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Polónia. Migração que ninguém vê numa campanha erguida num muro de medo

A presença de imigrantes escondidos atrás de um muro na fronteira polaca com a Bielorrússia marcou um debate sobre uma ameaça invisível na campanha eleitoral, que encerrou na sexta-feira na Polónia, e que será chave essencial para os resultados.

Polónia. Migração que ninguém vê numa campanha erguida num muro de medo
Notícias ao Minuto

11:11 - 14/10/23 por Lusa

Mundo Polónia

A minúscula aldeia de Opaka não dá sinais de vida nesta região remota do leste da Polónia e o silêncio é apenas perturbado à passagem frequente de colunas de camiões militares. De um lado, a localidade extingue-se em campos agrícolas até ao horizonte, do outro suspende-se subitamente num descampado de onde se ergue uma barreira metálica e arame farpado de cinco metros de altura, com câmaras de videovigilância a cada cem metros.

Atrás dela fica outro país e é nas suas vastas e densas florestas de pinheiros vermelhos e vidoeiros brancos que se escondem grupos de migrantes provenientes de muito longe, no continente africano e no Médio Oriente, e ali deixados à sua sorte.

Mais uma vez nada se ouve, mas a existência destes grupos de migrantes deu origem a uma musculada resposta de Varsóvia desde sobretudo 2021, na forma de uma barreira de 186 quilómetros ao longo da fronteira com a Bielorrússia, e a um ruidoso debate sobre a suposta ameaça da migração para um país pouco habituado a lidar com ela, a que o exercício autocrático do regime de Alexander Lukashenko em Minsk e a guerra na Ucrânia aumentaram a intensidade.

Tudo terá começado com um grupo de migrantes afegãos apanhado nesta fronteira pelas autoridades polacas, abrindo espaços noticiosos sobre uma realidade que era até então distante e localizada no Mediterrâneo, mas seguiram-se outras e cada vez mais.

"No início foi um pouco chocante. Por um lado, as pessoas podiam sentir medo e acho que é uma emoção muito normal porque não se sabia realmente o que estava a acontecer", recorda Paulina Siegien, jornalista polaca residente na região, enquanto as autoridades iam devolvendo os migrantes para a Bielorrússia, e criando as bases para um "discurso do medo".

Depois, começou a ficar claro que esta nova vaga tinha uma intenção deliberada do Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ao permitir e incentivar, através de agências especializadas de recrutamento nos países origem, o trânsito destes migrantes pelo seu país e empurrá-los para a Polónia.

O fim seria desestabilizar a harmonia política na União Europeia (UE), após a grande crise migratória em 2015 e que provocou amplas divisões, com a Polónia a pôr-se na linha da frente daqueles que defendiam o reforço do controlo das fronteiras, num discurso que contribuiu para levar o partido Lei e Justiça (PiS) ao poder até hoje.

A fronteira foi então fechada, a barreira metálica em betão concluída já este ano e pelo menos dez mil efetivos das forças armadas foram enviados para a região para reforçar a guarda de fronteira, tornando-a numa das mais militarizadas de Europa.

Isto para manter a integridade territorial do país, segundo as autoridades, numa política que os ativistas da região reprovam.

"A única estratégia é a força: não deixar os migrantes entrar e forçá-los a sair se já estiverem dentro, ganhando assim apoio público para as suas soluções enérgicas ao gerar divisão e medo, numa ferramenta política tão antiga como a humanidade", comenta Olívia Hurley, ativista do Grupo Granica (Fronteira), que se constituiu desde o início deste caso.

Quando forem votar no domingo para as legislativas, cerca de 30 milhões de polacos vão confrontar-se com a continuidade no poder dos nacionalistas populistas do PiS, que procuram um inédito terceiro mandato, sob a direção do histórico dirigente Jaroslaw Kaczynski, ou a alternativa liberal da Plataforma Cívico (PO), do ex-presidente do Conselho Europeu Donald Tusk. Ou também com as opções da Terceira Via (conservadores), a Esquerda ou ainda a Confederação (extrema-direita), e que, dada as estreitas margens que separam as duas principais forças partidárias, serão decisivas para viabilizar o futuro governo.

Vão ainda votar também em quatro referendos, dois dos quais dedicados à migração - um sobre a permanência da barreira com a Bielorrússia e outro em que se pergunta aos polacos se concordam com "a admissão de milhares de imigrantes ilegais do Médio Oriente e de África, de acordo com o mecanismo de relocalização forçada imposto pela burocracia europeia".

É uma questão à medida destes grupos migrantes, porque não se abre o leque a outros asiáticos ou de outras regiões do planeta, ou até aos mais de um milhão de refugiados ucranianos desde fevereiro de 2022.

Este enunciado, segundo Donald Tusk, é característico do discurso xenófobo do PiS, para o qual a imigração descontrolada é apresentada como a grande ameaça à segurança europeia que Bruxelas não sabe compreender, numa narrativa que ficou em causa com o escândalo recentemente divulgado da trama de corrupção diplomática polaca que supostamente vendeu mais de 250 mil vistos a imigrantes asiáticos e africanos e que veio tornar ainda mais confusa a situação no "muro da Bielorrússia".

Varsóvia, que rejeitou recentemente o Pacto de Migração da UE, tem repetidamente argumentado que os planos de relocalização de imigrantes propostos por Bruxelas transformariam, nas palavras do primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, "as ruas polacas em campos de batalha" e dariam origem a "imagens como as de Paris" e que as críticas à sua política vêm de "idiotas úteis que beneficiam Moscovo"

Após a estreia do filme "Green Border", da polaca Agnieszka Holland, vencedora do prémio do grande júri de Veneza, que se debruça de modo critico sobre a fronteira com a Bielorrússia, o Presidente da Polónia, Andrzej Duda, foi ainda mais longe e citou os guardas de fronteira quando dizem que "só os porcos se sentam no cinema", uma expressão alusiva à exibição de propaganda nazi durante a ocupação alemã.

O tom não baixou durante a campanha eleitoral, a que a distribuição por uma fundação ligada ao Governo de um folheto nas caixas de correio dos eleitores com imagens de uma embarcação carregada de migrantes no Mediterrâneo e a frase "Eles estão a chegar! "veio ainda mais avolumar.

Apesar da retaliação de Varsóvia, as vagas dos novos corredores migratórios parecem contínuas numa nova situação para os polacos, menos habituados ao multiculturalismo étnico na sua sociedade por comparação a países com passados coloniais: "Ninguém pode imaginar a migração como evitável. Provavelmente, muitas pessoas gostariam de um país branco puro e não têm sequer espaço para verificar por si mesmas outra possibilidade porque foi-lhes dito desde o início que era uma coisa má", observa Olívia Hurley.

No entanto, na base da questão está um número desconhecido de migrantes, mas que alguns dados ajudam a dar uma noção da sua reduzida expressão face à dimensão que ganhou, em que a Granica indica cerca de 20 casos de pedidos de socorro e as autoridades, que só contabilizam tentativas de travessia ilegal, cerca de 50 mil, mas que, "em muitos casos podem tratar-se de reincidentes dez ou vinte vezes, porque os guardas bielorrussos não os deixam voltar para trás e até os ajudam a passar a barreira", descreve a ativista.

O "discurso do medo" prossegue na forma como se ecoam crimes relacionados com migrantes noutros países, como homicídios e violações, mas, segundo Paulina Siegien, desde o início desta crise, "nem um se conhece" e, se acontecesse, prossegue Olívia Hurley, "seria história para semanas, porque as pessoas estão sentadas nas suas casas assustadas, e dois anos depois, nada lhes aconteceu, e então buscam-se casos noutras partes do mundo em que, por incrível que pareça, se um migrante espirra em Malta em direção a uma pessoa branca, é notícia na Polónia".

Para a jornalista polaca, é evidente que a questão migratória "já não é apenas abstrata" como em 2015, quando o PiS ganhou as eleições e veio para ficar, mas também mal focada. Entre os argumentos cruzados, ninguém fala da situação terrível dos migrantes aprisionados nas florestas, sem outro ponto de fuga que não seja saltar a barreira.

Tudo o resto é "histeria instalada" e "falta de bom senso" quando se pensa que o problema fica resolvido com referendos, aço, betão e arame farpado - como aliás se pretende fazer também no enclave russo de Kalininegrado, no norte do país -, câmaras de vigilância e um soldados a cada dois metros de arma na mão -- "isso é impossível".

Se o destino final destes migrantes parece ser a Alemanha, que, depois da revelação do escândalo da venda de vistos, mandou reforçar a vigilância das pessoas provenientes da Polónia, que por sua vez fez o mesmo em relação à Eslováquia, "talvez o melhor, por absurdo, seja construir muros nas fronteira alemãs e eslovacas", ironiza jornalista, em vez de se debater que é o próprio futuro demográfico do país, à semelhança do resto da Europa, que está em jogo. 

Quanto à oposição, por mais desalinhada que esteja ideologicamente com o partido no poder, não se podem esperar mudanças substanciais, porque "a migração é um ativo tóxico na campanha eleitoral" e sondagens de 80% que não querem imigração de países culturalmente diferentes torna "impossível ganhar eleições assim".

"Talvez a abordagem em relação a nós mudasse", refere por seu lado a ativista da Granica sobre uma vitória da oposição, "mas não haveria nenhuma alteração imediata das políticas de migração, porque eles não sabem como lidar com a situação, e o muro continuará no mesmo lugar".

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