As principais instituições financeiras têm vendido carteiras de empréstimos em incumprimento, nos últimos anos, para reduzir a dimensão do crédito malparado dos seus balanços. Para isso, têm lançado operações de venda em massa a empresas que não se encontram na esfera de supervisão do Banco de Portugal (BdP).
Desses pacotes fazem parte não apenas crédito ao consumo e às empresas, mas também, nalguns casos, empréstimos à habitação. E a partir do momento em que o empréstimo sai da esfera do banco e passa a ser detido por uma empresa que não é uma instituição de crédito, os proprietários deixam de estar abrangidos pelas regras do regime dos contratos de crédito relativos a imóveis.
Com isso, deixam de estar protegidos legalmente pela possibilidade de acederem ao chamado regime do "direito de retoma" do contrato, que está consagrado nesse diploma legal (o Decreto Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho), ficando mais desprotegidos do que estariam se o interlocutor continuasse a ser o banco.
Retomar o crédito significa pagar as prestações em atraso, os juros de mora e as despesas incorridas pelo banco. Como este direito pode ser exercido pelos clientes dentro do prazo que a lei lhes dá para se oporem à penhora da habitação e mesmo até à venda da casa, os clientes poderiam exercer esse direito enquanto o emissor do crédito fosse o banco. No entanto, quando há uma venda, o cliente passa a estar excluído do regime que expressamente prevê o direito de retoma, pois o dono do direito do crédito é uma entidade que não é uma instituição financeira.
A jurista da Deco Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira da associação, afirma à Lusa que o problema se acentuou a partir de 2017, havendo 'vagas' de clientes bancários que se dirigem aos serviços jurídicos da associação nos momentos em que os bancos alienam grandes carteiras de malparado.
Nos tribunais de primeira instância têm existido decisões nos dois sentidos, umas a favor dos clientes, outras a favor dos bancos. No entanto, desde pelo menos 2021, já houve várias decisões na segunda instância (tribunais da Relação) e desde 2024 duas decisões no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que consideraram as vendas ilegais.
No caso do STJ, dois acórdãos entenderam que as cessões representam uma "fraude à lei" e anularam as operações, obrigando os créditos a regressar aos bancos que anteriormente os tinham alienado, o Santander e o BPI.
A Lusa questionou o BdP para saber se supervisionou as principais instituições financeiras (designadamente, a CGD, o BCP, o BPI, o Montepio e o Santander) para verificar se as operações respeitaram o direito de retoma, mas o supervisor não esclareceu o que fez em concreto.
Não se sabe qual é a dimensão exata do problema. É conhecido que os bancos alienam crédito à habitação no pacote do malparado, mas o valor dos últimos anos é desconhecido. O BdP diz não ter dados sobre esta realidade. Questionado pela Lusa sobre o total vendido desde 2017, fonte oficial respondeu que "o Banco de Portugal não dispõe da informação solicitada".
Portugal deveria ter transposto, até ao final de 2023, uma diretiva europeia que dá maior proteção aos consumidores, garantindo que, com a cessão, o devedor não pode ficar numa situação jurídica pior.
As instituições bancárias já realizaram várias operações de venda de carteiras de crédito desde 2023 e, como as novas regras ainda não estavam de pé, os clientes não puderam beneficiar dos direitos que a legislação europeia lhes consagra.
Por exemplo, em junho, já posteriormente ao acórdão do STJ, o BPI anunciou ter voltado a vender uma carteira de 82 milhões de euros, referentes a 22.900 contratos de cerca de 5.600 clientes, não especificando quantos dizem respeito a habitação.
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