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Cientistas acusam ONG de condicionar avaliação de programa de saúde

Duas cientistas acusam organizações não-governamentais (ONG) britânicas de saúde reprodutiva de condicionarem e interferirem nos resultados da avaliação de um programa para reduzir mortes por gravidez indesejada em 14 países africanos e asiáticos por motivos políticos.

Cientistas acusam ONG de condicionar avaliação de programa de saúde
Notícias ao Minuto

11:02 - 30/03/19 por Lusa

Mundo Cientistas

O artigo, publicado na semana passada no jornal The Lancet, é assinado por Katerini Storeng, do Centro para o Desenvolvimento e Ambiente da Universidade de Oslo, e Jennifer Palmer, do Centro para a Saúde em Crises Humanitárias do Colégio de Higiene e Medicina Tropical de Londres (LSHTM, na sigla inglesa), que lamentam a "censura" de que dizem ter sido alvo.

"Censura é uma palavra forte. Mas que outra palavra devemos usar quando um financiador que encomenda uma avaliação a um dos seus principais programas globais de saúde ordena aos investigadores que omitam resultados importantes do seu relatório final? Ou os pressiona para alterar o conteúdo das suas conclusões? Ou quando um membro de uma entidade parceira que está a ser avaliada ameaça a reputação dos investigadores e das universidades a que pertencem se publicarem conclusões negativas?", questionam.

Em causa está um programa financiado pelo Departamento britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID), com um orçamento superior a 140 milhões de libras (164 milhões de euros), destinado a reduzir o número de mortes devido a gravidezes indesejadas em 14 países de África e da Ásia.

O programa era implementado no terreno por duas ONG de saúde reprodutiva -- Marie Stopes International (MSI) e Ipas -- que foram consideradas pelo DFID - a entidade que encomendou a avaliação - como "parceiras".

O seu envolvimento na avaliação seria, por isso, desejável, "desde que a objetividade do estudo não fosse comprometida", escrevem as cientistas num artigo intitulado "Quando a ética e a política colidem em estudos sobre saúde financiados por doadores".

A MSI e a Ipas puderam assim comentar o protocolo de investigação, mediar o acesso a informadores e a documentos e aceder, em primeira mão, aos resultados do estudo para verificar os factos ('fact-checking').

"O DFID e as ONG consideraram que isto era importante devido aos 'riscos' que os resultados poderiam ter para o programa em países socialmente conservadores", referem.

Na prática, garantem, os colaboradores das ONG usaram este envolvimento para "obstruir" a investigação, inclusivamente no fim do contrato quando as autoras quiseram "disseminar os resultados relativos às políticas" junto da academia.

Segundo relatam, além de pedirem alterações "no tom e conteúdo, exigiram o anonimato das organizações e, idealmente, dos países-alvo, alegando que os resultados podiam ser usados 'como arma' pelos opositores políticos".

Noutros casos, as ONG declararam que não queriam ser nomeadas porque discordavam das "posições e conclusões", das duas especialistas.

O diferendo deu origem a uma investigação da comissão de ética do próprio LSHTM, que tinha aprovado o protocolo de investigação.

Enquanto durou, as cientistas foram obrigadas a suspender as suas publicações e cancelar apresentações já agendadas em conferências. Três elementos das ONG retiraram, posteriormente, a autorização para usar os seus contributos específicos na avaliação.

A universidade acabou por concluir que os princípios éticos foram cumpridos, mas impôs o anonimato das ONG. As investigadoras alegam, no entanto, que tinham introduzido esta cláusula no seu protocolo para permitir que as pessoas discutissem "assuntos sensíveis", mas a proteção acabou por ser estendida "a estas poderosas organizações".

"Sentimos que as ONG tinham usado o quadro de pesquisa ética para censurar o nosso trabalho", destacam.

Apesar de terem recorrido da decisão, defendendo "a transparência sobre a identidade dos beneficiários de fundos públicos e das suas práticas programáticas", e solicitado ao DFID que "protegesse" a sua independência, as investigadoras não conseguiram publicar muitos dos resultados.

A Agência Lusa questionou Katerini Storeng sobre o tipo de preocupações que foram censuradas, mas a professora norueguesa preferiu não entrar em detalhes.

"Os detalhes sobre as preocupações das ONG são acessórios para a questão central, que foi a maneira como as ONG interferiram na nossa investigação e fizeram acusações falsas e não fundamentadas sobre as nossas práticas e a falta de apoio institucional do financiador [DFID]", declarou, numa resposta escrita.

A Marie Stopes International contesta as queixas. Um porta-voz da ONG disse à Lusa ter ficado "surpreendido e desiludido" com as alegações, sublinhando que "esta não é a interpretação correta dos acontecimentos".

Segundo a mesma fonte, a MSI apoia avaliações independentes ao seu trabalho e "raramente questiona investigações independentes" pelo que as decisões que tomou foram ponderadas: "É verdade que manifestámos alguma preocupação sobre determinados aspetos da abordagem das investigadores e percebemos que tenham ficado descontentes quando levantámos estas questões junto da comissão de ética da LSHTM. Mas defendemos o que fizemos porque era a decisão certa".

A Ipas não respondeu em tempo útil.

Katerini Storeng e Jennifer Palmer afirmam que o relatório final da avaliação, publicado quase 18 meses depois de ser entregue, "continha apenas um resumo condensado dos resultados da investigação em termos de políticas".

Indicam ainda que, "em parte, devido ao ambiente intimidatório", outros estudiosos hesitaram publicar as suas análises sobre a eficácia do programa, deixando "um conjunto substancial de conhecimento gerado por mais de 20 académicos, ao longo de mais de cinco anos, indisponível ao público".

As cientistas sublinham que, embora este seja apenas um caso, encontram "dinâmicas similares" envolvendo outros financiadores, públicos ou privados, e investigadores a quem são pedidas avaliações ou outros estudos sobre saúde global.

Falam em avaliações "de cruzinha" para agradar a patrocinadores, relatórios que são "metidos na gaveta" ou "embargados", negociações quanto aos resultados que serão publicados ou tentativas de descrédito dos investigadores.

Embora algumas destas experiências se tenham tornado públicas, a "maioria continua desconhecida, o que mostra quão difícil é confrontar fortes interesses institucionais", declaram as cientistas, assumindo que, ao expor o caso, arriscam "financiamentos futuros, progressão na carreira e cooptação pela agenda anti-ajuda".

Sugerem, por isso, que devem ser adotadas "alterações sociais e culturais" significativas para confrontar o "cartel do sucesso" na saúde global, evitar a manipulação e salvaguardar a independência dos investigadores, tendo em conta a crescente dependência de bolsas subsidiadas por doadores e o subfinanciamento crónico das universidades.

"O objetivo do nosso artigo era contribuir para um debate construtivo sobre as mudanças necessárias para resolver o tipo de problemas que enfrentámos, que parecem ser bastante comuns no campo da saúde global e não só", concluiu Katerini Storeng na resposta enviada à Lusa.

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