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Beirute: Traumas psicológicos alastram e reforçam feridas de guerra

As explosões da semana passada no porto de Beirute deixaram mais de 170 mortos e 6.000 feridos, mas os traumas psicológicos espalham-se por toda a cidade, onde a vida continua, mas nunca mais será a mesma.

Beirute: Traumas psicológicos alastram e reforçam feridas de guerra
Notícias ao Minuto

11:33 - 12/08/20 por Lusa

Mundo Beirute

Quando a grande explosão atingiu Beirute na semana passada, partiu as portas de vidro perto de onde Abed Itani, de 3 anos, estava a brincar com os seus blocos de Lego. O menino sofreu ferimentos na cabeça e cortes nos braços e nos pés e foi levado para as emergências do hospital, onde se sentou ao lado de outras pessoas a sangrar.

Desde então, Abed não voltou a ser o mesmo menino. Como milhares de outras pessoas no Líbano, luta agora contra o trauma.

"Quando cheguei ao hospital, encontrei-o sentado num canto da sala de urgências, a tremer, enquanto olhava para pessoas gravemente feridas que estavam ao seu lado e para o sangue a escorrer por todo o chão", contou a sua mãe, Hiba Achi, que estava no trabalho quando a explosão aconteceu, em 04 de agosto, e o tinha deixado ao cuidado da sua avó.

"Ele agora odeia a cor vermelha. Recusa-se a usar os seus sapatos vermelhos", disse Achi, acrescentando que Abed insiste para que a mãe lave os sapatos.

A enorme explosão de quase 3.000 toneladas de nitrato de amónio, no porto de Beirute, matou mais de 170 pessoas, feriu cerca de 6.000 outras e causou danos generalizados.

A agência da ONU dedicada às crianças, a UNICEF, afirmou que três dos mortos eram crianças e pelo menos 31 ficaram gravemente feridas e tiveram de ter tratamento hospitalar.

De acordo com a organização Save the Children, até 100.000 crianças ficaram sem casa e muitas delas estão traumatizadas.

"Agora, qualquer barulho o faz saltar e deixou de comer bem", referiu Achi, lembrando que o filho era um menino feliz e muito sociável.

"Agora, não fala com ninguém", lamentou.

Joy Abi Habib, especialista em saúde mental da Save The Children, diz que as crianças traumatizadas podem reagir de maneiras diferentes.

"Dores de cabeça, náuseas, fazer xixi na cama e problemas digestivos são sintomas físicos a que os pais devem estar atentos", descreveu a especialista, acrescentado que as crianças tendem a tornar-se mais carentes e a ficar extremamente tensas".

As filhas de Zeinab Ghazale, Yasmine, de 8 anos, e Talia, de 11, recusam-se a dormir sozinhas no seu quarto desde a explosão, que partiu os vidros das janelas do apartamento e fez voar pedaços de vidro por todo o quarto.

"Miraculosamente, sobrevivemos", afirmou Ghazale, que teve de mudar as suas filhas de casa durante uns dias até as janelas serem reparadas.

"A minha filha Yasmine continua, no entanto, a perguntar porque é que não pode ter uma infância normal, porque é que tem de passar por tudo isto aos oito anos", afirma.

A psicóloga Maha Ghazale, que partilha o apelido, mas não é da mesma família, tem tratado muitas crianças desde a explosão. Segundo explicou, muitas delas sentem uma sensação de insegurança "e perguntam muitas vezes se aquilo vai voltar a acontecer".

"Muitas crianças recusam-se a voltar para casa ou a ficar perto de janelas e portas de vidro", acrescentou a psicóloga.

Segundo Ghazale, deixar as crianças processarem o trauma é fundamental. "Temos de as deixar ficarem zangadas, mas também encorajá-las a contar ou a desenhar o que passaram nesse dia", defende.

Além disso, o trauma pode voltar a ser vivido se as crianças forem expostas às notícias e a conversas de adultos sobre os acontecimentos, disse, aconselhando a que se tente manter os mais pequenos afastados e a procurar ajuda.

"As crianças são resilientes, mas traumas que não são processados podem levar a um aumento de ansiedade e problemas comportamentais e podem passar a fazer parte das suas vidas e provocar mecanismos negativos de cópia", explicou, sublinhando que é preciso restaurar o sentimento de segurança, de normalidade e de rotina.

Hiba Achi admite que decidiu deixar o Líbano, com o seu filho, e juntar-se ao marido, que trabalha no Dubai. Uma decisão partilhada, aliás, por muitas pessoas.

"Este local já não é seguro para o Abed, nunca foi e nunca vai ser", disse.

A sua "culpa" é partilhada por muitos pais, sobretudo por aqueles que viveram a guerra civil do Líbano entre 1975 e 1990 e que sentem ter falhado perante os seus filhos.

"A nossa geração ficou traumatizada para sempre", disse Achkar, mãe de dois filhos, referindo-se àqueles que cresceram no Líbano durante a guerra, reconhecendo que não compreende porque é que os filhos também têm de passar por este tipo de trauma.

Não são só as crianças que estão a reagir com medo, zanga e sinais de trauma em Beirute.

Num Líbano afetado por dezenas de atentados e guerras -- a última das quais em 2006 -- a explosão de 4 de agosto devastou a cidade e revelou a muitos as feridas que ficaram do passado.

Foi o caso de Carla, que viu a varanda da sua casa, no muito afetado bairro de Geitaoui, desaparecer, depois de um grande estrondo.

"Achei que fosse um ataque aéreo. Associei o barulho ao que me lembrava de ouvir na guerra de 2006", disse a mulher, lembrando que correu imediatamente para a escada, onde uma vizinha, uma senhora já idosa, lhe abriu calmamente a porta para a deixar entrar.

"É um reflexo que ficou da guerra. Quando algo explode, nós fugimos", explicou uma publicitária, de 28 anos, que ainda não teve forças para voltar ao seu apartamento depois das explosões. A viver agora com os seus pais, ainda não conseguiu voltar a dormir.

"Qualquer carro a passar na rua me parece o barulho de um avião e tudo funciona como um gatilho (de memórias) de 2006. Nunca me tinha apercebido o quanto a guerra me tinha marcado e traumatizado", explicou.

No devastado bairro de Karantina, onde as varandas têm uma vista impressionante das ruínas do porto, as equipas da organização Médicos Sem Fronteiras vão de porta em porta para dar apoio psicológico.

"Não nos podemos esquecer que isto aconteceu numa altura em que o Líbano já vivia pressões psicológicas", lembrou Rima Makki, responsável da unidade de saúde mental da organização, evocando o colapso económico do país e a pandemia da covid-19.

"Um incidente traumático desta magnitude terá, obviamente, repercussões", garantiu a especialista.

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