humanitária em que são exigidas respostas

“Não há nenhum edifício que não tenha sido afetado pelos ataques aéreos e terrestres. O cheiro de corpos em decomposição enche o ar quente de julho”. Esta é a descrição feita pela correspondente da Al Jazeera no local, Francesca Mannocchi, que pode ser complementada pelo estado total de paranóia que se vive na cidade, em que a população teme que os jihadistas consigam subornar as autoridades iraquianas e sair em liberdade, algo que, segundo Patrick Cockburn, correspondente do The Independent, já aconteceu.

“A paranóia no final de uma guerra muito violenta explica parcialmente o porquê de muitos iraquianos estarem convencidos de que os perigosos membros do ISIS [abreviatura em inglês para Estado Islâmico do Iraque e da Síria] possam fazer subornos no seu caminho para a liberdade”, escreve Cockburn.

Apesar do caos que se vive em Mossul, parece certo que os jihadistas foram mesmo derrotados e que dificilmente poderão voltar a controlar a cidade. A confirmação da vitória foi dada pelo próprio primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, que se deslocou a Mossul e fez um discurso a dar conta da derrota dos jihadistas, isto enquanto ainda se ouviam tiros na cidade.

Ou seja, apesar de o Governo iraquiano reiterar uma vitória completa, o som de troca de tiros e alguns bombardeamentos aéreos ainda fazem temer o pior, o que é agravado pela enorme quantidade de pessoas que fogem do oeste de Mossul, atravessando o Rio Tigre, em busca de segurança, eletricidade e água no este da cidade, relata Patrick Cockburn.

Mossul: Da proclamação do califado à incerteza

A vitória militar sobre o Daesh é também uma vitória simbólica, que, apesar de ter sido dada como garantida há alguns meses, começou a ganhar forma quando os jihadistas, na iminência da derrota, destruíram a mesquita Al-Nuri, o mesmo local onde há três anos foi proclamado o califado.

O paradeiro de Al-Baghdadi é incerto, não sendo totalmente possível confirmar a morte do líder do autodesignado Estado Islâmico, que chegou a ser avançada pelo Observatório Sírios dos Direitos Humanos, uma ONG com uma série de médicos e ativistas no local, cujos dados costumam ser referência na análise ao conflito na Síria.

Mas, confirmando-se ou não a morte de Al-Baghdadi - que tem sido noticiada inúmeras vezes nos últimos anos, sempre sem confirmação oficial -, é inegável o impacto simbólico que as perdas de território por parte dos jihadistas constituem para as aspirações do grupo, que chegou a controlar um território superior ao do Reino Unido.

Nos últimos meses, o poder do grupo extremista na região tem diminuído: segundo os números de maio do departamento de Defesa dos Estados Unidos, o Daesh perdeu mais de 65% do seu território no Iraque e mais de 45% na Síria.

Contudo, durante três anos, o Daesh controlou uma vasta área de território, teve um enorme exército e uma administração que lhe permitiu controlar pontos estratégicos dos dois países, nomeadamente os vastos poços de petróleo, fundamentais para o financiamento do grupo. Nesse sentido, é importante compreender como é que foi possível um crescimento de tamanha dimensão.

Desde a invasão do Iraque por parte dos Estados Unidos em 2003 que o país ficou mergulhado no caos. Saddam Hussein e o seu partido Baath caíram, deixando o Iraque fragmentado em conflitos sectários entre sunitas e xiitas. Foi neste ambiente que a Al-Qaeda, liderada pelo jordano al-Zarqawi, cresceu no país, tendo dado origem, anos mais tarde, ao que hoje conhecemos como autodesignado Estado Islâmico.

Agora que o grupo começa a perder muitas das zonas que em tempos controlou, a grande questão que se coloca é perceber como vai ficar o tabuleiro estratégico no Iraque. “No Iraque, diferentes fações e milícias anti-ISIS podem ver este momento como uma oportunidade para afirmarem o seu domínio e tentarem capturar recursos ou controlo político. Os desentendimentos não se limitam a uma simples divisão entre xiitas e sunitas, são também endémicos dentro de diferentes milícias ou grupos políticos”, escreve a Al Jazeera.

Renascer perante o receio de novos conflitos sectários 

Em Mossul, há o receio de que os interesses dos vários grupos que combateram o Daesh colidam e que a tensão possa escalar rapidamente para um novo conflito. Os curdos, fundamentais na reconquista da cidade, poderão entrar em confronto com o Governo de Bagdade com o objetivo de aumentar o seu território, sendo possível que as conquistas dos Peshmerga sejam utilizadas como moeda de troca.

“A questão só irá agravar as divisões já existentes no Iraque sobre como o país deve dividir as suas receitas de petróleo e o orçamento federal entre a região curda e o resto do país”, escreve Jonathan Steele, no The Guardian.

Para o antigo correspondente internacional do jornal britânico, é também expectável que a tensão entre xiitas e sunitas suba de tom. “Há o risco de violência entre árabes sunitas e xiitas. Em 2014, o ISIS foi capaz de capturar Mossul de uma forma relativamente fácil porque a maioria da população sunita da cidade sentiu-se negligenciada por Bagdade. Muitas pessoas sentiram mesmo que o exército iraquiano pós-Saddam, sobretudo constituído por xiitas, comportava-se como um poder ocupante”, explica Steele.

Enquanto é expectável que as tensões sectárias aumentem, há uma cidade que precisa de ser reconstruída e pessoas desesperadas por ajuda. Segundo a Al Jazeera, o valor das reparações nas infraestruturas de Mossul aproxima-se dos mil milhões de euros e mais de 800 mil pessoas estão a viver em campos improvisados, muitos deles sem as mínimas condições, diz a Organização Internacional para as Migrações.

Várias organizações de defesa dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, denunciam as condições degradantes em que muitos iraquianos vivem, impossibilitados de regressarem às suas casas, e pedem que seja criada uma comissão independente para investigar crimes de guerra cometidos por todos os lados envolvidos no conflito.

Nos próximos meses, Mossul será uma cidade a tentar reconstruir-se das cinzas, depois de três anos sob domínio do terror e de destruição. Enquanto a eminência de novos conflitos sectários causam o medo no país, há uma população que tenta recuperar a humanidade perdida quando al-Baghdadi proclamou um califado sangrento e devastador. Uma batalha foi vencida mas a guerra está longe do fim.

Recomendados para si

;
Campo obrigatório