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"Se treinas a Síria e defrontas Iraque ou Irão não podes perder. Esquece"

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Rui Almeida faz um balanço da (longa) carreira, e atira: "Damasco talvez tenha sido a cidade mais tranquila em que estive. Ninguém tocava numa mulher estrangeira".

"Se treinas a Síria e defrontas Iraque ou Irão não podes perder. Esquece"
Notícias ao Minuto

08:00 - 24/01/20 por Carlos Pereira Fernandes

Desporto Rui Almeida

Portugal, Síria, Grécia, Egito e, claro está, França, o país a quem tem chamado 'casa' nos últimos cinco anos. Natural de Lisboa, Rui Almeida tem virado um autêntico 'globetrotter', tendo agora regressado à base após uma curta passagem pelo Caen

O Desporto ao Minuto sentou-se à mesa com o treinador de 50 anos, que repassou a sua já longa carreira, que conta com passagens por clubes como Sporting, Sporting de Braga ou Panathinaikos.

Pelo meio, um desafio que deu pelo nome de 'seleção olímpica da Síria', que comandou entre 2010 e 2012, mas também um período passado ao lado de Jesualdo Ferreira, a quem se continua a referir como "professor".

Enquanto aguarda por um novo desafio, Rui Almeida não descarta um eventual regresso a Portugal, mas com uma certeza: "Tem que ser por um desafio profissional, porque financeiro, por certo, não irá ser".

Houve épocas em que não comecei muito bem e terminei a discutir a subida de divisão na última jornada. Ia acontecer isso com o Caen

Como tem sido a vida do Rui Almeida desde setembro, quando deixou o Caen?

Acima de tudo, tenho aproveitado a família, que muitas vezes fica muito longe. Aproveito para fazer coisas que, muitas vezes, não tenho tempo para fazer, como ler, ir ao cinema… Embora a minha família viva em França, Troyes, Caen e Córsega não são em Paris.

Como é que um treinador vive estes momentos em que não sabe ao certo quando vai voltar ao ativo?

Não seria verdadeiro se não dissesse que qualquer treinador quer é entrar, se possível ontem [risos]. Analiso as coisas do ponto de vista daquilo que acho ser mais importante para a minha carreira no momento em que estou. Posso dizer que já podia ter entrado, não entrei porque não quis entrar, talvez por não ser o projeto que queria ou, acima de tudo, o clube que achava ser o mais indicado neste momento. Quero trabalhar, mas sem qualquer ansiedade.

Acredito que a passagem pelo Caen tenha sido mais curta do que desejava…

Foi o meu quarto clube em França, e tenho que analisar como um conjunto. Quem entra num mercado tão competitivo como o francês, numa Liga que, provavelmente, está entre as cinco melhores da Europa… Acho que fiz um percurso muito bom. O Caen esteve relacionado com a dificuldade de um clube que desce em França. Comparativamente a Inglaterra, os clubes em França não têm o para-quedas financeiro, o que significa que o clube desce dos 40 milhões da Ligue 1 para uma realidade onde a Ligue 2 dá oito milhões. Há uma diferença astronómica, e isso obriga a uma perda do plantel muito acima dos 50%. Nem sempre os jogadores saem no momento em que nós queremos. Há negociações e isso demora tempo, e isso transporta a organização do plantel para agosto, quando começas a trabalhar em junho. Mas há um pormenor. Em França, se um jogador não joga, não o podes mandar para a equipa B. É impossível, pelo que a organização do plantel demora tempo. Sabia disso, mas os meus resultados falam por mim em relação a França. Houve épocas em que não comecei muito bem, infelizmente, como no Troyes, e terminei a discutir a subida de divisão na última jornada. Ia acontecer isso com o Caen, naturalmente, mas as decisões não são do meu direito.

Antes do arranque da temporada falámos com o seu adjunto, Alexandre Santos, e dizia que esperavam poder contar com mais alguns reforços, o que acabou por não acontecer.

Sim, mas não tenho qualquer tipo de desculpas. Quando cheguei ao Red Star, aceitei os jogadores que tinha, porque cheguei em junho, exatamente na semana em que ia começar a treinar. É normal. Não tens tempo, constróis equipas com aquilo que tens. Ainda agilizámos, com jogadores que vi, mas no Troyes também foi assim. Depois ainda conseguimos incluir alguns jogadores que vi, como o Yohan Tavares, o Claude Gonçalves, o Martins Pereira… Isso também aconteceu no Caen, mas as pessoas acharam por bem não levar os jogadores que tinha indicado. A equipa continua com as mesmas dificuldades, não é por aí. Acima de tudo, o meu percurso em França mostra que, provavelmente, teríamos feito o mesmo. Há um ponto importante. A Ligue 2 é muito, muito competitiva e agressiva. A diferença entre França e Inglaterra está apenas no glamour financeiro, nada mais. Os orçamentos, em média, talvez sejam de 20 milhões, e em Inglaterra são de 40 ou 50. A diferença é essa, porque a competitividade da Liga é fortíssima.

É também um futebol diferente do português, muito físico…

Pelas caraterísticas do jogador. França tem aquela parte africana, não só quanto aos jogadores que vêm, como também àqueles que nascem já no país. O jogador africano traz ao futebol um cariz de velocidade e contacto físico diferente, naturalmente. Se há uma caraterística da CAN, é a vertente física, não só nos duelos, como também na velocidade, na intensidade e na agressividade dos lances. E atenção que os árbitros franceses não são os árbitros ingleses, se não isso podia ser exponenciado, e talvez fosse ainda mais interessante.

Já leva vários anos em França. Porquê essa ligação com o país?

Gostei do país e da Liga, que é competitiva. Depois tem a ver com fatores profissionais e familiares, porque a minha família adaptou-se muito bem. Vivo em Paris há cinco anos, mas o ponto número 1 é a parte profissional, porque o campeonato é interessante. Veja que, quando um treinador está nas melhores Ligas europeias, está sempre desafiado. Tem que pensar diariamente que tem que acrescentar alguma coisa de novo, melhor ou diferente. Estás a competir com os melhores, seja na primeira ou na segunda divisão francesas. Os três, quatro ou cinco melhores clubes da Ligue 2 têm treinadores que vieram da Ligue 1. Não é um acaso. Financeiramente, vieram ganhar melhor do que ganhavam na Ligue 1, o que também acontece no Championship. Esse desafio de estar entre os melhores é bom, mas obriga-nos a um trabalho diário para nos superarmos. Sou ambicioso a esse ponto, gosto de estar onde sou desafiado.

Sente-se um treinador reconhecido em França?

Treinadores reconhecidos somos quando ganhamos [risos]. Muitas vezes, diz-se que os franceses não reconhecem os treinadores estrangeiros, e a verdade é que não há muitos. Quando comecei a época, era o único treinador estrangeiro na Ligue 2. Na Ligue 1 há alguns. Há dois portugueses, o Tuchel… No meu primeiro ano em França, pelo resultado que tive com o Red Star, fui nomeado para treinador do ano. Não do mês, mas neste caso da época inteira, mas acabou por ganhar o Dall’Oglio, que sobe de divisão com o Dijon. Não posso dizer nada em relação a isso. Fui reconhecido. O melhor reconhecimento que pude ter foi o facto de ter sido procurado por clubes após o Red Star. Vou ao Bastia, vou ao Troyes, e no verão passado alguns clubes franceses procuraram-me e acabei por decidir pelo Caen. Tem a ver com o trabalho que fiz, nada mais.

O facto de parte significativa dos treinadores estrangeiros que trabalham em França serem portugueses é uma coincidência ou algo mais?

É um reconhecimento da nossa competência, sem dúvida nenhuma. Se não me engano, ainda sou o terceiro treinador português com mais jogos em França, a seguir ao Artur Jorge e ao Leonardo [Jardim]. Está lá o André [Villas-Boas] neste momento, a fazer um excelente trabalho, assim como o Paulo [Sousa], que está na segunda época. A nossa permanência em campeonatos é sempre reconhecimento de competência, porque se não tivermos resultados as pessoas não nos procuram.Em França, os castigos são muito pesados. Se é expulso, a multa não é de 500 euros, é de 5, 10 ou 15 mil

Para quem não tem acompanhado, como é que descreveria uma equipa treinada pelo Rui Almeida?

Uma vez ouvi uma frase deliciosa do Klopp, que dizia que o melhor modelo de jogo que um treinador pode ter é aquele que leva um adepto a sair do estádio com a vontade de que a semana passe rapidamente para voltar no próximo jogo. Não tem só a ver com resultados. Na segunda época no Troyes, houve uma altura em que perdi um jogo e depois tive oito vitórias consecutivas, o que também está relacionado com a paixão do público. Se tenho feito isso em Inglaterra, aquilo explodia [risos]. Sou ambicioso, mas também sou muito versátil. Não me importo de alterar algumas ideias. Por exemplo, no Red Star tive que me adaptar um bocadinho aos jogadores que tinha disponíveis. No Troyes já foi diferente, porque consegui ir buscar jogadores para as minhas próprias ideias. Sou um treinador que, sempre que pode, é ofensivo, que quer comandar o jogo. Lembro-me que, quando estava no Red Star, o Carlos Freitas, que era diretor desportivo do Metz, disse-me ‘Fogo, a tua equipa é chatinha, chatinha, chatinha’. E era o Red Star, uma equipa muito mais pequena, que acabou a um ponto do Metz. Isso tem-se expressado em equipas que ficam entre as menos batidas, com mais golos… Tenho a ousadia de, por vezes com pouca coisa, fazer mais.

Costuma sentir saudades do futebol português?

Gosto muito do meu país, naturalmente. Estou há dez anos fora, tirando as passagens pelo Sporting e pelo Sporting de Braga. Gosto muito de ver o futebol português. Acompanho semanalmente, apesar de, muitas vezes, não o conseguir fazer quando estou a trabalhar. Agora que estou parado vejo mais. Sou um apaixonado pelo futebol, e o futebol português faz parte da minha vida. Isto como português. Como profissional, aproveito este tempo para ver mais outros campeonatos que estejam um bocadinho fora do meu raio de ação. Falo de campeonatos europeus menos conhecidos, gosto de ver porque muitas vezes descobre-se outras coisas.

Diz-se que o futebol português, por vezes, é demasiado defensivo, com muito anti-jogo…

Em França, há regras que são claras. Fui treinador em Portugal, principal e adjunto, e a forma como se fala com um árbitro em França é muito diferente da forma como se fala cá. Em França, os castigos são muito pesados. Se é expulso, a multa não é de 500 euros, é de 5, 10 ou 15 mil. Vários treinadores já foram suspensos por dois ou três meses. Isso é para as pessoas competentes analisarem. Como estive noutros países no mundo inteiro, é minha obrigação adaptar-me ao sítio onde estou. Foco-me no que controlo, e se há coisa que não controlamos é os árbitros.

Enquanto treinador, o campeonato português é-lhe apetecível?

Sim, claro. O português, o espanhol, o italiano, o alemão, o inglês… Todos aqueles onde não estou [risos].

Tem alguma equipa de sonho?

É uma daquelas perguntas em que ficamos a pensar… Gostaria de treinar como principal as equipas em que estive como adjunto, portanto seria o Sporting de Braga e o Sporting. Será um percurso que será feito. Ainda me sinto muito novo.

Notícias ao Minuto© Global Imagens

No Sporting, tínhamos Rinaudo, Van Wolfswinkel e Rui Patrício com maturidade. A equipa de hoje em dia tem MathieuCoates, Bruno Fernandes… Nós não tínhamos nenhum Bruno Fernandes

A última experiência em Portugal foi no Sporting de Braga. Que balanço faz?

É um clube ambicioso, e tem-se visto. O presidente continua a procurar, acima de tudo, títulos. É um clube que está estruturado, ainda por cima com a nova academia. O Sporting de Braga tem todas as condições para se aproximar do topo. O clube cresce também com as massas e com os adeptos, mas vejo um Sporting de Braga ambicioso, com as caraterísticas próprias do seu presidente.

Diz-se que, por vezes, não é um presidente fácil de se trabalhar…

Trabalhei com muitos presidentes… Acima de tudo, os presidentes lutam sempre pelo melhor para os seus clubes. São apaixonados. Eu apanhei um ano muito giro no Sporting de Braga. Entramos no ano em que está num ciclo de renovação, que é o fim da era de Jorge Jesus, em que saem quase todos os jogadores e fica o Alan, numa fase mais terminal da carreira, o Custódio, e nós vamos buscar o Eduardo novamente. Toda a estrutura forte tinha saído, e chega o Rafa, o Pardo, o Santos… Uma série de miúdos novos, para aprender. O presidente traz o professor [Jesualdo Ferreira] exatamente para isso, para construir uma nova equipa, tanto que essa equipa depois jogou dois ou três anos consecutivos. Foi um ano muito diferente, de renovação.

Olhando para o presente, surpreendeu-o esta entrada vitoriosa do Rúben Amorim?

Os treinadores são muito o resultado, mas tem todo o mérito. Nós, os treinadores, temos também de aproveitar para tirar um bocadinho do mérito das vitórias, e o Rúben tem que ter o mérito destas vitórias.

Antes do Sporting de Braga, esteve no Sporting, naquela fatídica temporada do sétimo lugar…

As pessoas esqueceram-se de que, quando entrámos, o Sporting estava um lugar acima da descida de divisão. O professor, que foi três vezes campeão no FC Porto e foi para fora, aceitar vir para o Sporting naquelas condições, foi um desafio. Tinha-me juntado ao professor no Panathinaikos, estávamos muito bem, e ele aceitou o desafio do Sporting. É um clube apaixonante, ninguém pode recusar o Sporting, compreendo o professor. Foi um desafio muito grande. Era uma situação talvez idêntica à de agora. A Juventude Leonina, por exemplo, não assistia aos jogos na altura. Tudo o que estava à volta era um pouco confuso, e nós fizemos aquela recuperação. Infelizmente, não conseguimos chegar à Europa porque havia um super Paços de Ferreira. Viemos de uma trajetória muito difícil. Foi um ano em que lançámos miúdos de 17, 18 anos, como Bruma, Eric Dier, Tiago Ilori, Zezinho, João Mário, Marcos Rojo, Cédric… O Adrien, que nem jogava. Foi um ano possível num ano difícil do Sporting.

Vê que Silas tenha, neste momento, matéria-prima para trabalhar como essa?

É um grupo diferente. O nosso grupo era muito jovem, muito giro. Sinceramente, deu-me um gozo enorme trabalhar com aquele grupo. Tivemos que recorrer à equipa B para reconstruir. Tínhamos o Fito Rinaudo, o Van Wolfswinkel e o Rui [Patrício] na baliza. Com verdadeiramente alguma maturidade, eram os três jogadores que tínhamos. Construímos à equipa à volta desses três jogadores. A equipa de hoje em dia tem Mathieu, Coates, Bruno Fernandes… Nós não tínhamos nenhum Bruno Fernandes [risos]. Tenho ouvido que o Benfica está num patamar diferente, e sim, concordo. Esse é que é o problema.

Como tem visto o trabalho de Silas?

Mais do que falar do Silas, do Lage, do Sérgio ou do Rúben, somos sempre avaliados pelos resultados. Nunca devemos arranjar explicações. Vivemos de resultados, e será isso que vai valer no final da época. O que me diz a mim, e os números são claros, é que a época do Benfica, até agora, tem sido fantástica. Quando jogas 17 jogos e ganhas 16…

Quando começámos na altura, o Benfica estava um caos. Tanto jogávamos em cima, no pelado, como no campo 2 ou no campo 3, onde se jogava rugby às vezes

Falámos de Silas e falámos de Rúben Amorim. Nenhum dos dois tem o nível exigido para treinar na I Liga. O curso de treinador é assim tão importante?

São coisas completamente diferentes. Uma coisa é a formação que qualquer profissional deve ter em qualquer área, o que é normal, seja para um jornalista, para um médico ou para um treinador de futebol. Outra coisa é as entidades competentes colocarem leis para isso. Estou um bocadinho à vontade porque, em 2000, estive ligado aos cursos de treinadores. Era eu que geria essa parte. Ainda outro assunto é a parte da adição pessoal do conhecimento. Qualquer um de nós, independentemente da nossa origem, só cresce e aprende com conhecimento, e o conhecimento também pode vir da nossa certificação profissional. França, nesse aspeto, é pragmática. Há uma lei que obriga cada equipa a ter um treinador diplomado, e se não o tem, ao final de um ou dois jogos paga uma multa de 25 mil euros por jogo. A questão é que a lei é clara e aplica-se.

Mas Silas já disse que, em Portugal, não é propriamente fácil tirar o curso…

Não vou discutir esse ponto, deixo para as entidades. Tudo na nossa vida tem um preço. A formação tem um preço, temos que lá estar dois anos, três, cinco para tirar o mestrado… A pessoa tem que se sentar e ficar lá. Penso que as normas têm de ser aplicadas, nada mais do que isso. Nem pode haver polémica em relação a isso, é uma questão de certificação. Mas claro que isso tem que ser exequível.

Passou pela formação do Benfica. Na altura já havia sinais de que poderia haver esta ‘explosão’ de jogadores a sair do Seixal?

Tenho 50 anos, passei lá no final dos anos 90… O Benfica é clube grande há muitos anos. O que posso dizer é que contribuí um bocadinho. Quando começámos na altura, o Benfica estava um caos. Tanto jogávamos em cima, no pelado, como no campo 2 ou no campo 3, onde se jogava rugby às vezes. Foi aí o início das escolas do Benfica, que depois se espalharam pelo país inteiro Arrancámos ali, com o professor Mário Costa, com o Nené e mais duas ou três pessoas. Trabalho lá dois ou três anos e depois sigo com a minha vida, no futebol profissional.

Consegue apontar o principal responsável por esta aposta?

É público… Para mim, que estou de fora, o principal responsável é o presidente. Ninguém pode dizer outra coisa. O sonho e a visão é dele. A obra que está lá é dele.

De todos estes jovens que têm saído, qual foi o que mais o encantou?

Está-me a pedir para me meter em trabalhos… [risos]. Sou suspeito, mas vou dizer, sem problema nenhum, que gosto muito do Bernardo [Silva]. Sou um fã do Bernardo, gosto muito daquele tipo de jogador.

Notícias ao Minuto© Getty Images

Quando cheguei já o exército estava nas ruas de Paris, nunca deixou de estar. Isto para dizer que sim, é diferente, mas vivi de forma absolutamente normal em Damasco

Falando agora da experiência no estrangeiro. Como é que surgiu o convite da Síria?

É daquelas coisas inesperadas do futebol. Partiu da mesma pessoa, do professor Mário Costa, que já me tinha levado para o Benfica. A minha vida encadeia-se assim, talvez por as pessoas acharem que, quando faço as coisas, faço-as com o coração e vou até ao fim. Estive de alma e coração no Benfica. Quando saio, mantemos contacto, até que um dia o professor Mário Costa liga-me e diz que conhece uma pessoa que procurava um selecionador nacional para a Síria. Eu que mal sabia onde era a Síria [risos]. O futebol é um bocadinho assim, fazem-se as perguntas e, 48 horas depois, viaja-se.

Que balanço faz dessa experiência?

A Síria foi uma experiência do ponto de vista pessoal, social e também familiar, porque a minha família ficou cá, naturalmente. Até porque coincidiu com um momento difícil. Eu saio e, no mesmo dia, morre o meu sogro. E também foi uma experiência muito engraçada do ponto de vista profissional. Por vezes, olha-se para o futebol da Síria como longínquo, o que é verdade, mas há coisas que nos fazem sentido. Eu chego, passados alguns meses arranca aquela situação da Síria, e eu decido ficar até onde pudesse ir do ponto de vista do objetivo, que era a qualificação para os Jogos Olímpicos de Londres. Chegámos ao playoff final, com o Omã e o Uzbequistão, e não conseguimos a qualificação.

O choque cultural foi muito grande?

Foi o primeiro. Acho que isso ensinou-me para os resto dos anos que terei como treinador e pessoa que, indo para o estrangeiro, tenho que compreender a cultura, a sociedade e a religião do sítio para onde vou. Compreender que, se queres mudar alguma coisa, não podes mudar tudo ao mesmo tempo, não dá. Vai devagarinho, respeitando tudo, e só depois colocar o cunho pessoal. É para isso que te contratam, mas tens que respeitar. Tive que me adaptar a isso tudo, mas isso fez-me crescer como homem.

Quando se pensa em Síria, pensa-se num clima de guerra. Sentiu isso na pele?

Vou-lhe responder a isso com uma coisa interessante. Estou em França e surgem os atentados [de 2015]. As famílias falavam comigo, perguntavam se estava tudo bem, e eu dizia que ali não havia guerra. Foi grave, mas não há guerra em Paris. ‘Ah, mas vimos imagens do exército na rua...’. Sim, mas quando cheguei já o exército estava nas ruas de Paris, nunca deixou de estar. Isto para dizer que sim, é diferente, mas eu vivi de forma absolutamente normal em Damasco. É uma cidade deliciosa. Levei a minha família, a minha filha na altura tinha sete anos, e tudo tranquilo. Talvez tenha sido a cidade mais tranquila em que estive. Dizia-lhe ‘Caminhem onde quiserem’. Nenhuma pessoa tocava numa mulher estrangeira. Impossível.

O mundo desportivo distancia-se desse tipo de questões?

O mundo desportivo é muito apaixonante. Os sírios são completamente fanáticos pelo futebol.

É um escape?

É um escape, mas não não é só ali, é em todo o Médio Oriente. Se vai num dia em que haja um Real Madrid-Barcelona, parece que está em Madrid ou Barcelona, porque parece que levam o jogo para ali. É uma paixão pelo futebol, pelo ídolo, pelo Messi, pelo Cristiano [Ronaldo]… Tive um jogo com o Iraque no estádio Abbasiyyin, em Damasco, que tem capacidade para 60 mil pessoas, mas talvez estivessem lá 90 mil. Não vale a pena querer alterar nada daquilo, eles são assim. Fomos campeões no Zamalek, abrimos o treino e estavam lá 40 mil pessoas, então não houve treino. Isto para dizer que não podemos fazer comparações. Estou com o chip francês, numa Liga altamente profissional em tudo, com flash interviews obrigatórias, marcadas ao minuto, muitas vezes até ao intervalo… Tudo ao segundo. Lá [no Médio Oriente], se o jogo começar dez minutos depois, também não é grave. Mas lá o futebol é muito sério. Eles querem ganhar, são muito exigentes. Por exemplo, se estás na Síria e vai jogar com o Iraque ou o Irão, são verdadeiros adversários, não podes perder, esquece isso. O Irão tem uma super equipa, e não convém perder contra eles. Fiquei lá tanto tempo porque eles são ambiciosos.

Mas vê na Síria potencial para crescer no futebol?

Sim. Agora não estou por dentro do país, mas sei que os miúdos que estavam comigo são agora a base da seleção principal, e estão muito bem na qualificação para o Mundial. Têm 28, 29 anos e estão maduros. O jogador sírio, fisiologicamente, é como o jogador iraquiano e iraniano. Robusto, fisicamente muito forte, agressivo. Claro que lhes falta outras coisas, é por isso que nos levam para lá.

Dizia que aprendeu que tem que se preparar para o choque cultural e não só. Houve algum episódio que o tenha marcado nesse sentido?

Eu fui um bocadinho preparado. Tenho um primo que foi embaixador, e tivemos algumas conversas em que ele me avisou para algumas coisas. Não fui despreparado, mas é uma coisa própria minha. Normalmente, faço o trabalho de casa quando vou para fora. Sabia que havia algumas restrições, mas claro que há coisas caricatas. Das coisas que mais me deliciaram foi quando me disse para os pôr à vontade em relação às orações e para organizar os treinos em função disso. Vê-los a fazer a oração no meio do campo de futebol, a colocar o tapete e a rezar para onde querem sem ter que ir à mesquita, é uma coisa deliciosa. Uma coisa é contar, outra é ver aquilo à frente [risos]. É impensável isso acontecer na Europa, não existe. Mas faz parte da aceitação. Chegar lá e querer mudar isso tudo? Não é fácil, vais lutar contra o mundo, e não vais ser mais forte.

Também esteve no Panathinaikos, onde voltou a viver esses ambientes ‘escaldantes’…

Na Grécia, há vários dérbis sem adeptos adversários. Num Panathinaikos-Olympiacos, não há adeptos adversários… Naquelas claques os pirotécnicos são um bocadinho mais agressivos.

Jesualdo Ferreira falava com o Rafa com 18 anos da mesma forma que falava com o Katsouranis

Foi aí o seu primeiro contacto com Jesualdo Ferreira?

Como adjunto, sim. Já o conhecia há muitos anos. Sempre conheci o professor como professor [risos]. O nome assenta-lhe bem, porque é um treinador que ensina. A equipa do Panathinaikos tinha o Katsouranis, já com 32 ou 33 anos, Karagounis, Seitaridis… E o professor ensina igualzinho. Apoios, receção orientada… Igualzinho à forma como ensinava o João Mário com 18 anos. Falava com o Rafa com 18 anos da mesma forma que falava com o Katsouranis. Para mim, foi uma delícia. Só foi pena não ter chegado mais cedo.

Surpreendeu-o que tenha aceite o convite do Santos com 73 anos?

Não, nada. É a cara do professor. É um guerreiro. Sabemos o desafio que é uma pessoa de 73 anos ir para um campeonato dessa agressividade, seja no Brasil, em França, em Portugal… Se o professor estivesse no Benfica, no Sporting ou no FC Porto com esta idade, seria o mesmo que estar no Santos. A única diferença é que viajava menos de avião. A dificuldade ia ser a mesma. Vai ter de conhecer uma realidade nova, jogadores novos, mas tem uma equipa técnica para o ajudar com isso.

De todas as experiências que teve no estrangeiro, qual o marcou mais?

França, claramente. Não por ser a última, mas por estar no topo das Ligas. Podia estar em Inglaterra, Alemanha ou Espanha, mas estamos a falar de França, campeã do mundo. Estou no país dos campeões do mundo.

E a mais complicada?

O desafio mais intenso foi o da Córsega, do Bastia. Foi muito intenso.

E agora, o que se segue na carreira do Rui Almeida? Sabemos que foi abordado pelo Al-Taawon, por exemplo…

São coisas entre agentes. Eu concentro-me naquilo que posso controlar, e a única coisa que controlo é ser competente no que faço. Neste momento, é possível continuar em França, mas é também possível ir para outros países.

Vê-se a regressar a Portugal num futuro próximo?

Portugal, para mim, é sempre possível. É muito mais difícil para um português adaptar-se a um campeonato como o francês do que voltar a Portugal. É a minha língua, a minha cultura… Portugal faz todo o sentido se aparecer aquilo que acho ser certo para alguém que fez quase 150 jogos em França. Vir para Portugal só para vir não faz sentido nenhum. Tem que ser por um desafio profissional, porque financeiro, por certo, não irá ser.

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