Entrega do Nobel da Paz é "alimentar" propaganda de Adis Abeba
A entrega do Prémio Nobel da Paz ao primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, prevista para 10 de dezembro, é "alimentar" a propaganda do Governo da Etiópia e retira "credibilidade" ao Comité do Nobel, afirmaram hoje dois investigadores universitários portugueses.
© Reuters
Mundo Etiópia
"Era de perguntar claramente à Comissão do Nobel até que ponto é que faz algum sentido alimentar um jogo de propaganda etíope", sugeriu Manuel João Ramos, professor no departamento de Antropologia do ISCTE -- Instituto Universitário de Lisboa, que há muitos anos estuda a Etiópia.
O investigador falava na "Lisbon Talk - Guerra na Etiópia: implicações regionais e globais", um evento 'online' organizado pelo Clube de Lisboa, em colaboração com o Instituto Marquês de Valle Flor e a Câmara Municipal de Lisboa.
"Provavelmente este vai ser o último Prémio Nobel da Paz, porque esta instituição não tem credibilidade nenhuma", considerou, pelo seu lado, Ana Elisa Cascão, investigadora associada do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, coordenadora de programas na Transboundary Water Management Unit -- Stockholm International Water Institute (SIWI) e especialista na região do Nilo e do Corno de África, que falou a partir do Uganda.
O Comité do Nobel, instituição norueguesa que atribuiu o Prémio Nobel da Paz ao primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, em 2019, anunciou no início da semana passada que está a acompanhar de perto os desenvolvimentos na Etiópia e está "profundamente preocupado" com o conflito na região do Tigray, iniciado em 04 de novembro pelo Exército federal do país, sob o pretexto de ter sido atacado pelas forças daquela região autónoma.
"Repetimos hoje o que dissemos anteriormente, nomeadamente que todas as partes envolvidas partilham a responsabilidade de parar a escalada de violência e de ajudar a resolver disputas e conflitos por meios pacíficos", afirmou Olav Njølstad, secretário do Comité, no dia 16.
"Continuar a afirmar que Abiy Ahmed merece o Prémio Nobel [da Paz] é continuar a afirmar a legitimidade de uma propaganda governamental etíope na definição daquilo que é um quadro de guerra, interpretado como reposição de lei e ordem e, portanto, como um assunto interno", considerou Manuel João Ramos.
Por outro lado, reforçou o investigador do ISCTE, o assunto "não é necessariamente interno". "Quando uma parte dos ataques é feita a partir da Eritreia (...), o assunto já não é um assunto interno da Etiópia", frisou.
O primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, lançou em 04 de novembro - no dia seguinte às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América, como foi assinalado pelos especialistas portugueses - uma operação militar na região de Tigray, após meses de tensão crescente com as autoridades regionais da Frente Popular de Libertação do Tigray (TPLF, na sigla em inglês).
A operação terá sido em resposta a um alegado ataque a uma base militar do Exército federal pelas forças da região autónoma etíope.
As autoridades do Tigray terão alegadamente disparado no dia 13 vários 'rockets' contra a capital da Eritreia, Asmara, que acusam de estar a ajudar o Exército federal etíope na ofensiva, uma escalada que poderá agravar e internacionalizar o conflito.
Manuel João Ramos considerou também como "paradoxal" que Abiy Ahmed, agraciado em 2019 com o Nobel da Paz mas ele próprio detentor de um doutoramento em Mediação de Paz, esteja "fazer a guerra e a recusar toda a mediação".
"Este prémio é capaz de ter sido o mais desenquadrado de toda a história dos Prémios Nobel da Paz. Dar o prémio a um militar [ex-líder dos serviços secretos da Etiópia] é um bocadinho estranho", salientou o professor do ISCTE.
A operação militar já causou centenas de mortos e pelo menos 40 mil pessoas fugiram para o vizinho Sudão.
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