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Ataques em Moçambique. Fugir com o uniforme para ainda terminar a escola

Bila Sufo Amade ouviu pela primeira vez o nome Al-Shabab em 2021 e passou os dias seguintes no mato, em Cabo Delgado, Moçambique, fugindo com a farda da escola que hoje apruma no regresso às aulas.

Ataques em Moçambique. Fugir com o uniforme para ainda terminar a escola
Notícias ao Minuto

08:39 - 29/08/23 por Lusa

Mundo Cabo Delgado

"Fiquei cerca de uma semana no mato. Estive sozinho", recordou o jovem estudante à Lusa na Escola Primária Completa (EPC) de Impire, distrito de Metuge, província de Cabo Delgado, onde desde então está deslocado, tentando concluir o 11.º ano, numa escola diferente e que progressivamente tem sido recuperada pela organização não-governamental (ONG) portuguesa Helpo.

Os pais de Amade, de Macomia, outra vila fortemente visada pelos ataques terroristas, já o tinham mandado em 2020 para Meluco, para estudar na Escola Secundária de Muaguide, até que em janeiro do ano seguinte os insurgentes entraram naquela localidade.

"Perguntaram-nos: 'vocês conhecem Al-Shabab?'. Dissemos que não (...) Disseram-nos que esta era a primeira vez, na segunda, se nos encontrassem lá, matavam-nos a todos", recordou.

"Só trouxe as roupas que eu tinha e a bata. É o meu uniforme, não o posso entregar", explicou, orgulhoso, até porque é o único que continua a ir à escola, na aldeia de Impire, a 50 quilómetros de Pemba, com a farda escolar -- obrigatória em Moçambique -- diferente.

"Não me dizem nada", brincou.

Na Escola Secundária de Muaguide, abandonada desde os ataques, estava a tentar concluir o 11.º ano de escolaridade. Agora, em Impire, a 120 quilómetros de distância, retoma a escola, tentando concluir o secundário com o pouco rendimento que tira da horta, que trata com a família, entre as centenas de deslocados que ali estão.

"O meu sonho é ser polícia", atirou.

Presente na aldeia de Impire desde 2009, a Helpo construiu, ao longo dos últimos anos, oito das 12 salas em alvenaria da EPC. Destas - que se somam a vários espaços de tendas e aulas à sombra da árvore - três foram inauguradas na segunda-feira e vão reforçar o espaço para as aulas do 12.º ano numa aldeia que não pára de crescer devido à concentração de centenas de famílias em fuga das áreas dos ataques insurgentes.

"Quando nós chegamos cá tinha cerca de 800 alunos, neste momento ultrapassa os 2.000. Achamos que isso também tem muito a ver com o esforço da Helpo, mas sobretudo por parte dos padrinhos da Helpo, que nos têm apoiado desde o início", explicou à Lusa o coordenador nacional da ONG, Carlos Almeida.

Só estas três salas, inauguradas em plena festa, representaram um investimento de 45.000 euros, em grande parte angariados por um "padrinho" da instituição, no norte de Portugal, e da organização Eurhope.

"Quando muitas pessoas dão um pequeno apoio conseguimos fazer coisas muito bonitas", apontou.

Buana António, 28 anos, fugiu há três anos da aldeia de Natuga, em Quissanga, também em Cabo Delgado, quando surgiram os ataques insurgentes ao distrito e nunca mais lá voltou. Hoje, é nas salas construídas pela Helpo que tenta concluir o 8.º ano de escolaridade.

"Eles vieram e começaram a queimar as casas", recordou, sobre a fuga da aldeia natal, que levou vários dias e noites, pelo mato, na companhia de toda a população.

"Em três anos nunca voltei à minha terra porque tenho medo", admitiu.

Atualmente, vive no centro de acolhimento em Impire, com a mulher e os três filhos.

"Na minha zona não há escola neste momento, por isso pensei em estudar aqui. Se a situação passar, eu vou voltar", afirmou, admitindo o sonho de terminar o 12.º ano e ser militar, ao recordar os dias que teve de fugir dos ataques em Quissanga.

"Sou moçambicano, então quero defender Moçambique", disse.

A EPC de Impire funciona com salas anexas da Escola Secundária de Metuge, o que, com as salas construídas pela Helpo, permitiu evitar que os alunos mais velhos da aldeia tivessem de se deslocar 35 quilómetros para frequentar o 10.º ano.

"Foi uma grande conquista. Ajudou a que a desistência escolar baixasse muito", salientou Carlos Almeida.

Desde 2010, nas províncias de Nampula e de Cabo Delgado, a Helpo já construiu e disponibilizou 99 salas de aula ao Ministério da Educação de Moçambique, permitindo reforçar o acesso à educação nos locais mais remotos de Moçambique.

"É algo que nos enche muito de orgulho", frisou.

Em Impire, a ONG já forneceu 200 carteiras à escola, três sistemas de aproveitamento de águas pluviais e uma biblioteca. Fornece ainda bolsas de estudo para o ensino secundário, lanches escolares, além de projetos ligados às raparigas moçambicanas, como o Laboratório da Rapariga, que também equipa esta escola.

"Uma menina que estuda numa escola que termine na sétima classe, num ambiente rural como é este, em Impire, muito provavelmente vai ser mãe no ano seguinte. Enquanto as meninas e os rapazes estão a estudar estão focados em ser crianças, em estudar, em seguir os seus sonhos e não em fazer família, que muitas vezes nasce da pressão de grupo e à volta", referiu Almeida.

O Presidente da República, Filipe Nyusi, afirmou na sexta-feira, em Maputo, que o "líder dos terroristas" no país, Bonomade Machude Omar, foi "colocado fora de combate", mas alertou que a luta contra o terrorismo, que afeta há quase seis anos Cabo Delgado, continua.

"Então, significa que a perseguição prevalece e continua até onde os terroristas operam, em pequenos grupos", acrescentou Nyusi.

O conflito no norte de Moçambique já fez um milhão de deslocados, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED.

Leia Também: CPLP solidária com luta contra terrorismo no norte de Moçambique

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