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Da fuga falhada, à prisão, à vida novinha em folha na Alemanha Ocidental

Cresceu na Alemanha de leste e cedo reclamou liberdade. Tentou a fuga, passou quase um ano preso, mas acabou por conseguir começar uma vida nova do outro lado do muro. Agora agradece a antigos membros da Stasi tudo o que conseguiu conquistar.

Da fuga falhada, à prisão, à vida novinha em folha na Alemanha Ocidental
Notícias ao Minuto

09:20 - 02/11/19 por Lusa

Mundo Muro de Berlim

"Tive uma infância feliz", começa por contar Peter Keup à agência Lusa, repetindo uma história, a sua, que leva a escolas de todo o país, mas também fora da Alemanha.

"Cresci a ouvir os meus pais dizerem que os meus avós viviam noutro país e, por alguma razão, não podíamos estar juntos. Depois, quando entrei na escola, apercebi-me que estava a crescer num regime comunista porque todos os dias ouvíamos propaganda. Aprendíamos que o comunismo era a melhor coisa do mundo", explica, a dias do 30.º aniversário da queda do muro de Berlim.

O pai decidiu ir atrás da ideologia e mudar-se para a República Democrática Alemã (RDA) em 1956. A mãe seguiu-o para Dresden. Quando ficou impedida de voltar à terra natal, as discussões começaram.

"A minha mãe queria sair do lado oriental. Primeiro discutiram a possibilidade de conseguir passaportes falsos e atravessar a fronteira escondidos em carros. Depois, quando eu tinha uns 16 anos, decidiram pedir um visto para sair permanentemente, quando isso passou a ser possível. A minha mãe queria tentar uma forma legal e que não fosse perigosa", revela Peter Keup, que tinha dois irmãos.

Se para a mãe viver na RDA "era uma prisão", para o irmão a ideia de abandonar estava fora de questão.

"Um dia, quando cheguei à escola, a diretora exigiu ver-me. Chamou-me 'traidor' e 'falso' por querer sair do país. Expulsou-me e eu não soube como reagir, era um adolescente. A solução que ela me deu foi que eu declarasse não querer sair da RDA para que o regime me pudesse entregar a outra família que me educasse. Escolhi a minha família. Acho que para um rapaz com 16 anos isto era demasiado", lamenta.

Os colegas deixaram de lhe falar, foi obrigado a procurar trabalho como datilógrafo, algo "nada apropriado para essa idade".

Pediram autorização para sair em 1975, mas "foi sempre negada". A ideia de fugir começou a surgir quando tinha 22 anos, foi "um processo".

"Não era fácil. Onde estávamos nem sequer conseguíamos ver a fronteira, e atravessar o muro de Berlim era complicadíssimo. O que fiz primeiro foi contar à minha mãe. Inicialmente reagiu mal, depois entendeu que não me conseguia fazer mudar de ideias", recorda. "Acabou por me ajudar".

"Tentei viajar de comboio de Dresden até Bratislava para depois conseguir seguir para a Hungria. A Checoslováquia era o único país para onde se podia viajar sem se precisar de uma autorização especial. Mas quando o revisor chegou, pediu-me também o bilhete de regresso. Era a primeira vez que isso me acontecia. Eu não tinha bilhete de regresso", lembra Peter Keup fazendo uma pausa.

"Chamou a polícia que me perguntou o que é que eu ia fazer à Checoslováquia. Respondi que ia estar com amigos, mas pediram-me moradas e nomes e acabaram por perceber que as minhas intenções deviam ser outras", continua.

A polícia militar mandou sair todos os outros passageiros dessa carruagem. Fecharam as janelas e mandaram-no despir-se. Encontraram alguns marcos ocidentais que levava escondidos num forro e culparam-no imediatamente por estar na posse desse dinheiro ilegal. Mas era só o início.

"Levaram-me para uma sala escura, tinha duas lâmpadas apontadas para a minha cara de forma a não ver quem estava à minha frente. E depois repetiram até à exaustão a pergunta: 'Quer abandonar o nosso país ilegalmente?' Eu respondi que não", sustenta.

Mas o cansaço e a falta de água acabaram por fazê-lo ceder. "Sim, queria fugir da RDA", acabou por admitir.

"Levaram-me três meses para uma prisão da Stasi (polícia secreta e serviço de inteligência da RDA) em Dresden, estava no isolamento, não tinha qualquer contacto com os outros prisioneiros. Foi um autêntico pesadelo, nem sequer sabia onde estava, foi insuportável", revela Keup.

Seguiram-se dez meses numa prisão em Cottbus, onde o espaço era reduzido, mas onde acabaria por conhecer o melhor amigo.

"Todos os dias tínhamos uma hora para caminhar num pátio e respirar um pouco de ar puro. Eu tinha 23 anos nessa altura. Outro rapaz, com 21, que também tinha sido preso por fugir, veio ter comigo e disse-me que eu tinha de começar a olhar para o céu, a falar com as outras pessoas porque eu estava bastante deprimido. Ele tinha sempre um sorriso e foi como uma espécie de bênção para mim", partilha, comentando, entre risos, que o amigo é atualmente o seu dentista.

"Na prisão perguntaram-me se eu queria voltar para a RDA. Teria de pedir desculpa e implorar. Disse que não queria, passei a ser um 'cidadão sem cidadania'. Passados uns dias fui encaminhado para um autocarro com outros prisioneiros na mesma situação. Um homem entrou, apresentou-se como sendo Wolfgang Vogel (um advogado que fazia a ponte entre os dois lados), estava ali para comprar-nos", explica Keup.

Foi conduzido para a Alemanha ocidental, uma sensação "inacreditável".

"Na primeira noite tivemos logo jornais, fruta, tudo era novidade para mim. Depois de quatro dias conseguimos o passaporte e fomos considerados cidadãos da Alemanha ocidental. Deram-nos 100 marcos e dois fatos novos em folha. Liguei aos meus avós e pude viver uns tempos com eles em Essen e recomeçar a minha vida", comenta.

Estudou economia, dança, deu aulas e abriu uma escola. Em 2012 descobriu que o irmão tinha pertencido à Stasi.

Nesse momento, decidiu recomeçar tudo.

Foi estudar história, tirou o mestrado e vai começar agora o doutoramento para perceber como é que as novas gerações constroem a imagem da Alemanha pós queda do muro de Berlim.

Além de visitas a escolas, Peter Keup guia grupos pela prisão de Hohenschönhausen e pelo muro de Berlim para que todos possam conhecer a sua história.

"Só consegui estudar estas áreas graças ao meu passado na RDA. Por isso, quando encontro antigos membros da Stasi vou sempre agradecer-lhes a oportunidade que tive", remata.

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