Habitação. Cooperativa da Bouça, entre o que foi e aquilo que é agora

A história da cooperativa da Bouça, no Porto, remonta ao 25 de Abril de 1974, mas o projeto então idealizado tem hoje outros contornos, com cedências ao aluguer e ao alojamento local.

Notícia

© Gabinete de Organização e Projectos

Lusa
17/04/2023 07:29 ‧ 17/04/2023 por Lusa

Economia

Cooperativa da Bouça

Com o nome oficial de Cooperativa Águas Férreas, é por todos conhecida como Bouça. Com projeto arquitetónico de Álvaro Siza, o corrupio de curiosos é uma constante no bairro, com acesso direto para a rua, em pleno centro do Porto.

Três estudantes estrangeiros arranham o português para perguntar a António Simões, que ali vive, se podem espreitar a sua casa, uma das 128 habitações, com uma média de quatro residentes cada, que fazem da Bouça "quase uma aldeia".

O morador e cooperante conversa com a Lusa no pátio comum, recordando que se inscreveu na cooperativa no início dos anos 2000 e esperou três anos por uma casa, para a qual fez um empréstimo bancário.

O arquiteto explica o que distingue uma cooperativa como a Bouça: "Ainda durante a construção, as pessoas estão ligadas ao processo de construção do empreendimento, vão acompanhando as obras, existem reuniões periódicas. Estão dentro de todo o processo. Começam-se a conhecer. [...] Quando vêm habitar as casas, já há conhecimento mútuo."

Depois, o coletivo continua, desde logo em assembleias gerais anuais, onde se aprovam objetivos e contas e se tomam decisões sobre "a vida da cooperativa".

Se António Simões quiser vender a sua casa, tem de o comunicar à cooperativa, que "tem direito de preferência na compra" -- algo que não tem exercido por falta de recursos financeiros.

Isso explica, em parte, uma das alterações substanciais à vivência na cooperativa. Hoje, 32 das casas estão alugadas.

"Ninguém nos entrega um contrato, não sabemos quem são. É uma complicação bastante grande. [...] Na garagem, a gente não sabe quem lá aparece", relata Fernando Cardoso, um dos três administradores do condomínio.

A Bouça "mudou muito" nos últimos anos. Fernando Cardoso nunca pensou ver a cooperativa ceder ao alojamento local e às rendas. E lamenta que isso tenha acontecido.

"Isso entristece-me muito, não foi para isso que eu trabalhei, para que fosse para aluguer", comenta, frisando que o assunto está a ser analisado por advogados.

"[Originalmente], as casas foram vendidas, e o terreno inclusivamente, para habitação própria e permanente", lembra, na qualidade de um dos moradores mais antigos da cooperativa, que fez parte do projeto SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), iniciativa dinamizada pelo arquiteto Nuno Portas.

Logo após o 25 de Abril de 1974, o projeto envolveu arquitetos, engenheiros, técnicos e moradores na busca de solução para as muitas situações de insalubridade e precariedade habitacional em que viviam as comunidades mais carenciadas, de norte a sul do país.

Quando o SAAL foi extinto, em 1979, o processo de construção da cooperativa parou, concluídas que estavam 56 casas, e a Associação de Moradores da Bouça elegeu Fernando Cardoso para "vigiar" o local. "Não havia saneamento, água, nada. Vim para aqui segurar isto, no tempo das ocupações", recorda.

O projeto ficou parado 25 anos, mas "o senhor Cardoso", como é conhecido por ali, deu "da perna" até o pôr a andar outra vez. Quando foi ter com "o Siza" -- que conhece há muitos anos --, o arquiteto nem queria acreditar que era para o acabar.

O projeto arquitetónico baseou-se "na vivência das ilhas" -- estruturas de habitação precária na zona histórica do Porto -, onde "havia um grande contacto entre as pessoas", recorda António Simões.

"O facto de estes espaços estarem em galeria, não ser o típico esquerdo-direito, permite que as pessoas se cruzem com mais facilidade, se conheçam", observa. "É um ambiente mais humano, mais humanizado", considera.

O projeto arquitetónico incluía três espaços coletivos, dois dos quais -- no plano original, um centro de atividades de tempos livres e um café -- já foram alienados a outros proprietários.

O único que resta é a sede da cooperativa, mas está, neste momento, alugado a uma clínica, para garantir "fonte de rendimento para as despesas correntes", conta António Simões, adiantando que, no futuro, o objetivo é utilizá-lo para atividades lúdicas e culturais.

Ainda assim, acredita, o SAAL deixou sementes na Bouça. "Os antigos residentes, que participaram no processo, que ainda aqui habitam, mantêm esse espírito, de entreajuda, de decisões que são tomadas coletivamente nas assembleias da cooperativa", relata.

"Aqui, o terreno é nosso, foi pago por todos, ao contrário de muitas cooperativas que estão em terrenos que são camarários", distingue Fernando Cardoso, sublinhando que sempre lutou por este projeto, num trabalho árduo. Hoje, diz, a Bouça é um "bairro sossegado".

Recebe ali muita gente, sobretudo estrangeiros e jovens: "às vezes é uma procissão". No escritório do condomínio, mostra a maquete do projeto, fotografias e outros documentos, entre os quais a carta de apoio dos moradores à inclusão da Bouça na lista de obras de Álvaro Siza que, no dia 06, foi submetida a candidatura a património mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), num processo coordenado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto.

Para isso, o bairro precisa primeiro de obter classificação nacional. "Esperamos que isso se concretize", torce "o senhor Cardoso", sabendo que isso também se traduzirá em benefícios para os cooperantes, como a isenção do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).

Leia Também: "Medida de desespero". Cooperativa de Matosinhos sobre 'Mais Habitação'

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas