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Barbie na terra dos mandarins (e a 'linha dos nove traços')

Um artigo de opinião assinado por Dantas Rodrigues, advogado desde 1993, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados e professor de Direito do Ensino Superior Politécnico desde 1995.

Barbie na terra dos mandarins (e a 'linha dos nove traços')
Notícias ao Minuto

10:33 - 18/08/23 por Notícias ao Minuto

Mundo Artigo de opinião

"Barbie, a boneca mais famosa do mundo, transmutou do plástico em humana, desta feita para encher as salas de cinema, em pleno verão, com faturações de bilheteira superiores a um bilião de dólares.

Se no mundo «Barbie Land» tudo decorre na perfeição porque as mulheres detêm o poder, quando Barbie e Ken decidem ingressar no mundo real, este deixa de ser cor-de-rosa e complica-se. Chama-se a isso a síndrome de Peter Pan, ou seja, crianças em corpos de adultos incapazes de crescer, como muito bem as definiu em 1983, na sua obra homónima, o psicólogo norte-americano Dan Kiley

Embora o filme pretenda ser uma comédia sarcástica, Barbie passa uma imagem de feminista liberal, centrada em temas como a igualdade profissional e o «mansplaning», uma subtil forma de assédio masculino, machista, «woke», em suma, tudo em perfeita conformidade com a agenda pós-moderna e que vende como pãezinhos quentes. O mundo dos brinquedos quando se mistura com o mundo dos humanos tolos, incapazes de distinguir a ficção da realidade, vê aquilo que Barbie e o seu «boyfriend» Ken desconheciam. Por isso, no itinerário por ambos escolhido rumo ao mundo real, passam pelo imaginário Mar da China Meridional e pelos territórios por ele banhados em breves segundos visíveis num mapa de linhas tracejadas a branco. 

Essas famosas linhas tracejadas a branco em forma de «U», conhecidas no Extremo Oriente pela «linha dos nove traços», delimitam a área territorial reivindicada pela China como pertença sua desde o fim da Segunda Guerra Mundial e da consequente capitulação do império japonês Meiji do Sol Nascente, alegando para tanto direitos históricos sobre as suas águas meridionais, em virtude de ali haver explorado e administrado ilhas e recursos marítimos vários em séculos transatos.

Tem sido intensa a disputa do direito internacional pelo Mar da China Meridional, uma das áreas mais controversas do globo, que abrange cerca de 3,5 milhões de quilómetros quadrados, e onde as águas, as ilhas, as ilhotas e os recifes se transformaram num palco de infindáveis reivindicações desde 1947. A «linha dos nove traços» baseou-se em mapas que mostravam as ilhas Paracel e Spratly como parte integrante da China Dinástica desde o século XV.

O que a China atual pretende, como direito consuetudinário, é ficar com uma das mais importantes rotas comerciais do mundo, delimitada a Norte por ela própria e pelo Taiwan, a Leste pelas Filipinas, a Oeste pelo Vietname e a Sul pelo Brunei, pela Indonésia e pela Malásia, com acessos pelos estreitos de Malaca e da Formosa.

Como seria de esperar os países costeiros não aceitam a tão apetecida soberania chinesa sobre as águas meridionais, destacando-se países como o Vietname e as Filipinas, os quais têm procurado ajuda junto das Nações Unidas, a fim de dirimirem o conflito.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) é um tratado internacional que estabelece os princípios e normas para o uso e a exploração dos oceanos e dos mares, sendo o único quadro jurídico para a resolução dos conflitos entre os países que reivindicam a soberania ou os direitos sobre as ilhas, os recifes, os baixios e as águas. A CNUDM reconhece a autoridade dos países costeiros sobre as suas águas territoriais, cuja extensão se prolonga até 12 milhas náuticas do litoral, e os seus direitos exclusivos sobre os recursos naturais da zona económica exclusiva (ZEE), cuja extensão se prolonga até 200 milhas náuticas do litoral.

Embora existam normativos adequados, a sua aplicação depende sempre da vontade política e da cooperação dos países envolvidos, bem como do respeito pelo direito internacional. E quando não se deseja respeitar o referido direito, então os conflitos subsistem, ou sobem mesmo de tom, e quase sempre os países costeiros justificam as suas posições com interpretações muito díspares das normas internacionais, nenhum dos envolvidos admite, violar a Convenção sobre o Direito do Mar.

Neste rol de controversas interpretações, em 2013 as Filipinas apresentaram uma queixa no Tribunal Arbitral da Haia, tendo este mais tarde, em 2016, emitido uma decisão em que se concluía o seguinte: a) a China não possui base legal para reclamar direitos consuetudinários sobre a maior parte das suas águas meridionais, e compreendidas dentro da «linha dos nove traços», a qual abrange quase 90% do mar; b) nenhuma das ilhas, recifes, bancos de areia e formações rochosas reivindicadas pela China nas suas águas meridionais geram direitos a dispor de uma ZEE; e c)  a China violou os direitos soberanos das Filipinas ao interferir com as suas atividades de pesca e exploração de recursos marítimos, construindo ilhas artificiais que causaram danos ambientais irreversíveis. 

A decisão do Tribunal Arbitral da Haia, embora se afigure vinculativa para as partes, pouco caso dela fazem, já que não existem mecanismos internacionais para garantir a sua aplicação. A China, como seria de esperar, rejeitou essa decisão desde o início, alegando inexistência de jurisdição sobre tal matéria e que a sua posição histórica era irrefutável, detendo em exclusivo a soberania sobre o seu mar.

Com tanta e grave controvérsia, Barbie, viu o seu filme ser proibido no Vietname, que o taxou de «abominável animação», e nas Filipinas foi projetado nos cinemas, mas só depois de apagado o fotograma do mapa da «linha dos nove traços». 

Mal sabia a Barbie e o seu «boyfriend», Ken, que rumar à terra dos mandarins sem crescer de cabeça, tem interditos e fronteiras cuja compreensão se encontra a largas centenas de milhas náuticas dos seus pequenos entendimentos."

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