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"Os palestinianos são demonizados, independentemente do que façam"

Depois do ataque do Hamas no sábado, os últimos dias têm sido marcados pela contraofensiva israelita na Faixa de Gaza, onde cerca de 2,3 milhões de palestinianos vivem sem hipótese de saída. Ao Notícias ao Minuto, a analista política Yara Hawari disse que é necessário colocar a atual situação no contexto da ocupação e ter atenção à linguagem usada para a descrever.

"Os palestinianos são demonizados, independentemente do que façam"

O ataque de sábado passado surpreendeu por completo o sofisticado sistema de vigilância israelita. Depois de 75 anos de ocupação e décadas de cerco sobre a Faixa de Gaza, isolando por completo o pequeno enclave palestiniano e os seus habitantes, o Hamas, o grupo fundamentalista que governa a zona, lançou um dos seus maiores ataques sobre Israel. Foram mortos, até agora, mais de 1.300 israelitas, com as imagens de alguns dos ataques (incluindo a festivais de música) a chocarem o mundo e a merecerem votos de condenação.

A resposta direta de Israel aos ataques pelo Hamas focou-se em Gaza, com bombardeamentos contínuos que arrasaram a região. As forças israelitas têm alertado que os ataques não vão parar até que o Hamas seja eliminado, prometendo uma luta dura e apontando para uma "ofensiva total" que poderá culminar com uma invasão terrestre. Até agora, morreram cerca de 1.500 civis em Gaza.

Vivem 2,3 milhões de palestinianos nas cidades da Faixa de Gaza - uma zona cuja área é mais pequena do que a área do concelho de Barcelos -, em ruas estreitas e prédios altos e frágeis. A água, eletricidade e gás para a região são completamente controlados por Israel que, no fim de semana, anunciou um corte a todos esses serviços. Organizações não governamentais têm alertado para as dificuldades em oferecer serviços médicos, a Organização das Nações Unidas (ONU) voltou a pedir a Israel que respeite a lei humanitária, mas a população - que já é vulnerável pelo facto de 40% dos habitantes ter 14 anos ou menos - continua presa entre o Hamas, uma autoridade política que há muito excedeu o seu mandato, e Israel, um ocupante que não lhes dá tréguas.

Para Yara Hawari, analista na rede política palestiniana transnacional Al Shabaka, é fundamental clarificar que, embora se esteja a formar uma nova crise humanitária na Faixa de Gaza, esta é também uma crise "fabricada".

"Isto é uma crise política. Isto é uma crise fabricada, não houve um terramoto em Gaza, não houve cheias. Houve bombardeamentos de um regime a quem foi dada impunidade internacional. Temos de reformular isto como uma crise política, na qual um regime está a colocar uma população inteira sob cerco numa prisão a céu aberto", afirmou Hawari, doutorada em política do Médio Oriente pela Universidade de Exeter e colonista em órgãos como o The Guardian e a Al Jazeera.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a especialista vincou que o cerco anunciado pelo governo "obscura a realidade" de que o cerco já existe há anos, devido às restrições ao fornecimento de energia e à falta de liberdade de movimentos. E parte da culpa assenta na comunidade internacional, especialmente no Ocidente, onde "há falta de vontade política para desafiar Israel por manter 2 milhões de pessoas presas.

"Em vez disso, focam-se na situação humanitária, falam da destruição de infraestruturas, das baixas e dos feridos, numa voz muito passiva, como se não houvesse responsável, e isso é profundamente problemático e perpetua o status quo. Se não se falar sobre responsáveis e não os escrutinarmos, isto vai continuar', frisou, alertando para um padrão de provocação e intensificação da violência que "continua a aprofundar o problema".

Dimensão dos ataques pouco alterará perceção internacional

Nas horas imediatamente a seguir aos ataques do Hamas sobre os israelitas, em particular contra civis, líderes de todo o mundo condenaram aquilo que Estados Unidos, União Europeia e tantos outros aliados de Israel afirmaram ser um "ataque terrorista".

Mas, mais recentemente, líderes, como o secretário-geral das Nações Unidas, têm pedido que Israel respeite o direito humanitário, que permita a passagem de bens médicos e que evite o castigo coletivo de civis (que é um crime de guerra).

Para a maioria da comunidade internacional, em particular no Ocidente, não importa o quão longe Israel vai

Yara Hawari não acredita, contudo, que qualquer grau de violência da parte de Israel vá alguma vez merecer o mesmo grau de condenação que os ataques do Hamas mereceram.

"O que é claro e o que tem sido tornado claro ao longo dos vários anos é que, para a maioria da comunidade internacional, em particular no Ocidente, não importa o quão longe Israel vai", disse, dando como exemplo as manifestações pacíficas de maio de 2018, quando dezenas de milhares marcharam em direção às fronteiras da Faixa de Gaza, com jornalistas a captar os momentos, antes de serem mortos pelo exército.

"Não há nada que os palestinianos possam fazer bem, são demonizados independentemente do que façam, e Israel tem garantida impunidade pelo que faz. Infelizmente, não acho que isto vá mudar os pesos na balança. Não podemos dizer: 'Mais um massacre vai ser o que finalmente abana estes países'", lamentou.

A especialista deixou ainda críticas a movimentos e partidos pró-palestinianos a nível internacional, nomeadamente a partidos portugueses, que defenderam o direito dos palestinianos à sua autodeterminação mas criticaram as ações do Hamas, por não representarem o povo palestiniano e por colocarem em causa essa luta.

A esses grupos, Hawari critica por fazerem uma "avaliação repleta de hipocrisias". "Muitos - e estou a falar principalmente de partidos progressistas e da esquerda 'mainstream' - apoiam os palestinianos quando somos as vítimas, quando estamos a morrer, a ser bombardeados, a ser baleados. Eles apoiam-nos na morte, mas não nos apoiam na resistência", apontou.

Notícias ao Minuto Imagens de terça-feira demonstram a dimensão dos bombardeamentos em Gaza© Mohamed Zaanoun/Middle East Images/AFP via Getty Images

E reiterou também que "os palestinianos nunca poderão vencer", até quando usam métodos pacíficos, como o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), o movimento mais reconhecido a nível internacional, argumentando que "mesmo quando os palestinianos pedem o mínimo dos mínimos e pedem que sejam reconhecidos os seus direitos no âmbito da lei internacional, dizem-lhes que estão a pedir muito".

"É muito importante que insistamos em linguagem que seja mais correta para descrever a realidade"

Ao longo da cobertura de vários órgãos de comunicação à situação na Palestina e em Israel, têm sido várias as críticas de apoiantes da causa palestiniana ao tipo de linguagem utilizada. A palavra "conflito" é regularmente usada para descrever a situação, tanto por jornais como por instituições. E, recentemente, a BBC foi amplamente criticada por, numa notícia, escrever que um certo número de israelitas foi "morto", enquanto um outro número de palestinianos "morreu".

Yara Hawari explicou que, neste contexto de guerra e de ocupação, o uso de linguagem considerada incorreta pelos movimentos palestinianos "tem consequências muito concretas no terreno".

"Quando se usa a palavra 'conflito', isso pressupõe que há dois lados iguais. Remove a ideia de um povo oprimido e colonizado e foca a discussão em dois grupos em guerra, que se devem sentar e resolver as suas divergências. É muito importante que insistamos em linguagem melhor e que seja mais correta para descrever a realidade, e não linguagem que tenta despolitizar ou lavar a situação", apelou a académica.

Hawari deu, precisamente, o exemplo da publicação da BBC, para alertar para o sentimento que uma simples palavra causa.

"Não é a primeira vez nem a última em que dizem que palestinianos mortos por bombardeamentos israelitas simplesmente "morreram", passivamente, como se a nossa natureza fosse cair ao chão e morrer. O que isso faz é adormecer a audiência para as mortes palestinianas. Se pensarmos no assunto, se um israelita é 'morto' e um palestiniano 'morreu', como é que isso te faz sentir? Tem um impacto muito significativo", sublinhou ainda a analista política.

Leia Também: "Governo israelita incentiva ao ódio, mas isso não desencadeou ataques"

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