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Intervenção russa não causou 'crise existencial' do direito internacional

A intervenção russa na Ucrânia não desencadeou uma 'crise existencial' do direito internacional, ao contrário do que alguns sustentam, segundo o jurista João Ribeiro-Bidaoui.

Intervenção russa não causou 'crise existencial' do direito internacional
Notícias ao Minuto

07:45 - 13/05/22 por Lusa

Mundo Ucrânia

"Cidadãos violam a lei todos os dias, e não é por isso que as regras deixam de existir ou são imediatamente questionadas. Aliás, Estados violam o direito internacional desde que são Estados. Quando muito, a civilidade e a perturbação que tais violações provocam poderão suscitar um aprofundamento das regras e dos mecanismos de controlo da anarquia entre Estados", declarou.

Por impossibilidade de estar presente, João Ribeiro-Bidaoui falava numa mensagem gravada para o colóquio intitulado "A guerra na Ucrânia, a independência e o direito internacional", uma iniciativa da Sociedade História da Independência de Portugal (SHIP) que decorreu quinta-feira em Lisboa.

"Mas veja-se a 'explosão' de direito internacional que ocorreu nos últimos 150 anos, e apesar de duas guerras mundiais", frisou, acrescentando: "É um facto, aliás bem comprovado na literatura académica, que há uma tendência de diminuição da quantidade e da intensidade dos conflitos internacionais - e talvez seja, aliás, essa uma das razões para o choque que provocou a intervenção russa [na Ucrânia], por contrariar essa tendência que vivíamos, não só na Europa, mas marcadamente na Europa".

Segundo o jurista e doutorado em Sociologia que trabalhou no Ministério da Justiça, nas Nações Unidas e na OCDE, "o mais recente exemplo de uma reação positivista do direito às suas violações é a iniciativa do Liechtenstein, um pequeno país que, sobretudo graças à credibilidade do seu diplomata, reconhecido e respeitado na ONU e em Nova Iorque há muitos anos, conseguiu construir uma coligação alargada que resultou numa nova regra internacional: sempre que um dos cinco Estados membros permanentes do Conselho de Segurança usar o direito de veto, a Assembleia-Geral da ONU é automaticamente convocada sem intermediações, sem decisões preliminares, para que esse Estado preste contas e explique o seu veto perante a assembleia onde se reúnem todos os países do mundo".

"É um exemplo de como o direito ficou menos 'soft', menos maleável, retirando espaço à política, avançando num terreno até então ocupado pelo realismo político do Conselho de Segurança [da ONU]", observou.

"Fica agora mais caro politicamente a qualquer Estado usar o direito de veto - graças a uma norma, a uma mera resolução da Assembleia-Geral, graças ao Liechtenstein, a segurança internacional tornou-se mais plural e menos dependente de apetites hegemónicos", referiu.

Embora acrescentando que "é um pequeno passo" e que "os mais céticos dirão que não muda nada", o jurista considerou: "É um passo fundamental e vamos ter que esperar pelo seu primeiro teste".

"Mas, coincidência ou não, dias depois, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade, pela primeira vez, uma resolução sobre a guerra na Ucrânia, quase dois meses depois de o conflito se ter iniciado", apontou.

Em seguida, destacou que "o direito internacional tem também uma importante dimensão político-cultural".

"Tem aquilo que na expressão inglesa, de que gosto mais, se chama 'ripple effect', um efeito em cadeia, em cascata, e esse efeito chega também ao nível doméstico, à política doméstica. A construção destas novas normas, em sentido lato, ao nível internacional, e a sua propagação pelos 'media', pelas redes sociais, pelas redes académicas, induz e alimenta pluralidade a nível regional, a nível nacional e a nível local, porque há sempre alguém que diz 'não' ou pelo menos que se questiona, numa qualquer rua de Chicago, de Xangai, de Estocolmo ou de Luanda", defendeu.

"Resultados mais concretos destes efeitos podem, é certo, demorar décadas, mas estas ondas domésticas, por sua vez e no imediato, condicionam o respetivo poder político, que tenderá a acomodar essa pressão, o que se traduzirá numa alteração de comportamento do Estado a nível internacional, no palco da construção do direito internacional", prosseguiu.

Na sua opinião, "é isso que explica o facto de alguns países suspeitos terem votado contra a Rússia na Assembleia-Geral, porque a onda foi muito forte, e os interesses mais tradicionais nalguns desses Estados não suportaram a pressão, porque o dique poderia rebentar se tivessem resistido, insistido".

"Isso significa que o direito ficou mais forte para a próxima ofensiva de um agressor, de um agressor cheio de si, mais ou menos propenso a hegemonias, seja a China no estreito de Taiwan, sejam os Estados Unidos no Indo-Pacífico, seja qualquer ditador africano com apetites expansionistas", comentou.

Por outro lado, quis "sublinhar que existem outras dimensões e níveis do direito internacional que estão a funcionar a todo o vapor".

"Por exemplo, toda a atuação humanitária em curso, gerindo milhares de funcionários internacionais e administrando milhares de milhões de euros, é feita com base no direito internacional vigente, com base na Carta das Nações Unidas e numa miríade de acordos internacionais assinados por todos os grandes Estados do mundo, incluindo a Rússia e a China", referiu.

"Isto, sem falar na força que o direito tem demonstrado ao alimentar o ativismo e a preocupação em documentar eventuais crimes de guerra: é uma mobilização sem paralelo, de organizações não-governamentais, mas também de equipas de peritagem de vários países e também do Tribunal Penal Internacional (TPI) no terreno, a recolher provas, a ouvir e a gravar testemunhos, com sentido crítico e com cuidado; é um movimento de dimensões inéditas, mas que já tinha dado um ar de si no conflito da Síria e que alimenta a esperança de a Justiça vir a ser feita, um dia", observou.

"Tudo isto é, apesar de tudo, novo. É uma nova realidade, são novos espaços de conquista à anarquia por parte do direito", insistiu.

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