Estudo alerta sobre a continuidade do crioulo português do Sri Lanka
A investigação do linguista Hugo Cardoso sobre a língua das comunidades burgher portuguesas do Sri Lanka conclui que o crioulo com origem na presença portuguesa do século XVII é o mesmo, mas a transmissão pode estar ameaçada.
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Mundo Hugo Cardoso
"Observamos, em traços gerais, que a língua é a mesma, sobreviveu ao processo da guerra civil (1983-2009) e ao tsunami (2001) que atingiu a comunidade de forma muito dramática, mas a transmissão está seriamente comprometida. Ainda existem bastantes falantes, ainda existem jovens e crianças que conseguem falar, mas há uma série de desafios para a manutenção da língua", disse à Lusa Hugo Cardoso, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Identificam-se como burghers - palavra que significa "cidadãos" em holandês - e o termo passou a designar-se para todas as pessoas que tivessem uma ascendência euro-asiática incluindo os portugueses e também os holandeses.
Apesar das divisões entre as duas comunidades, até ao século XX os burghers holandeses também falavam o crioulo português, mas perderam-no e começaram a falar inglês e as outras línguas do Sri Lanka.
Os burghers holandeses com a independência do Ceilão (1948) abandonaram o país e estão agora disseminados por todo o mundo.
A recente pesquisa junto das comunidades burgher portuguesas na Costa Leste do Sri Lanka e que conseguiu detetar "alguns milhares" de falantes de crioulo português, estabelece comparações com as últimas investigações realizadas há mais de quarenta anos pelo investigador norte-americano David Jackson.
"Ao voltarmos à comunidade depois deste interregno de várias décadas queríamos saber qual era a situação da língua, nomeadamente ao nível sócio linguístico: se há transmissão, se é usada no quotidiano e, por outro lado, queríamos saber se aquilo que tinha sido escrito nos anos 1970 sobre as características gramaticais - que tinham sido encontradas nessa altura - ainda eram as mesmas", explica Hugo Cardoso acrescentando um dos principais desafios é manter os aspetos relacionados com a transmissão.
"A língua está comprometida porque não tem espaço fora da comunidade e do contexto familiar. As crianças falam muito bem até aos cinco anos, mas depois de irem para a escola o processo é diferente porque tem de aprender tâmil, inglês ou cingalês e deixam de falar o português", refere o investigador sublinhando que a continuidade da língua incide sobre os mais jovens.
"Os professores não gostam que eles falem esta língua nas aulas porque não é a língua de instrução e por causa disso muitas famílias consideram que é uma desvantagem os filhos não falarem tâmil e a língua vai desaparecendo", disse Hugo Cardoso acrescentando que também aumentou o número de casamentos entre falantes do crioulo português e falantes de outras línguas.
"Há quem use a língua (crioulo português) no dia a dia, mas estamos a falar de pessoas que falam várias línguas. O tâmil é a língua oficial, mas isso não é um problema. O que acontece é que algumas famílias estão a criar os filhos com o tâmil apenas abandonando o crioulo. Temos dados mais concretos sobre esta situação que está a acontecer com alguma velocidade", frisou.
Tradicionalmente os burghers portugueses são católicos, mas tem havido nos últimos anos algumas conversões a igrejas protestantes e situações residuais de conversão ao hinduísmo e ao islão por via dos casamentos.
Os burgher são reconhecidos politicamente como uma das minorias do Sri Lanka, um país que passou por vários ciclos políticos sendo que a comunidade manteve a língua, sobretudo na Costa Leste enquadrada em núcleos urbanos e inicialmente executavam ofícios manuais: algumas profissões são mantidas incluindo a de ferreiro, carpinteiro ou mecânico.
"A certa altura, os burgher portugueses chegaram a ser conhecidos como 'os mecânicos'", indica Hugo Cardoso que concluiu que o perfil profissional está a mudar em virtude do acesso ao ensino.
De acordo com o investigador os censos não indicam um número exato de burghers portugueses havendo estimativas sobre a concentração de "cinco mil num local outros três mil noutro ponto".
"Distribuímos um questionário a mais de três mil pessoas e descobrimos que pelo menos 1.200 se identificaram como falantes ativos", disse o autor responsável pela recolha que vai ser divulgada de forma pública através da Endengered Languages Arquive o (Arquivo das Línguas Ameaçadas) que é gerido em Londres pela SOAS (Universidade de Londres) que financiou a investigação.
"Após a recolha podem ser investigadas, entre outros aspetos, a descrição gramatical da língua, investigação sobre etnomusicologia e como o corpus é público espera-se que haja mais gente interessada no tema incluindo as questões gerais da vida da comunidade como a gastronomia e o trabalho, concluiu.
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