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Alexandre Santos: O português que chegou à F1 mas que poucos sabem quem é

Como o próprio diz, trabalhar numa equipa de Formula 1 é como uma espécie de icebergue. Há, portanto, muitos funcionários que se encontram a trabalhar 'debaixo de água', que é o mesmo que dizer fora dos holofotes das pistas. Alexandre Santos é engenheiro mecânico, entrou na Williams em 2017 e contou-nos o seu percurso até lá, assim como a experiência no pináculo do desporto motorizado.

Alexandre Santos: O português que chegou à F1 mas que poucos sabem quem é
Notícias ao Minuto

08:07 - 16/06/20 por Ruben Valente

Auto Fórmula 1

Quando se fala em Formula 1, o nosso pensamento rapidamente é levado para a adrenalina das pistas, para a condução dos pilotos e para a emoção de um Grande Prémio. Porém, para que tudo isso possa existir, há uma máquina oleada naquilo que é o desenvolvimento de um monolugar durante toda a temporada.

Já ouviu falar no nome de Alexandre Santos? Provavelmente, não, mas é sua a história que vamos contar em mais uma rubrica 'Dos 0 aos 100', do Desporto ao Minuto.

O jovem engenheiro mecânico, de 27 anos, é português e entrou para a Williams em abril de 2017. Alexandre Santos trabalhou no desenvolvimento de quatro carros da histórica equipa de Formula 1 e explicou-nos em detalhe a sua função, tal como falou da reestruturação a que assistiu ser feita na Williams, não  esquecendo ainda estes últimos anos, que não têm sido fáceis para a última classificada de 2019.

Alexandre, natural de Leiria, abandonou a equipa de F1 já perto do final do ano passado, por decisão sua, como o próprio revelou, mas sublinhou que a experiência foi incrível e que acabou por ser o concretizar de um objetivo, depois de ter feito as malas para Inglaterra em busca de um futuro melhor.

Chegaste à Williams em 2017, mas começa por contar-nos o caminho que fizeste até lá.

Quando era miúdo, sempre gostei de carros, motas, bicicletas… E fui sempre muito interessado pela parte mecânica e pela parte de como funcionavam as coisas. Gostava muito de criar coisas novas e a partir do zero. Já na faculdade, escolhi engenharia automóvel, no Instituto Superior de Engenharia do Porto, onde fiz os três anos. Entretanto, fiz uma pós-graduação em Lean Management, e aí podia ter seguido por um lado mais operacional ou por um lado de desenvolvimento. Escolhi a parte que tinha mais a ver comigo, que era o desenvolvimento, e candidatei-me à Brookes University, em Oxford [Inglaterra]. Foi lá que fiz o meu mestrado em ‘Motorsport engineering’ [Engenharia do desporto motorizado].

Foram, então, os estudos que motivaram a tua ida para Inglaterra?

Exatamente. Rapidamente percebi que a entrada em Oxford ia abrir muitas portas no mercado inglês e no mercado internacional. Achei que seria uma boa aposta entrar por lá.

Mas sempre ambicionaste ter um trabalho ligado à Fórmula 1 ou foi uma oportunidade que surgiu mais tarde?

Temos de ser realistas. É sempre difícil ambicionar uma coisa dessas, até porque os cursos portugueses não têm visibilidade lá fora. O que não quer dizer que não sejam bons, atenção. O que quero dizer é que lá fora, e neste caso na Formula 1, as pessoas não sabem o quão bons os cursos em Portugal são. Entrar para a Formula 1 sempre interessou, mas nunca chegou a ser um objetivo antes do mestrado, porque era algo realmente distante. Mas, quando pesquisei pelo curso em Oxford, rapidamente percebemos que a Formula 1 e toda a competição automóvel passa a ser uma possibilidade. Ou seja, a partir do momento em que se entra nesse curso, passa a ser um objetivo atingível.

A Williams tem 600 pessoas a trabalhar e apenas vemos 60 na pistaMas antes de entrares para a Williams ainda tiveste de ganhar currículo...

Eu acabei o mestrado muito cedo, com 21 anos. E, em Inglaterra, todos fazem um género de estágio profissional de um ano, coisa que eu não tinha no Porto. Portanto, eu tinha uma desvantagem em relação aos meus colegas, que era não ter experiência profissional. Não consegui arranjar logo trabalho em Inglaterra e o que fiz foi voltar para Portugal. Fiz um estágio na Visteon, em Palmela, e pouco depois surgiu a oportunidade de entrar na Jaguar Land Rover, em Inglaterra. Trabalhei na área de desenvolvimento, nas suspensões dos carros, onde incidiu a minha tese de mestrado. Só depois é que abriu uma vaga na Williams. Vi que preenchia os requisitos, decidi candidatar-me e depois o processo de recrutamento é basicamente o de um trabalho ‘normal’. [risos]

Qual era, em concreto, a tua função dentro da Williams?

Numa equipa de Formula 1, se imaginarmos as coisas como um icebergue, a parte que fica de fora são as pessoas que vão à corrida. Ou seja, a parte que fica debaixo de água é a parte que pouca gente vê, que corresponde à parte de criação e desenvolvimento do carro. E era nessa parte que eu trabalhava. Nunca ambicionei ir às corridas, não era algo que eu quisesse fazer, até porque o que eu gostava mesmo na Formula 1 era a parte do desenvolvimento de um carro. É na fábrica que se faz realmente a criação de todas as tecnologias e avanços que se vêem depois na pista passados, por exemplo, seis meses ou um ano.

Quanto à minha função, eu estava integrado no departamento de design, mas eu não desenhava peças. O que eu fazia era simulação no computador, a matemática e a física dos sistemas do carro, como por exemplo a direção assistida, a caixa de velocidades, os travões… Eu fazia todos os cálculos necessários para depois poder transmitir aos designers qual é que deveria ser a relação de caixa para as diferentes mudanças, que ‘settings’ é que se deviam mudar na mudança de caixa, esse género de coisas. Outra coisa que fazia também era trabalhar diretamente com o responsável dos controlos, que estava em pista. Eu ajudava-o a partir da fábrica nas mudanças de caixa e a tornar tudo isso muito mais suave, conforme o feedback que o piloto dava. Porque aí há sempre várias coisas que se podem fazer, porque, para nós, engenheiros, o melhor é aquilo que é mais rápido, mas para os pilotos nem sempre é assim, porque o carro pode ser mais difícil de conduzir. Eles preferem sempre algo que seja mais fácil de conduzir para ganhar mais confiança e chegar ao limite mais depressa.

E em que carros da Williams tu trabalhaste?

Trabalhei ainda no carro de 2017, mas comecei de uma forma mais profunda a partir de 2018. Depois estive ainda no desenvolvimento do carro de 2019 e no de 2020 também.

E qual era aquele piloto com mais atenção ao detalhe e que mais feedback dava à equipa? Sendo que tu trabalhaste com nomes como Felipe Massa, Kubica, Stroll, Russell…

Os pilotos têm mais contacto com os engenheiros de corrida deles e é essa pessoa que é responsável por transmitir o feedback deles à fábrica. Às vezes não é bem assim porque eles acabam também por falar com os engenheiros dos pneus, de caixa, etc. Isto para dizer que falávamos, mas não existia aquele contacto diário entre nós. Mas o que gostei mais de trabalhar foi o George [Russell], porque ele é bastante interessado. É muito intenso trabalhar com ele, está sempre à procura de melhorar e de saber onde é que o pode fazer. Por outro lado, como foi o primeiro ano dele em 2019, era quase um trabalho como se estivéssemos todos a aprender o que é que se podia fazer.

Notícias ao MinutoGeorge Russell, piloto que se estreou na Formula 1 em 2019 pela Williams© Reuters

Temos ideia que os engenheiros têm sempre mais trabalho quando termina a época, mas a verdade é que vocês estão sempre a trabalhar no desenvolvimento do carro durante todo ano. Correto?

Sim, existe trabalho durante toda a época. Normalmente, o que acontece é que o departamento de design está mais ocupado entre setembro e janeiro. Em novembro, dezembro começa-se a fabricar o carro de forma a ele estar pronto em fevereiro para os testes de pré-temporada. Mas quando eu estava mais ocupado era normalmente entre junho e setembro. Porque tinha de fazer os cálculos todos, todas as análises, para depois poder dar os dados para que começassem a desenhar as peças. E, por norma, não se cria um carro novo. É quase sempre uma evolução do carro anterior, por isso é que os carros são sempre muito parecidos. A parte do desenvolvimento já está tão evoluída que não tem lógica criar algo completamente diferente. Até porque já se conhecem e já se sabe onde estão os problemas. Claro que há sempre novas coisas para serem desenvolvidas, mas normalmente nunca é um carro novo, até porque o risco é demasiado grande.

Pegando num exemplo anterior que deste sobre o icebergue, existe então sempre muito trabalho diário que o adepto comum de Formula 1 não vê.

Sim. Se nós formos estar atentos há cerca de 60 pessoas na pista e uma equipa como a Williams tem 600. Se olharmos ainda para uma Mercedes ou uma Red Bull, eles têm mais de 1000 pessoas a trabalhar na fábrica e são as mesmas 60 pessoas que vão à pista.

Notícias ao MinutoA fábrica da Williams está sediada em Grove, Oxfordshire, no Reino Unido© Williams

Tu ficavas sempre na fábrica, nunca foste para a pista?

Nunca fui a uma corrida, sempre preferi estar na fábrica. Bom, nunca surgiu oportunidade, mas a verdade é que nunca a procurei. Fui ver uma corrida como espectador em Silverstone, mas a trabalhar nunca fui para a pista.

É inegável que já existe um grande nível de tecnologia nos carros de Formula 1, como tu próprio já referiste. Mas na tua opinião, o que conta mais para vencer uma corrida: um carro bem desenvolvido ou o talento de um piloto?

Eu acho que ter um bom carro é muito, muito importante. Mas não é tudo… Porque há sempre dois pilotos para o mesmo carro. Eles querem ser o melhor entre eles e, apesar de o carro fazer toda a diferença e para mim como engenheiro é isso que me atrai, o piloto continua a fazer a diferença. Se olharmos para o pelotão do meio, aquelas equipas atrás da Mercedes, Ferrari e Red Bull, aí o piloto faz muita diferença, porque os carros são de facto muito parecidos. E nos carros da frente é a mesma coisa. Na Mercedes, o Hamilton é quase sempre mais rápido que o Bottas, na Red Bull vemos o Verstappen sempre quatro ou cinco lugares acima do companheiro de equipa. Mas uma vez um professor de mestrado disse-me: ‘um mau carro nunca ganha um campeonato’. Se calhar, ganha uma corrida, mas nunca ganha um campeonato.

Foi o Frank Williams a construir a equipa que hoje conhecemos e que faz parte da história da Formula 1. Atualmente, ele já está mais afastado da liderança, que está a cargo da Claire, mas chegaste a conhecê-lo?

Sim, sim. A Claire é a chefe da equipa e estava lá sempre, claro. O Frank vive na fábrica, tem lá um apartamento, e estávamos com ele bastantes vezes. Almoçávamos e depois costumávamos dar uma voltinha depois de almoço, e ele estava lá sempre. Era super fácil de falar com ele, estava sempre disponível a falar connosco e fazia muitas perguntas. Às vezes, no inverno, quando ficávamos a trabalhar até mais tarde, ele descia ao andar dos escritórios e ia lá dar-nos uma palavrinha. O que é sempre importante quando se está a trabalhar até tão tarde.

Na Williams não conseguimos manter o nível de desenvolvimento devido à reestruturação que existiu

E como foi trabalhar com o Paddy Lowe? Havia muita expectativa com a chegada dele à Williams e a entrada dele na equipa até coincidiu com a tua...

Ele entrou umas semanas antes de mim, se não estou em erro, tivemos muito contacto. No final, até estava a desenvolver alguns projetos com o Paddy. Eu gostei muito de trabalhar com ele. Era alguém com muito conhecimento, que sabia de trás para a frente como é que funcionava a equipa, e ele era alguém que também estava sempre disponível para uma conversa. Conhecia muitas pessoas no meio e tinha muita influência lá dentro. Era alguém que via potencial e que gostava de desenvolver os jovens talentos que tinha dentro da equipa. Ele dava-nos uma ideia e dava-nos a liberdade para a desenvolver. O Paddy Lowe era o CTO (Chief Technical Officer), mas não era aquela pessoa que dizia: ‘Não, não. Eu só falo com o teu chefe’. Nada disso, ele era sempre muito acessível e acho que isso era bastante importante.

E como vês a queda da Williams na classificação, ano após ano? Isto porque o tempo em que trabalhaste na equipa coincidiu com a visível perda de argumentos em relação à concorrência.

Aquilo que eu posso dizer é que em 2018 houve uma reestruturação. E se imaginarmos que todos os anos, todas as equipas ganham cerca de 1,5/2 segundos por volta, nós na Williams não conseguimos manter esse nível de desenvolvimento face à reestruturação que houve. Mudámos todo o conceito, mudaram muitas pessoas que lá trabalharam e, por isso, assistimos às dificuldades que tivemos na época de 2019. Apesar de nos irmos aproximando aos poucos, as outras equipas não ficaram paradas à nossa espera. No fim do ano [2019] acho que já estávamos um pouco mais próximos e a prova disso é que, este ano, acredito que a Williams já se apresente com mais argumentos face à concorrência. Eu já tinha saído quando aconteceram os testes de pré-temporada desta época, mas pelo que vi dos tempos, parece-me que a Williams vai estar na luta com o resto do pelotão.

Notícias ao MinutoO monolugar da Williams em 2018, o primeiro em que Alexandre Santos participou por completo no seu desenvolvimento© Getty Images

Pegando exatamente por aí, como achas que vai ser o desempenho da Williams na nova temporada que está prestes a começar [5 de julho]?

Acho que, se tudo correr como previsto, espero vê-los mais a meio do pelotão e a fazer uns pontos aqui e ali. Acho que isso seria importante e uma demonstração de que a reestruturação da qual falei está a surtir efeito.

E a partir de 2022 com as novas regras, os novos carros, o teto orçamental…?

Já é algo mais difícil de analisar porque vão haver muitas coisas à mistura. O carro será completamente diferente. A maior parte dos conceitos aerodinâmicos por detrás de um carro não vão ser os mesmos, os sítios onde estão os vortex e coisas desse género. Os regulamentos foram feitos para evitar exatamente isso. As equipas com maior orçamento têm as melhores ferramentas para o desenvolvimento de um carro, as melhores estruturas, por isso é quase óbvio que irão ser eles a criar os melhores carros.

Mas não achas que o limite de orçamento vai beneficiar as equipas com menos poder financeiro, neste caso como a Williams?

Acho que vai beneficiar, mas não será no imediato. Pode dizer-se que o plantel, para se juntar, ainda vai demorar alguns anos. Isto porque, como já disse, as empresas com maior orçamento já têm as ferramentas e os processos mais desenvolvidos e vão conseguir gastar ainda mais dinheiro antes dos cortes entrarem em vigor, de forma a poderem continuar à frente. O que eu acho que precisa de acontecer é que os investimentos que eles estão a fazer agora, antes do corte orçamental, comecem a ser diluídos e comecem a ser importantes na construção do carro. O limite de orçamentos é a coisa certa, mas não se devem esperar grandes mudanças logo no ano seguinte. 

Acabaste por sair da Williams em setembro de 2019. O que levou à tua saída?

Foi uma opção minha. O meu objetivo sempre foi chegar à Formula 1 e depois de lá chegar senti que fiz aquilo que queria fazer, mas o que acontece na F1 é que as pessoas ficam demasiado especializadas e é difícil subir na carreira e evoluir. É preciso sorte, é preciso estar lá muito tempo e eu comecei a sentir que estar a especializar-me em algo que poderia não ser tão relevante para o resto do mercado mundial poderia estar a limitar-me. Decidi sair e nessa altura até estava à espera de fazer um projeto em Portugal. No entanto, surgiu a oportunidade de vir para a Deloitte em Londres e aceitei. O que faço agora é aplicar os conhecimentos, a forma de pensar, a forma como se resolve um problema, a partir da simulação. O que estou a fazer é utilizar isso com os clientes e com os projetos da Deloitte.

É algo bastante diferente daquilo que fazias na Williams.

Os conceitos não são assim tão diferentes, mas o mercado sim. Antes fazia coisas mecânicas e agora faço processos, modelar mercados… coisas deste género para tentar responder às perguntas que os nossos clientes têm. Aqui vi oportunidade de aplicar os conhecimentos que tinha e que ganhei na Formula 1, algo que posso dizer que pouca gente tem, de forma a poder torná-los aplicáveis ao mundo empresarial.

Foi, então, uma decisão tua sair da Williams e da Formula 1, mas ainda esperas ou gostarias de voltar um dia mais tarde?

Sinceramente não é algo em que pense agora ou que veja como objetivo neste momento. No entanto, acho que, se voltasse, gostaria de voltar para uma vertente mais ligada à estratégia de equipa. Não tanto para a parte de engenharia, mas mais para uma área comercial e de ‘business’. Gostei muito da experiência na Formula 1, mas chegou a uma altura em que quis evoluir e continuar a desenvolver-me. Mas, no meu caso, tive a sorte de me juntar a uma equipa que, em muito pouco tempo, é toda reestruturada, e o facto de ser pequena também me fez conseguir trabalhar em mais coisas e ter mais influência.

Notícias ao MinutoO monolugar da Williams em 2020, o último que contou com o trabalho do português Alexandre Santos© Getty Images

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