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"Fui campeão do mundo e a notícia nem apareceu nos jornais"

Nesta quarta-feira conheça um pouco mais do homem, mas também judoca, de seu nome João Neves. A entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto retrata a vida de um atleta que chegou ao cume da montanha, com muita pouca visibilidade. Dos Jogos Olímpicos de Los Angeles a campeão do mundo de veteranos. Eis um caminho de glória percorrido na sombra dos holofotes.

Portugal conquistou apenas uma medalha nos últimos Jogos Olímpicos (2016), que tiveram lugar no Rio de Janeiro. O judo elevou o nome de um país ao seu patamar mais alto na cidade carioca, todavia o bronze de Telma Monteiro foi uma página de felicidade, num livro que está sistematicamente a ser esquecido.

“Nos últimos Jogos Olímpicos a única medalha que existiu foi de judo, mas a visibilidade não existe e a comunicação social tem a sua quota parte de responsabilidade”. Sabe quem é João Neves? Provavelmente pelo nome não chega lá. Em outubro de 2018, sagrou-se Campeão do Mundo de judo de veteranos, no México.

“A notícia nem sequer apareceu num pequeno quadrado de jornal”. Atualmente com 55 anos, João Neves participou nos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984), sagrou-se campeão nacional de forma individual por cinco vezes, e por equipas outras tantas. A carreira podia ainda ser mais dourada, mas Portugal não ajudou. "Em termos desportivos lamento ter nascido no meu país. Noutro país, e com outro tipo de apoios, teria tido outros resultados".

Quando é que descobriu que o judo deixaria de ser um hobby para se tornar no caminho principal da sua vida?

Comecei a fazer judo com seis anos e nunca mais larguei a modalidade. Tenho quase 50 anos de judo e nunca mais abandonei a modalidade, apesar de ter experimentado outras pelo caminho, entre as quais futebol e voleibol. Mas o judo permite-me que tome as minhas decisões, sem precisar da ajuda de outrem. Não estou dependente de mais ninguém, não preciso que ninguém me passe a bola. Se as coisas correrem mal, sou eu, sozinho, que vou ter de dar a volta por cima, e esse foi um dos dos desafios que mais me apaixonou desde pequeno. Depois foi um processo normal: comecei a ganhar as pequenas provas, a participar nos Europeus, nos Mundiais, ...

E sempre conseguiu conciliar a vertente desportiva com a académica?

A minha área académica é o marketing, apesar de nunca ter exercido. Depois de ser atleta, tornei-me treinador, e a minha vida sempre esteve ligada ao judo, todavia nunca abandonei os estudos.

Como é que o judo o moldou como ser humano?

As pessoas olham para o judo e veem essencialmente a vertente humana, mas o judo tem um código moral e de ética que faz parte da filosofia da modalidade. Eu tive um mestre japonês (kobayashi), que foi meu treinador, e me passou esse tipo de ensinamentos, fundamentais para o crescimento na modalidade. Desde o respeito pelos mais velhos até à pontualidade nos treinos.

O que contribuiu mais, então, para o desenvolvimento de um judoca: a parte física ou a mental?

As duas estão interligadas e têm a mesma preponderância. Essa componente moral é aplicada no treino. Sendo um desporto de contacto, eu estou a lutar com alguém, mas sei que não o posso magoar e tenho de o respeitar. Se eu estiver a treinar com um rapaz mais novo ou alguém mais velho, eu tenho de ter essa perceção e sei que não posso abusar, ou magoá-lo. Se estiver a treinar com alguém mais novo, sei que tenho de passar determinado tipo de ensinamentos. O tipo de dinâmica que se cria é bastante forte, talvez até mais forte do que nas modalidades coletivas.

Para chegar a cinturão negro é preciso ter um dom ou qualquer judoca pode atingir os patamares mais altos?

O dom tem de lá estar, sempre. Para ser considerado um fora de série tem de haver um dom, mas tem de existir muito trabalho. Isto é como quem tem boa voz, se não a trabalhar não vai sobressair-se sobre as demais. O dom precisa de ser desenvolvido.

E o João considera-se um fora de série?

Eu penso que tenho jeito, e depois trabalho muito.

Uma das páginas mais bonitas da sua vida foi a participação nos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Recorda-se do dia em que garantiu essa qualificação?

O atleta vive esse momento de uma forma natural, porque para chegar lá nós passámos por uma série de metas. Começámos por ser campeões nacionais, depois fizemos os mínimos em Europeus ou Mundiais. Mas falamos de uma alegria que foi sendo construída por metas, até chegar ao degrau final. Quem nos rodeia é que valoriza, e vive muito mais este momento. Eu trabalhei por esse objetivo e consegui chegar lá, mas relativizei a importância do momento.

Em termos desportivos lamento ter nascido no meu paísQual é a sua melhor herança de quase 50 anos de judo?

Hoje os meus melhores amigos são todos ex-alunos que tive, e isso é o que mais me enriquece. Uns melhores, outro piores, no que diz respeito à sua condição como atletas, mas todos grandes pessoas. E eu contribuí um pouco para isso, daí que não tenha tesouro maior na vida do que esse.

E qual é a pior página que leva da sua carreira?

As lesões. A pior foi antes dos Jogos Olímpicos de Seul, em que já tinha mínimos para participar, e uma semana antes do campeonato nacional parti três dedos da mão. Essa lesão não foi a grave, mas impossibilitou-me de ir a mais uns Jogos Olímpicos.

O João já frisou, por mais do que uma vez, a palavra “respeito”, todavia já presenciou ou viveu uma situação em que esse mandamento não imperou?

Não aconteceu comigo, nem tenho conhecimento de uma situação que tenha ocorrido à margem das leis dentro dos tapetes. Nunca vi nenhuma agressão em 50 anos. A preparação mental dos atletas é tão elevada, que esse tipo de situações não se origina.

O mais difícil é não haver reconhecimento

Alguma vez infringiu as regras para ganhar a um adversário?

Não. Pode jogar-se perto do limite, mas isso faz parte da tática. Não falamos de agressões, mas saber jogar com os parâmetros do combate. Como em qualquer desporto, aqui também existem perdas de tempo, também ocorrem simulações de lesões, mas isso é saber jogar com as regras.

Não me sentia capaz de continuar a competir e estar no mundo do judo sendo homossexual. O judo é um desporto de contacto e sentia que podia incomodar alguém”. De que forma as declarações de Marc Fortuny refletem um panorama real da modalidade?

Eu não me revejo nesse tipo de declarações. Penso que a questão de ser homossexual não interfere na prática da modalidade. O respeito que temos pelos nossos colegas existe sempre, independentemente da raça, do género, ou da orientação sexual. Os homens não treinam só com homens, mas também com outras mulheres. E existe contacto. A orientação sexual não interfere a progressão na carreira. Quem começa a fazer judo desde pequeno sente-se bem com o seu corpo, e habitua-se rapidamente ao contacto com os demais. Percebem desde cedo que é normal existir contacto com outros homens e mulheres.

O João tem 55 anos no cartão de cidadão, mas qual é o prazo de validade para competir ao mais alto nível?

O judo pode fazer-se até aos 90 anos e é isso que eu espero fazer.

Por algum momento pensou em desistir da carreira, por obstáculos financeiros?

Desistir da modalidade não, mas podia ter ido muito mais longe se houvesse outros apoios. Se quiséssemos competir em provas internacionais tínhamos de pagar com dinheiro vindo dos nossos bolsos. E tive de o fazer muitas vezes. Os meus pais sempre me apoiaram, e eles foram os meus patrocinadores enquanto fiz competição. Hoje em dia já é um pouco diferente, mas continuo com o mesmo problema. Para participar em Europeus ou Campeonatos do Mundo não há patrocínios. Nos últimos Jogos Olímpicos a única medalha que existiu foi de judo, mas a visibilidade não existe e a comunicação social tem a sua quota parte de responsabilidade.

Quanto dinheiro é preciso despender para participar num Europeu ou num Mundial?

Antes disso existe ainda um longo caminho a percorrer. Desde a parte do treino à nutrição, e isso tudo custa dinheiro. Depois temos os gastos com a viagem e a estadia. Para o último campeonato do Mundo, em outubro de 2018, no México, só consegui ir porque os meus amigos juntaram a verba necessária (a rondar os quatro mil euros), caso contrário não tinha ido.

Que verba lhe foi dada para ir aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984?

Nada. Tínhamos era tudo pago (viagens, alojamento e alimentação), com verbas disponibilizadas pelo Comité Olímpico. Tudo o resto éramos nós que dispensávamos.

Deve ser considerado normal defender as cores de um país, na mais alta competição desportiva, sem receber qualquer retorno financeiro?

O mais difícil é não haver reconhecimento. Se eu conseguir defender o meu país é um orgulho, e não vou esperar receber nada em troca por isso. Agora o que custa é não ter apoios para continuar uma carreira suportada em bons resultados.

O João lamenta ter nascido em Portugal?

Em termos desportivos lamento ter nascido no meu país. Noutro país, e com outro tipo de apoios, teria tido outros resultados.

Qual foi a capa que lhe faltou e se sentiu injustiçado por não a ter?

Mais presentemente foi agora em outubro de 2018, no México. Fui o primeiro campeão do mundo de veteranos no judo e a notícia nem apareceu num pequeno quadrado de jornal. E isto depois dificulta o crescimento e o contrato com novos patrocinadores, porque não existe visibilidade. Agora estamos a preparar o campeonato da Europa e não conseguimos arranjar patrocinadores, porque não há visibilidade.

Só se lembram do judo de quatro em quatro anos quando alguém se recorda e diz: ‘Este ano é de Jogos Olímpicos’?

Tristemente, essa é a mais pura das verdades.

Perguntas de resposta rápida

O que é que o judo tem que as outras artes marciais não têm?

A sua filosofia, não só pela componente moral, como a parte física. O judo, em termos físicos, é das modalidades mais completas que existe. Não se fazem dois movimentos iguais, não é uma modalidade repetitiva. Os meus movimentos estão sempre dependentes de reações do adversário. Surgem sempre situações novas, e é um desporto tático que implica muito estudo, e em nada se compara com os outros.

A mensagem que o acompanhou como judoca?

O exemplo.

O judo é uma modalidade de força física ou mental?

É a conjugação das duas.

Portugal está cego por uma bola de futebol?

Sem dúvida.

As piores marcas físicas?

São várias. A pior lesão que tive foi quando parti a clavícula nos Jogos Olímpicos de Los Angeles.

A sua pior queda?

Todas. Não há uma pior do que a outra. São sempre quedas.

Como se convence uma criança de seis anos a entrar no judo?

Não se convence, ela tem de experimentar. O judo, sendo um desporto de contacto, é obrigatório experimentar, antes de apresentar qualquer tipo de argumento.

Cristiano Ronaldo veio de outro planeta, e o João Neves veio de onde?

Acho que sou uma pessoa comum, que traço bem os meus objetivos.

E por fim: a descrição de judo que não vem na Wikipédia?

O judo é uma interpretação, cada um interpreta à sua maneira. Nós temos de procurar um sentido para as coisas e o judo dá-me essa oportunidade: de encarrilar pela vertente desportiva, a vertente lúdica e mental.

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