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"Não preciso de uma condecoração, preciso é que me deem trabalho"

Luísa Ortigoso descobriu na adolescência a sua veia artística e desde muito nova que iniciou uma carreira no mundo da representação. Cheia de garra e determinação, a atriz não trocaria esta profissão por nada e só espera que as artes nunca deixem de ser "apoiadas".

"Não preciso de uma condecoração, preciso é que me deem trabalho"
Notícias ao Minuto

23/08/17 por Marina Gonçalves

Fama Luísa Ortigoso

Quando entrou para o mundo da representação, teve como "padrinhos de trabalho" os atores António Assunção e Henrique Canto e Castro. Por isso, diz ter sido uma "sortuda".  

Para Luísa Ortigoso, um elenco com várias gerações só pode ser "enriquecedor", visto que tanto os artistas mais velhos como os mais novos têm sempre algo novo para partilhar.  

Ainda assim, deixa um conselho importante aos mais jovens: "Terem sempre os pés no chão e perceberem que isto não é um caminho linear". 

Em conversa como o Notícias ao Minuto, a atriz partilha algumas das suas opiniões em relação à cultura do nosso país, recordando ainda os amigos e colegas de profissão que viu partir no ano passado. 

No ano passado perdemos grandes nomes da representação nacional, muitos deles da série ‘Bem-Vindos a Beirais’. Como é que viveu este adeus a pessoas que fizeram parte do seu elenco? 

Eram do meu elenco e das minhas relações pessoais. Tanto o José Boavida quanto o Carlos Santos eram pessoas com quem eu já estava ligada há muito tempo e foram perdas difíceis de gerir porque não eram expectáveis, na altura. Mesmo a do Carlos, apesar de ser uma pessoa com mais idade, não se esperava que acontecesse. Foram coisas que me entristeceram muito e são pessoas que eu não esqueço. Vivi tanta coisa com eles, a nível profissional e pessoal. Não é fácil de gerir, mas é como em tudo na vida. Na nossa vida pessoal também temos perdas. Passámos muito tempo juntos, esse também é um facto. Temos a sensibilidade à flor da pele e não é um cliché, a verdade é que nós trabalhamos com emoções. Às vezes conhecemos melhor uma pessoa com quem estamos a trabalhar do que uma que é da família. E essa ligação, esse tempo, traz coisas muito boas e depois traz esses desgostos. Quando sentimos isso também é sinal de que não arrefecemos e de que ainda estamos com o coração no sítio.  

Acho que em Portugal se escreve menos para pessoas mais velhas do que lá fora. Parece que envelhecer é uma faltaSente que em Portugal os atores mais velhos não têm o devido destaque no mundo da representação? 

Acho que em Portugal se escreve menos para pessoas mais velhas do que lá fora. Parece que envelhecer é uma falta. Gosto de fazer um ano todos os anos, quando deixar de os fazer é que vou ficar chateadíssima. Talvez haja menos trabalho para as pessoas mais velhas. O destaque vem com o trabalho, não vem com outra coisa. Não preciso que me ponham uma condecoração, preciso é que me deem trabalho. Nesse sentido sim, acho que se está a escrever menos para pessoas mais velhas e, às vezes, isso sente-se um bocadinho porque quanto mais diversificado for um elenco, mais temos a ganhar.

Tive a sorte de começar com gente bem mais velha que eu. Tive como padrinhos de trabalho o António Assunção e o [Henrique] Canto e Castro, dois grandes atores. Fui a pessoa mais sortuda que se pode imaginar. Foram dois mestres fabulosos e se eles não tivessem tido trabalho naquela altura eu não os tinha conhecido. Quem é que ficava mais pobre? Eu. Não estou a dizer que tenho a qualidade deles, mas esse convívio e esse intercâmbio de trabalho é muito enriquecedor para os dois. Gosto de trabalhar com gente mais nova. Abordam as coisas de uma forma mais fresca do que eu. Estou sempre a aprender com gente mais velha e mais nova.  

Tem medo de ficar esquecida e ser afastada da representação de um momento para o outro?

Eu não pessoalizo tanto a coisa, nunca faço essa equação de um dia me irem afastar. O que eu tenho medo é que se deixe de apoiar as artes, ou se continue a apoiar tão pouco, ou que haja menos trabalho para toda a gente. Não sou eu pessoalmente, mas somos todos. Porque, na verdade, quando se afastam pessoas que estão integradas no mercado de trabalho é porque alguma coisa está a correr mal. Disso eu tenho medo.

Cada vez mais temos novos atores na fição nacional. Acha que há muito talento nesta nova geração? 

Há, muito. Há gente muito talentosa, maravilhosa a representar, a encenar, a dirigir, a realizar, tudo. Há gente com muito, muito talento, com quem dá muito gozo trabalhar.

Continuamos a ter um orçamento baixíssimo para a cultura, sendo que a cultura é a identidadeAcha que a cultura continua esquecida pelo Governo, apesar das constantes promessas de que é preciso melhorar?  

Estreei-me em 1979 e nesse ano fez-se a primeira campanha de 1% para a cultura. Ainda não chegámos lá e acho que isto responde à pergunta. Continuamos a ter um orçamento baixíssimo para a cultura, sendo que a cultura é a identidade. O país não é uma coisa abstrata. São as pessoas e aquilo que produzem, que mostram, que fazem e que constroem. Sem cultura não há identidade. Num país pequeno como o nosso a cultura devia estar na linha da frente. Esse é um objetivo que eu espero encontrar um dia. Acho que isto não é utopia, é pensarmos que se houver esse investimento haverá seguramente um retorno. Quando defendo 1% para a cultura não defendo 1% a fundo perdido. É a fundo ganho, absolutamente, porque vamos ter maior nível de cidadania, vamos ter gente com melhor formação, ter gente melhor. A arte faz as pessoas melhores. Nesse sentido, espero que um dia consigamos lá chegar. Eu ainda acredito que sim.  

Aos seus olhos, o teatro está a passar por uma fase má? 

O teatro tem altos e baixos. Voltamos a esta vaca fria que é: se não há muito apoio a nível da cultura e das artes, e falando do teatro especificamente, às vezes as dificuldades são maiores e há uma baixa de produção. As pessoas têm de procurar restabelecer-se para conseguir voltar a produzir. No entanto, creio que se tem produzido muito bom teatro. Tem-se feito muito boas peças, tem aparecido muito boa gente a fazer teatro.  

Ainda há público para ir ao teatro? 

Tem havido público. Houve aí uma altura, até por questões económicas do lado do público e do lado dos que executavam, que a coisa se foi muito abaixo. Quando as pessoas estão preocupadas em pôr pão na mesa não vão ao teatro comprar um bilhete, evidentemente. Sou muito realista nisso, sei que se faltar alguma coisa na casa de uma família a primeira coisa que vão cortar é no entretenimento e nas artes também.  

Há muito caminho para andar, mas não penso que este seja o período mais negro da nossa vidaMas acha que esta nova geração tem vontade de ir ao teatro. Já tem isso implementado na sua cultura? 

Eu acho que já tem outra vez bastante mais. Houve uma altura em que o apelo da televisão era tal que as pessoas se esqueciam que havia todo um resto à volta. Mas neste momento já se vê muita gente e muita malta nova a consumir televisão, cinema e teatro. Ou a não consumir televisão até. O que é interessante. Há espaço para tudo e como sentir mais crítica em relação àquilo que vê e àquilo que procura. Acho que isso é muito bom. Não estou tão pessimista quanto às vezes ouço alguns discursos, mas também não estou contente. Há muito caminho para andar, mas não penso que este seja o período mais negro da nossa vida. O período mais negro já esteve bastante mais para trás. Agora começa-se a fazer um caminho que me está a agradar mais.  

Perante as dificuldades que enfrentou na sua carreira, se um filho hoje lhe dissesse que queria seguir o mundo da representação, o que lhe diria? 

O meu filho ainda pôs essa hipótese, mas depois teve mais juízo do que eu e foi para outras vidas. As pessoas precisam de ser felizes. Os meus pais tentaram dissuadir-me, sobretudo a minha mãe. Acho que até aos 40 anos ela me perguntava todos os anos se eu não estava cansada desta vida. Ela ainda tinha esperança que eu mudasse de vida. Mas, na verdade, e apesar das dificuldades, as pessoas têm o direito de serem felizes e a procurar aquilo que lhes satisfizer, que lhes dê mais prazer fazer. E isto é um apelo extraordinário. Mas, se calhar, a Fernanda Montenegro tem razão. Perguntaram uma vez a essa maravilhosa atriz brasileira o que diria a um jovem se ele quisesse ser ator e ela disse: ‘Dizia-lhe para ir fazer outra coisa que não tenha nada a ver e que ficasse lá um tempo. Depois se não conseguisse respirar, se lhe doer o corpo todo, se andar triste, se chorar e vir que não consegue viver sem isto, então volte’.  

Apesar da chamada carreira, esta é das poucas profissões em que estamos sempre a recomeçar, como se fosse o primeiro diaQual o conselho que deixa aos mais novos que estão a enveredar por esta área? 

Podia partilhar com eles uma ideia que é terem sempre os pés no chão e perceberem que isto não é um caminho linear. Que cada vez que pegam num papel estão a recomeçar, a partir do zero. Apesar de se falar de carreira, a verdade é que os atores têm um percurso, sobretudo em Portugal que nem carteira profissional temos nem estatuto profissional. Basicamente nós não existimos. Mas já tivemos, eu já tive carteira profissional. Estreei-me em bom aqui em Portugal, mas tudo acabou. Temos de reconquistar tudo isso. Mas apesar da chamada carreira, esta é das poucas profissões em que estamos sempre a recomeçar, como se fosse o primeiro dia. E há que ter essa humildade, não é subserviência que eu isso não gosto, mas essa humildade de se perceber que se pode falhar na próxima esquina, no próximo papel. Hoje somos extraordinários e amanhã podem não se lembrar de nós para um trabalho qualquer. Esta flutuação, as pessoas têm de perceber se têm ou não endurance para isto porque não é fácil esse lado de gestão de vida. E depois trabalhar muito. Estudar sempre e perceber-se que isto não se faz sozinho. Se há arte coletiva é esta. Mesmo um monólogo faz-se com muita gente.  

Há cada vez mais apostas na ficção nacional. Sente que estamos num bom caminho? 

Sobretudo nos últimos tempos, acho que fizeram um conjunto de séries com muito boa qualidade e que fugiram um bocadinho ao padrão televisivo dos últimos anos. Isso deu-me uma certa esperança e gostei de ver. Já fiz muitas novelas e não posso dizer que têm de acabar. Elas têm o seu espaço. Se forem bem escritas, realizadas e representadas têm o seu espaço e está tudo certo. Agora, acho que é importante também que existam as séries e outras coisas. Se nós dermos a uma criança sempre pão com manteiga ela nunca vai perceber que gosta de pão com queijo. Temos de dar as novelas, as séries, os filmes, e de criar em todas essas áreas. Depois, os públicos hão-de formar-se. Há espaço para isso tudo. Mas nos últimos anos acho que se tem produzido com mais qualidade, sim. 

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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