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Nicarágua: De revolucionário a ditador, como Ortega acabou com democracia

 O Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, será reeleito no domingo para o seu quinto mandato, o quarto consecutivo desde que regressou ao poder em 2007, altura em que começou a construir uma tirania como aquela que ele mesmo ajudou a derrubar em 1979.

Nicarágua: De revolucionário a ditador, como Ortega acabou com democracia
Notícias ao Minuto

08:15 - 06/11/21 por Lusa

Mundo Eleições

Organizações não governamentais têm denunciado que Daniel Ortega, a cinco dias de completar 76 anos, tornou-se uma versão nicaraguense de "o Estado sou eu": altera a Constituição, cria um sistema político de partido único e mantém o controlo absoluto, através da repressão a opositores, a jornalistas e à sociedade civil em geral.

"Não podemos protestar nem podemos dar entrevistas. Alguns ativistas foram presos por darem entrevistas como esta. Tenho medo, claro, mas mesmo assim eu falo. Se eu me calar, sei que morrerei de vergonha. Não estou a dramatizar. É uma possibilidade real ser presa", descreve em entrevista à Lusa a socióloga, reconhecida defensora dos Direitos Humanos e ativista feminista, María Teresa Blandón.

Blandón é um caso raro de coragem. Outros dez entrevistados contactados pela Lusa, entre analistas políticos, jornalistas, ex-guerrilheiros e historiadores, só aceitaram conversar sem que os seus nomes fossem revelados por temor a serem presos. Mesmo os que estão exilados, temem represálias contra os seus parentes que ficaram na Nicarágua.

"A democracia não está em risco porque já deixou de existir plenamente desde o final de 2020. Quatro leis aprovadas durante o segundo semestre de 2020 foram configuradas para eliminar a participação política e a liberdade de expressão. As pessoas evitam manifestações públicas, inclusive dar opiniões em privado. O medo estende-se a todos os parentes dos presos", conta Manuel Orozco, diretor do Diálogo Interamericano e representante da América Central e Caraíbas no Instituto do Serviço Exterior dos Estados Unidos.

"Esse ordenamento jurídico carece de tipificação de delitos, deixando aberta a interpretação do Governo para a acusação. Assim, foram presas mais de 100 pessoas sob falsas acusações e em violação dos direitos constitucionais. A crise política generalizou uma saída maciça de nicaraguenses. Desde 2018, saíram mais de 200 mil pessoas, sendo mais de 80 mil desde maio passado quando foram presos líderes políticos e pré-candidatos à Presidência", acrescenta Orozco, também investigador das Universidades de Georgetown e de Harvard.

Desde 1984, Daniel Ortega é o único candidato presidencial da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que, através da luta armada, derrubou Anastasio Somoza em 1979, pondo fim a 42 anos de ditadura.

Nove comandantes revolucionários passaram a governar o país através de uma Direção Nacional. Daniel Ortega era um deles e coordenador do comando. Por isso, foi escolhido candidato presidencial quando os guerrilheiros decidiram convocar eleições.

Desde o fim da ditadura, o país vivia uma guerra civil entre os sandinistas e os "contra", rebeldes financiados pelos Estados Unidos. Era preciso legitimar o Governo revolucionário através do pleito eleitoral, vencido por Daniel Ortega.

A guerra, no entanto, não cedia. Grande parte do país tinha sido destruído. Em 1990, Ortega tinha a certeza de uma nova vitória nas urnas, mas para surpresa geral, a vitória de Violeta Barrios de Chamorro punha fim à revolução.

Ortega quis regressar ao poder através de três tentativas fracassadas (1990, 1996 e 2001), mesmo que, a cada nova derrota, o partido se dividisse.

"Ortega não contava com a hipótese de perder as eleições em 1990. Nesse período, ele entendeu que, uma vez no poder, não se pode mais deixar o poder", aponta Blandón.

Em 1998, a Frente Sandinista não tinha votos suficientes para ganhar as eleições, mas o Presidente liberal Arnoldo Alemán encontrava-se repleto de escândalos de corrupção. Ortega e Alemán fizeram um pacto de impunidade e dividiram o poder entre os dois. Ortega passou a controlar metade dos poderes. O acerto incluiu diminuir a 35% o limiar de votos necessários para ser eleito em primeira volta. Era o volume de votos que Ortega podia obter.

Em 2005, o popular sandinista Herty Lewites decide concorrer nas primárias contra Ortega, seu amigo. Também concorreria Víctor Tinoco, atualmente preso político do regime de Ortega.

Perante a possibilidade de uma derrota interna, a convenção sandinista dominada por Ortega elimina, para sempre, as eleições primárias e expulsa do partido os concorrentes. Lewites torna-se candidato para as eleições de 2006 pelo Movimento Renovador Sandinista, que reúne dissidentes de Ortega.

Daniel Ortega tinha 23% de intenções de voto; Lewites, 15% e, ainda por cima, os liberais estavam divididos: Eduardo Montealegre, 17%; José Rizo, 11%.

As eleições caminhavam para a segunda volta, quando, repentinamente, Lewites morreu de enfarte pouco depois de uma cirurgia de rotina. Não houve autópsia.

Ortega abandonou o discurso de barricada, abraçou o pragmatismo, o catolicismo com a penalização do aborto terapêutico, o FMI e os mercados.

Ortega ganhou aquelas eleições com apenas 38,07% dos votos, retornou ao poder em 2007 e começou a construir um poder hegemónico.

A Constituição proibia a reeleição consecutiva em 2011 e estabelecia que não se podia ser eleito mais de duas vezes. Em 2009, um tribunal constitucional da Corte Suprema, integrado somente com juízes sandinistas, entendeu que a regra violava o direito humano de Ortega a reeleger-se.

Em 2013, já com um Conselho Supremo Eleitoral totalmente integrado por juízes sandinistas e com uma Assembleia Nacional (Parlamento) dominada por deputados do Governo (62 dos 90 deputados), a Constituição foi reformada, incorporando a reeleição indefinida. Atualmente, Ortega tem 70 dos 90 deputados.

"Aos poucos, o ex-guerrilheiro construiu uma ditadura parecida com aquela que ele ajudou a derrubar em 1979. A ditadura de Somoza reprimiu um movimento guerrilheiro armado. A de Ortega massacra um movimento de jovens completamente desarmado", compara María Teresa Blandón, em referência à repressão iniciada a partir de abril de 2018, quando entrou em ação o estado terrorista repressor, treinado em Cuba e com os métodos da Venezuela.

Daniel Ortega faz valer o ensinamento de Tomás Borge, antigo comandante da revolução e fundador da Frente Sandinista, que, em 2011, num discurso público, revelou um ensinamento que transferiu ao seu 'discípulo': "Aqui, tudo pode acontecer, menos que a Frente Sandinista perca o poder. Eu dizia a Daniel Ortega: podemos pagar qualquer custo, digam o que disserem, a única coisa que não podemos perder é o poder. Façamos o que tivermos de fazer. O preço mais elevado seria perder o poder".

Leia Também: Ortega afasta oposição e prepara 5.º mandato como Presidente da Nicarágua

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