Pacto tem virtudes mas alcance político está fragilizado com deserções
Os objetivos humanistas e abrangentes do pacto global para a migração da ONU são uma "grande virtude", mas o "alcance político e geográfico" do documento está fragilizado perante a "cadência de deserções", segundo o investigador Bernardo Pires de Lima.
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Mundo Migrações
Negociado ao nível intergovernamental sob os auspícios da ONU, o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM, na sigla em inglês), que deverá ser adotado na próxima semana numa conferência em Marrocos, tem como base um conjunto de princípios, como por exemplo a defesa dos direitos humanos, dos diretos das crianças migrantes ou o reconhecimento da soberania nacional, e enumera 23 objetivos e medidas concretas para ajudar os países a lidarem com as migrações, nomeadamente ao nível da informação e da integração.
"A grande virtude é elencar, de uma forma abrangente, humanista e integrada, um conjunto de objetivos sobre migrações e refugiados, capazes de interligar os comportamentos dos Estados na regulação dos seus fluxos, na defesa dos direitos inalienáveis de refugiados (tantas vezes violados) e das suas integrações nas sociedades de acolhimento", afirmou à Lusa o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, a propósito das potencialidades do documento, o primeiro deste género.
Apesar das virtudes, o analista de política internacional realçou que o texto tem uma "principal fragilidade" que está associada à "cadência de deserções" verificada nos últimos meses e nas últimas semanas.
Deserções que estão a fragilizar "o alcance político e geográfico" do pacto, disse o colunista.
Mesmo não tendo uma natureza vinculativa, o pacto global patrocinado pela ONU está a dividir opiniões e a reunir as críticas de forças nacionalistas e anti-migração em vários países e em várias regiões.
Estados Unidos, Austrália, Israel, Polónia, Áustria, República Checa, Hungria e República Dominicana estão entre os países que rejeitam o pacto global e já anunciaram que não vão assinar o texto.
Bernardo Pires de Lima frisou que o crescimento da união entre nacionalistas europeus e ocidentais é prévia à existência deste pacto, lembrando que "a desregulação, descoordenação e a impreparação dos Estados para lidar com grandes fluxos migratórios" têm sido um elemento central no aumento da intolerância e da identidade nacionalista.
"Mas com ou sem pacto, essa sinergia entre movimentos e partidos nacionalistas dar-se-ia sempre, pela simples razão de que um problema transversal e supranacional como são as migrações, os refugiados e a integração de minorias, agregaria inevitavelmente esse código genético antagónico que o nacionalismo expõe", prosseguiu.
Segundo o investigador, seria correto afirmar que um "bom acordo", no plano dos objetivos e da operacionalização no terreno, "diminuiria o caos da regulação migratória e com isso o crescimento dos nacionalismos".
"Mas o que estamos a assistir, sobretudo na Europa, é a debates internos duríssimos sobre a vinculação ou não ao acordo, a ponto de fazer baixas em governos, como na Eslováquia, ou de abrir crises políticas graves, como na Bélgica", afirmou Bernardo Pires de Lima.
E acrescentou: "Os partidos nacionalistas querem usar o acordo como uma ingerência externa e um efeito-chamada, criando mais medo social; os não-nacionalistas são pouco crentes nas soluções e querem fugir ao debate identitário. É nesta fragilidade em determinar os termos do debate que o radicalismo cresce".
À questão como fica a posição da ONU e do multilateralismo perante esta oposição a um acordo que não é vinculativo, o investigador recordou que as crises da credibilidade da ONU e dos limites do multilateralismo "são antigas e continuarão no debate, com ou sem pacto sobre migrações e refugiados".
Mesmo assim, destacou, "há uma maioria de Estados [onde Portugal consta] que se vincularam, o que é melhor do que não existir".
Sobre o futuro do pacto, Bernardo Pires de Lima aponta um dos caminhos possíveis: "Forjar regionalismos que levem a bom porto o acordo, juntando vontades entre o maior número de Estados com interesses comuns na matéria".
"Precisamos de inverter as tragédias humanitárias em histórias de sucesso. Só assim derrotamos o nacionalismo", finalizou.
A conferência intergovernamental para adotar o pacto global para a migração vai decorrer nas próximas segunda-feira e terça-feira na cidade marroquina de Marraquexe, sendo que se prevê que o documento seja adotado formalmente logo no primeiro dia do encontro.
O número de migrantes no mundo está atualmente estimado em 258 milhões, o que representa 3,4% da população mundial.
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