"Esperemos que Miguel Oliveira não tenha de morrer para ser manchete"

O aviso surge da boca de Paulo Marques, amigo próximo, antigo piloto e responsável por ter levado Paulo Gonçalves ao seu primeiro Dakar, em 2006.

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© Reuters

Ricardo Santos Fernandes
20/01/2020 08:32 ‧ 20/01/2020 por Ricardo Santos Fernandes

Desporto

Paulo Marques

Portugal acordou em sobressalto na manhã do dia de 12 janeiro, após receber a 'notificação' de que Paulo Gonçalves tinha morrido em prova, no decorrer da sétima etapa do Dakar de 2020. 

O "Speedy" Gonçalves abandonou-nos aos 40 anos, motivando reações nos quatro cantos do mundo. O homem que conduziu por mais do que uma vez o nome de um país ao esplendor, com o feito de maior relevo a suceder em 2015, depois de arrecadar o segundo lugar no Dakar.

Considerado por muitos a prova mais perigosa para qualquer motociclista, o Desporto ao Minuto partiu para a conversa com Paulo Marques, amigo próximo, antigo piloto e responsável por ter levado Paulo Gonçalves ao seu primeiro Dakar, em 2006. 

Entre alguns avisos à comunicação social, o legado deixado e as condecorações fora de tempo, Paulo Marques recorda ainda a história da construção de uma moto que foi o primeiro passo para testar a força de um homem que era muito mais do que um piloto. 

Começo por perguntar quais as memórias que guarda do Paulo Gonçalves, que leva ao Dakar de 2006, e a quota de responsabilidade que atribuiu a si mesmo pelo motociclista que ajudou a construir?

O Paulo já era um grande desportista e um enorme piloto antes de eu estar ao serviço da Honda Moto RPM, da qual era diretor desportivo e antes disso motociclista durante vários anos. O Paulo quando aparece já tinha pilotado uma Honda a nível oficial, mas a nível do motocross, no início dos anos 90, onde foi várias vezes campeão nacional e somou grandes resultados a nível internacional. No início dos anos 2000, o Paulo começou a dedicar-se ao Enduro e mais tarde vem então a abraçar um projeto no qual estava envolvido.

No ano de 2005 foi-se falando da possibilidade de ele participar no Dakar de 2006 e tínhamos a certeza de que ele tinha todas as aptidões para abraçar um torneio dessa envergadura. Bate porta aqui, bate porta ali, lá conseguimos alinhavar a sua participação no Dakar desse ano. A moto foi cedida pela Honda Portugal, sendo que compramos umas peças a uma anterior equipa espanhola que tinha participado no Dakar do ano anterior, para depois montar essa mesma moto. O Paulo era assistido pelo meu ex-mecânico, o Augusto.

Uma prova com alguns percalços à mistura...

Fez um excelente desempenho, apesar dos azares e as vicissitudes que ele passou. Chegou a partir o volante, acabando uma das etapas com a moto desmanchada, mas o mais importante tinha conseguido: terminar a prova mais difícil a nível mundial. Desde aí notámos a sua enorme tenacidade e a vontade de levar o projeto até ao fim. O grande objetivo de um piloto que participa pela primeira vez é terminar a prova, sem pensar em qualquer tipo de resultado. O Paulo a partir daí estava mais do que lançado para fazer uma carreira em sentido ascendente e assim foi. Ele veio a ingressar uma equipa internacional durante dois anos na Alemanha, mas, entretanto, numa equipa portuguesa, com a Honda CR450, também conseguiu somar excelente resultados, com todos a assistirem à construção notória de um piloto de ralis.

E essa construção colhe os seus frutos em 2015 quando ele atinge o ponto máximo da carreira: o segundo lugar no Rally Dakar. É possível dizer que com 40 anos, o Paulo Gonçalves ainda tinha muito a almejar?

As capacidades físicas de um piloto de motos são testadas nos picos máximos de esforço e portanto o Paulo, pese embora tivesse 40 anos, tinha uma frescura de um piloto de 27. O Dakar, efetivamente, não é uma prova com participantes muito jovens. Quem discute as vitórias são pilotos já com bastante experiência, nesta ou noutra modalidade de motociclismo. Uma das grandes tarefas do Dakar, independentemente de ser um piloto rápido, é ter um bom poder de navegação. E isso só se aprende com a experiência, afinal não é algo que venha nem nos livros, nem na Internet. E, dessa forma, é preciso um piloto, entre cinco a dez anos, praticar e fazer ralis em todo o mundo e nas mais variadas superfícies de ralis. E, efetivamente, o Paulo tinha essa experiência. É óbvio que o momento do Paulo foi em 2015, quando atingiu o segundo lugar do Dakar, falhando por muito pouco essa conquista. Lembro-me de, numa outra edição, ter ficado em quarto e, por culpa de uma penalização, não ter conseguido lutar pelo triunfo nas etapas finais. Penso que agora o Paulo não teria condições de lutar pela vitória num torneio como este, mas uma coisa é certa: se algum adversário quebrasse a barreira, o Paulo estava lá para espreitar algo mais. E para ganhar seja o que for é preciso estar lá e, mesmo com 40 anos, tinha contrato ainda válido até ao próximo ano. O Paulo nos últimos anos sofreu várias mazelas, várias quedas, várias fraturas, e o corpo já começava a dar de si. Nós, motociclistas, com o calvário das lesões, vamos começando a sentir o corpo a latejar. Afinal, também é preciso ver que não há pilotos de motos a ganhar rallies Dakar aos 50 anos.

Notícias ao Minuto[Paulo Gonçalves em ação no Dakar de 2015]© dr

Qual é o legado que o Paulo Gonçalves deixa para os mais jovens?

O Paulo Gonçalves tinha uma caraterística sobejamente conhecida: nunca desistir, pese embora todas as adversidades que lhe foram acontecendo ao longo da carreira, nomeadamente as lesões na coluna cervical durante provas de Enduro, que geralmente geram alguma preocupação. Aliás, o Paulo Gonçalves, no início dos anos 2000, chegou a abandonar as provas de motocross e, nessa altura, passou por uma fase menos boa, todavia conseguiu dar a volta e construir a carreira que todos conhecemos. Lutou taco a taco com os nomes mais conhecidos da modalidade e o legado que nos deixa é um legado de amizade e de entrega. Uma pessoa que se entregava a todas as causas.

Falou de amizade e o Paulo sempre foi conhecido pela sua vertente humana. Um homem que, por mais do que uma vez, ajudou vários companheiros em prova, em detrimento de qualquer resultado…

Sem dúvida nenhuma. Foi bastante notório o desalento na caravana do Dakar. Não era só por um piloto conhecido ter perdido a vida, as pessoas estavam destroçadas pelo amigo que estavam a perder naquele dia. Independentemente da cor, da marca ou do tipo de pessoa, fosse nas motos ou nos carros, todos sentiram a tristeza na pele. Isso aconteceu porque o Paulo era uma pessoa querida por todos, o Paulo tinha o espírito lusitano, um espírito lutador. O Paulo olhava para os objetivos de frente, mas também tinha o aspeto humano. O Paulo representava muito bem a nossa Nação e era um porta estandarte do nosso país. Falamos de uma perda para todos os desportistas em geral. No final do Dakar vimos o Rúben Faria, líder de uma equipa concorrente à do Paulo, a não conseguir saborear a vitória alcançada pela Honda, na variante de motos, por culpa da tragédia que tinha acontecido. Isto diz muito do que significa uma perda como esta, comparativamente a um grande resultado na maior prova do mundo.

As distinções que o Paulo Gonçalves está a receber agora, depois de morto, não acabam por pecar por tardias?

Bom, algumas coisas surgem depois de as pessoas se debruçarem sobre elas. Ao longo dos anos em que participamos neste tipo de provas chegamos à conclusão de que é preciso uma tragédia para se falar do Dakar. E, efetivamente, foi preciso morrer o Paulo Gonçalves para se falar do Dakar. Convenhamos que a imprensa em geral tem um desporto-rei e tudo o resto está muito esquecido em Portugal. É duro dizê-lo desta forma, mas é a realidade. Não vou dizer que nalguma ocasião não se faça o devido destaque de um determinado resultado, mas não seguir uma prova a nível internacional, quando temos pilotos a lutar nas variantes mais importantes, e não ver quase nenhum destaque, nem da televisão pública, chegamos à conclusão de que o trabalho de alguns profissionais da comunicação não está a ser bem feito. Outrora, na década de 90, tínhamos canais a acompanhar o Dakar e a fazer reportagens diárias, hoje o oásis de notícias é grande e isso merece uma enorme reflexão. O fluxo de notícias não pode aumentar apenas porque ocorreu uma fatalidade. Nós, portugueses, somos apaixonados pelo automobilismo e pelas motos, aliás temos algumas das melhores provas a nível mundial a serem realizadas cá. Quando o Dakar deixou de começar em Portugal e passou para a América do Sul, assistimos a uma mudança drástica dos meios de comunicação social e, atualmente, para acompanhar uma prova lá fora apenas pela Internet.

Ao encontro daquilo que o Paulo Marques está a dizer vão as declarações de Miguel Oliveira, que dizia e passo a citar: “Entristece-me ter visto Paulo Gonçalves ser capa de jornal. Deem apoio e deem esse reconhecimento enquanto nós cá estamos”.

Porque, como eu lhe disse, nós temos alguma escola em Portugal em determinadas modalidades, como acontece no futebol. No desporto motorizado ainda não estamos nesse patamar, mas temos um bom campeonato nacional de Enduro, um bom campeonato nacional de Baja que permite preparar os pilotos, apesar de em Portugal não se fazerem rallies, e fazerem-se Bajas com extensões mais pequenas. Agora a cobertura e o apoio que existe para esses pilotos é muito pouco. Muitas das vezes pilotos reputados precisam da ajuda de amigos para participar nas provas, apesar de termos uma escola com provas de calibre internacional, como a Baja de Portalegre ou a Baja Vodafone, que permite preparar pilotos para andar em terreno aberto. Temos países como França que não têm Bajas, Espanha e Itália têm uma ou outra. O que é certo é que Portugal tem pilotos com características para lutarem pelos melhores resultados na prova mais difícil de todo-o-terreno que é o Dakar. Assim como somos craques do futsal e do hóquei, que ainda vão sendo falados, noutras modalidades há um esquecimento quase total. Felizmente que no desporto motorizado o Miguel Oliveira ainda vai falando destas coisas e esperemos que ele seja capaz de levar o nome de Portugal bem longe lá fora. Guardemos a esperança que o Miguel Oliveira seja muitas vezes capa de jornal sem precisar de morrer, para que tenha esse mediatismo na imprensa desportiva. É preciso realmente defender os interesses dos nossos melhores atletas, porque eles são muitas das vezes heróis nacionais. Nós gostamos de ter uma identidade, alguém que nos leve longe e faça sonhar. O Paulo fazia-nos sonhar, o Miguel Oliveira faz-nos sonhar, como outros pilotos poderão fazer.

Deixando a componente mediática de lado e virando agulhas novamente para o Dakar. Quantas vezes passa o pior pensamento pela cabeça de um piloto antes do começo de cada etapa?

Sempre que há uma lesão grave o piloto acaba por pensar duas vezes se vale a pena prosseguir e se será a altura certa de parar, normalmente assim acontece, mas quem corre por gosto não cansa. Quando se é piloto, somos pilotos para sempre. Não há qualquer piloto no Dakar que não goste desta modalidade. Todos sabem que vão ter de sofrer, porque a exigência física e mecânica é enorme, assim como a exigência financeira. É uma verdadeira maratona arranjar condições para competir no Dakar e como tal o piloto coloca-se a jeito, com melhor ou pior preparação de sofrer das vicissitudes desta prova que é realmente perigosa. Mas quantas modalidades não são perigosas, se os pilotos não afinarem as máquinas nas melhores condições? Há ralis efetivamente perigosos, a Fórmula 1 também é perigosa se tivermos em conta as velocidades que são atingidas. Parece tudo muito seguro, mas quando se despistam questionamos, e muito, as condições de segurança. Temos o exemplo da morte do Ayrton Senna que nunca será esquecida. Na minha época vários pilotos morreram no decorrer de ralis, agora sucedeu a morte do Paulo Gonçalves que certamente vai cortar muitas aspirações de jovens portugueses, mas o tempo será capaz de sarar esta ferida. Vai doer-nos bastante. O Paulo estava em final de carreira, com um palmarés bem recheado, infelizmente não conseguiu conquistar o Dakar, mas não é por isso que deixa de ser o piloto que foi. Tinha uma família por cuidar, uma vida ainda pela frente, um golpe duro para um país, sobretudo para uma região [Esposende] para quem era um porta-estandarte.

Não gostava de terminar esta entrevista, até sabendo da relação próxima que tinha com Paulo Gonçalves, sem me contar uma história daquelas que, muitas das vezes, ficam em off.

No primeiro Dakar do Paulo Gonçalves (em 2006) as dificuldades em arranjar uma moto para o Paulo foram tremendas. Percebemos que se não houvesse um grande esforço da nossa parte não seria possível leva-lo e foi graças a alguns contactos em Espanha que conseguimos arranjar a montagem para a moto. A moto que o Paulo levou ao Dakar em 2006 era oriunda de uma moto normalíssima, que se podia comprar em qualquer loja da Honda e, portanto, nós tivemos de arranjar a montagem à parte. A reconstrução da primeira moto do Paulo foi sem dúvida nenhuma uma história recambolesca, em que de compras em Vigo tivemos inclusive de pedir ajuda ao mecânico para fazer peças à mão. A primeira moto é resultado de um esforço financeiro enorme do Paulo e de todos os que investiram numa primeira participação, que acaba sempre por ser de incógnita e de algum risco. Apesar da queda violenta que registou nessa prova, em que partiu as varas de todo o guiador, andando depois mais de 200km com a moto naquelas condições, conseguiu chegar ao fim. Só um piloto como o Paulo podia almejar aquele resultado. Nunca mais me vou esquecer de olhar para a cara dele e ver o rosto de um homem estoirado, faminto, mas feliz por ter chegado ao fim com o dever cumprido. Ele ter ultrapassado esta barreira foi a tradução perfeita daquilo que podíamos esperar do Paulo dali para a frente. Um sinal de um homem que não estava preparado para desistir e que apesar de nos ter deixado nunca vai sair das nossas mentes, por ter sido um porta-estandarte nacional ao longo de vários anos.

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