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Reforma de pensões em França considerada "ataque frontal ao bem-estar"

O filósofo e ensaísta francês Gilles Lipovetsky considera em entrevista à Lusa que os atuais protestos em França contra a reforma das pensões estão relacionados com um ideal de bem-estar e o desejo de viver o imediato.

Reforma de pensões em França considerada "ataque frontal ao bem-estar"
Notícias ao Minuto

16:12 - 29/03/23 por Lusa

Mundo França

"Existem vários fatores profundos, o ideal da boa vida, da secularização da cultura... Agora já não se vive pelo paraíso, ou pelo comunismo, pelo futuro, agora deve viver-se bem, e de imediato. Dizem que nos querem privar de alguns anos da nossa existência como se fosse um ataque frontal ao bem-estar", indicou o filósofo e ensaísta de 78 anos, que se deslocou a Lisboa para duas conferências.

"O ideal do bem-estar entrou em profundidade nos franceses talvez com maior intensidade que noutros países, não suportam o facto de terem de trabalhar mais dois anos, que vão ficar esgotados, que terão uma reforma mais curta e não tirarão proveito da sua existência", prosseguiu o ensaísta, que hoje profere uma conferência em torno do seu último livro "Le Sacre de l'autenticité (2021)", (A Sagração da Autenticidade) a convite da universidade Católica.

O académico insiste num "fenómeno particular" que abrange a sociedade francesa, com as sondagens a indicarem que cerca de 70 por cento da população contesta o aumento da idade da reforma dos 62 para os 64 anos, e os descontos para o Estado dos 40 para os 43 anos de trabalho para obter pensão completa.

"A França é um dos países do mundo onde se deixa de trabalhar mais cedo. É sem dúvida o país mais socialista do mundo", ironizou, antes de generalizar a sua abordagem ao atual estado das sociedades na perspetiva do primado da hipermodernidade, hiperindividualismo ou da "Era do vazio", conceitos que este antigo ativista no maio de 1968 que hoje se define como um liberal desenvolveu a partir da década de 1980.

"Quando digo que as sociedades estão caracterizadas pela fadiga democrática, é pelo facto de existir uma certa despolitização, mas relativa. Não significa que as pessoas não se interessem por política, mas interessam-se cada vez menos pelos partidos políticos, o que é diferente. Há novas formas de interesse pela política, como a convocação de manifestações de cidadãos pela internet. Mas que não passam normalmente pela via política numa democracia, e que eram os partidos", analisou.

Neste contexto, o filósofo deteta um aparente paradoxo, e quando a "hipermodernidade" e o "hiperindividualismo" impuseram a "regra do obedecer a ti próprio, à tua singularidade, enquanto pessoa particular, porque cada pessoa é particular, e em termos éticos estar de acordo consigo próprio, estar em correspondência com a sua própria verdade e não obedecer a uma verdade exterior".

Esse conceito é fundamental para entender a "antropologia da modernidade", considera.

"O homem moderno é essencialmente aquele que pensa que cada um deve ser o juiz de si próprio sem se associar ao que esperam os outros. Claro que nas atuais sociedades também existe conformismo, mas o ideal é ser-se si próprio", assinala.

Neste contexto, Gilles Lipovetsky alerta para o que define de "patologia do político", quando um fenómenos atuais mais conhecidos é o abstencionismo.

"Em todos os países ocidentais há um número considerável de pessoas que já não votam. Porque numa sociedade democrática dos cidadãos devem participar. Se não participam, é uma minoria que elabora as leis. As consequências são enormes, com os governos eleitos por uma minoria", alertou.

O académico regressa ao exemplo francês, que pode sugerir um paradoxo.

"Os jovens já não militam nos partidos como num passado recente, os sindicatos esvaziaram-se. Sobretudo em França, é provavelmente o país mais dessindicalizado. Agora assiste-se a um regresso com os protestos contra a lei das reformas mas os efetivos são muito fracos, há menos de 09% de assalariados que estão sindicalizados", nota.

"As pessoas possuem agora uma abordagem muito crítica", enfatiza. "Para além da despolitização, existe uma desconfiança, uma perde de confiança face todas as instituições, aos partidos políticos, aos governos, ao Estado, à justiça, aos 'media'.

Numa referência ao seu livro "A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo", publicado em 1983, assinala que existia então um desgosto social, mas havia um adversário. "Agora, nas manifestações em Paris queima-se a foto do Presidente e dizem 'Cortámos a cabeça ao rei Luis XVI, podemos fazer-te o mesmo'", numa referência a Emmanuel Macron.

Lipovetsky deteta um "ódio" face às elites e responsáveis políticos que alimenta o "populismo" na generalidade dos países ocidentais.

"Decerto que existem exações por parte do Estado, pelas forças policiais, mas existe um enorme aumento das ameaças de mortes anónimas, por carta, dirigida a deputados, senadores, presidentes de câmara, recebem uma carta com uma bala de pistola no interior", revelou.

"Este ódio, que alimenta o populismo, tem enormes efeitos. Nos EUA tentou mesmo ocupar-se o Capitólio, o ódio contra as elites políticas alimentado por [ex-presidente] Donald Trump conduziu a uma ameaça contra as instituições do mundo livre", sintetiza.

"A tradição do populismo é dizer que todas as elites estão podres, à exceção de nós. Quanto mais ódio existe contra as elites, mais se assiste a um aumento do populismo nas sondagens. Na Itália já chegaram ao Governo...", refere.

Apesar de alertar para a necessidade de evitar generalizações ou exageros, sustém que em todas as atuais sondagens em França, e quando os entrevistados são questionados se consideram a democracia o melhor regime, se deteta um declínio no respeito pelas instituições.

Um tema que irá desenvolver no debate que decorre na próxima quinta-feira na embaixada de França (Débat du Palais de Santos) sob o lema "As nossas sociedades desafiadas pela fadiga democrática?", juntamente com Assunção Cristas, professora de Direito e antiga presidente do CDS-PP.

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