A capital do Iraque está hoje cheia de vida, segundo o relato da Associated Press, os seus residentes desfrutam de um raro interlúdio pacífico numa dolorosa história recente. O mercado de livros ao ar livre da cidade está lotado de compradores. Jovens ricos transitam em carros atraentes. Alguns edifícios, onde as bombas antes caíam, agora brilham.
O Ex-Presidente George W. Bush ordenou a invasão liderada pelos Estados Unidos, lançada em 20 de março de 2003, como uma missão para libertar o povo iraquiano. Afastou um ditador, em 09 de abril de 2003, cujo governo manteve 20 milhões de pessoas com medo ao longo de um quarto de século. Mas também quebrou um estado unificado no coração do mundo árabe, um tampão entre a Síria e o Irão.
Os militares norte-americanos só abandonaram o país em 2011, após quase nove anos de conflito, que, segundo a organização Iraq Body Count, provocou cerca de 300 mil mortos, pelo menos 186 mil dos quais civis, e quase cinco mil entre as forças internacionais.
Metade da população de hoje não tem idade suficiente para se lembrar da vida sob jugo de Saddam, deposto há 20 anos, e depois enforcado, após ter sido condenando por um tribunal local. Em entrevistas em Bagdade e Falujjah, jovens iraquianos lamentaram à AP o caos que se seguiu à queda do ditador, mas muitos mantêm esperança com as novas liberdades e oportunidades, após uma guerra que não encontrou a sua principal causa: a posse de armas químicas.
A operação Liberdade do Iraque, lançada à margem da comunidade internacional e das Nações Unidas, mergulhou o país no caos e deixou centenas de milhares de vítimas.
A invasão, apoiada pelo Reino Unido e por vários países europeus, como Portugal e Espanha, partiu da premissa de que o Iraque tinha armas de destruição maciça e estava implicado nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, argumentos que desde então foram desacreditados e prejudicaram a imagem de Washington na região.
A operação Liberdade do Iraque tinha o objetivo declarado de "desarmar o país, libertar seu povo e defender o mundo de graves perigos", depois de defender por meses que Hussein estava de posse de armas de destruição em massa, incluindo uma aparição do então secretário de Estado, Colin Powell, nas Nações Unidas para apresentar supostas provas desse programa.
A invasão, considerada um dos maiores erros do governo Bush, deixou centenas de milhares de iraquianos mortos e resultou no aumento do peso do Irão na região e no aumento da violência que levou ao surgimento de grupos como o Estado Islâmico, prejudicando o objetivo declarado de combater o terrorismo.
Apesar das imagens icónicas da demolição da estátua de Saddam Hussein em Bagdade em abril de 2003 e do discurso de Bush diante de uma faixa num porta-aviões com o 'slogan' "Missão cumprida", o conflito levou ao fortalecimento de grupos como a al-Qaeda e acabou por gerar a instalação do Estado Islâmico, que em 2014 lançou uma ofensiva que tomou o controlo de partes do Iraque e da Síria.
A guerra foi usada por grupos extremistas para unir os seus esforços contra os Estados Unidos, que tem sido uma importante ferramenta de recrutamento para o Estado Islâmico e outras milícias. Além disso, o facto de a invasão ter sido desencadeada fora do âmbito internacional serviu para desacreditar a postura moral de Washington e teve repercussão noutros conflitos, como é o caso da propaganda russa sobre a Ucrânia.
A guerra desencadeou um movimento de resistência que, embora não pudesse enfrentar o poderio militar dos Estados Unidos durante a primeira fase da ofensiva, levou a uma guerra de guerrilha com táticas terroristas que mergulharam o país numa violência sectária.
A polémica decisão dos Estados Unidos de dissolver o partido do regime, Baas, e as forças de segurança mergulhou o país num caos que permitiu o florescimento de grupos armados, muitos deles dependentes de atividades ilegais para financiar as suas atividades e que com o tempo aumentaram as tensões locais.
A violência em grande escala voltou a estourar em 2006, após um ataque a um mausoléu xiita na cidade de Samara, o norte de Bagdade, que levou a uma guerra civil e que deixou milhares de mortos, aprofundando a crise política e social.
Posteriormente, a ofensiva do Estado Islâmico, aproveitando a má preparação das forças de segurança e as tensões religiosas, bem como a guerra na Síria, permitiu aos 'jihadistas' declarar um "califado" que permaneceu no país até dezembro de 2017, quando Bagdade reivindicou a vitória após anos de uma ofensiva militar sangrenta e dispendiosa.
Desde então, o relativo aumento da estabilidade tem sido dificultado pela crise de legitimidade das instituições e pelas tensões existentes entre os diferentes grupos, o que se reflete no facto de, após as últimas eleições, realizadas em outubro de 2021, ter sido necessário cerca de um ano para formar o atual governo.
A queda do regime e o desmantelamento do domínio do Baas levaram ao fortalecimento dos partidos xiitas e dos grupos curdos através de um sistema tripartido de representação ao lado dos sunitas ao nível de primeiro-ministro, Presidente e presidente do parlamento, respetivamente, e abriu a porta à realização de várias eleições, embora o sistema tenha permanecido frágil e não tenha permitido a introdução de reformas que melhorassem a vida da população.
Nesse contexto, centenas de milhares de iraquianos protagonizaram uma onda de protestos em 2019 contra a corrupção e a escassez de serviços básicos, numa demonstração de frustração generalizada com a má gestão da classe política e a interferência do Irão.
A situação é ainda marcada pelo facto de cerca de metade da população iraquiana ter nascido após o início da invasão e enfrentar enormes dificuldades em encontrar emprego numa economia quase totalmente dependente do petróleo, que na última década significou mais de 99% das exportações e 85% dos orçamentos governamentais, de acordo com dados do Banco Mundial.
Em janeiro de 2021, a taxa de desemprego ultrapassou os 20%, afetando sobretudo os jovens, profundamente insatisfeitos com as elites políticas e económicas, percecionadas como amplamente corruptas, enquanto o sistema público continua pouco fiável devido à incapacidade de o reativar face a conflitos e instabilidade.
Teerão aproveitou a ascensão ao poder de vários partidos xiitas para aumentar a sua influência e usar Bagdade como plataforma, permitindo-lhe ligar-se por terra com a Síria e diretamente com o aliado no Líbano, o partido da milícia xiita Hezbollah.
Esse eixo de resistência tem protagonizado os conflitos no Médio Oriente desde 2011, em consonância com a Primavera Árabe, que também prejudicou a posição dos tradicionais aliados dos Estados Unidos na região, incluindo Israel e Arábia Saudita.
Apesar disso, algumas vozes ainda defendem a invasão de há 20 anos, argumentando que a situação seria pior se Saddam Hussein tivesse permanecido no poder, enquanto os Estados Unidos mantêm uma presença militar limitada - 2.500 soldados, bem abaixo dos 170.000 que mobilizaram em 2007 - ajudando a conter a ameaça do Irão.
O Iraque também conseguiu fortalecer as suas forças de segurança com o apoio dos Estados Unidos e, após o fim do "califado", espera estabilizar a situação económica por via de uma série de reformas que possam finalmente dar resposta às queixas da população por uma melhor qualidade de vida e direitos fundamentais, quase duas décadas após a eclosão da segunda guerra do golfo.
Leia Também: Ex-MNE sem arrependimentos 20 anos após invasão do Iraque