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"A vontade e até urgência de criar é aquilo que me move"

Cantor, escritor, artista. Os rótulos acabam por ser redutores para a arte. Sérgio Godinho é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"A vontade e até urgência de criar é aquilo que me move"
Notícias ao Minuto

08:30 - 23/01/18 por Pedro Bastos Reis

Cultura Sérgio Godinho

Aos 72 anos, Sérgio Godinho prepara-se para lançar um novo álbum de originais, o primeiro desde 2011. ‘Nação Valente’, editado pela Universal, chega às lojas portuguesas na próxima sexta-feira, 26 de janeiro, e pede a referência ao Hino Nacional emprestada para falar do Portugal de hoje, com um sentimento pós-troika muito vincado. “Não quero ver-te acorrentada/Não quero pôr-te numa gaiola/De mão estendida por esmola”, canta, a certa altura, neste novo disco, o ‘Homem dos Sete Instrumentos’, que não faz divisão entre as artes.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Sérgio Godinho fala sobre o processo de composição de ‘Nação Valente’, em que escreveu todas as letras mas em que apenas compôs duas canções. Sentiu que “podia interpelar e ser interpelado por outros compositores”, e é por esse motivo que aparecem neste novo trabalho David Fonseca, Pedro da Silva Martins ou José Mário Branco, este último um reencontro que o deixou “muito contente”.

Nesta conversa, Sérgio Godinho recorda ainda os tempos da sua juventude, nomeadamente o Maio de 1968, em França, quando cantou em fábricas ocupadas. Esse acontecimento histórico, que este ano assinala 50 anos, marcou-o e moldou a sua forma de ver a situação em Portugal durante e depois da ditadura. “Aprendi nesses dias que a história é feita de avanços e recuos”, explica.

Mas não é só de música que é feita a vida de Sérgio Godinho. O ano passado saiu o seu primeiro romance, ‘Coração Mais Que Perfeito’ (lançado pela Quetzal), e o segundo já está na calha, à partida para ser lançado em setembro. A rebeldia e irreverência continuam mais vivasdo  que nunca e o ato de criar, muitas vezes definido como uma “urgência”, continua a mover o artista.

Sete anos depois de ‘Mútuo Consentimento’, eis que chega ‘Nação Valente’. Nunca esteve tanto tempo sem lançar discos de originais. Porquê a demora?

Foi inspirado no verso de Camões “Sete anos de pastor Jacob servia”. Não, estou a brincar. Não houve nenhuma previsão. Nunca fiz contratos com prazos, não é isso que é o meu foco, nem deixa de ser. Sempre fiz contratos por um, dois discos. Numa altura por três. De facto, houve tempos em que eu tinha uma continuidade de trabalho, mas o que aconteceu é que nem reparei que tinham sido sete anos, para dizer a verdade. Por um lado, houve três discos, o ‘Caríssimas Canções’, que foi a consequência das crónicas e do espetáculo ‘As Canções dos Outros’ que fiz no CCB, depois fiz o ‘Liberdade’, um disco ao vivo gravado em vários sítios, e depois o ‘Juntos’ com o Jorge Palma. Pelo meio, fiz um livro de contos, o ‘Vidadupla’, e o meu primeiro romance, o ‘Coração Mais Que Perfeito’. Foi muito trabalho criativo.

Nunca esteve parado.

Nem em termos de espetáculos ou de artes performativas, nem em termos de criatividade. Não consigo ter um caminho uno, meto-me, naturalmente, noutras coisas e tenho interesses variados. A história com o Jorge Palma, por exemplo, foi muito feliz. Portanto, quando senti que estava na altura de me atirar a outro trabalho de fôlego dentro da música, começou a surgiu uma ideia comum de convocar outros compositores, o que até já tinha acontecido. Senti que podia interpelar e ser interpelado por outros compositores. As letras [do disco] são todas minhas, mas queria tornar essas outras músicas que eles me dariam minhas. Geralmente, trabalho da música para a letra.

Ao fazer as canções torno-as, naturalmente, minhas. Não ficam objetos estranhosCompõe dois dos temas do álbum, os restantes são compostos por outras pessoas, com as letras escritas por si. Depois há o caso de ‘Delicado’, música e letra da Márcia.

Aí é uma canção de outro. Apeteceu-me cantar uma canção da Márcia. Ela ficou muito espantada, não estava à espera. Mas, para dizer a verdade, já a tinha convidado para um espetáculo no Folio (Festival Internacional de Literatura de Óbidos), em que ela foi convidada e cantámos o ‘Delicado’.

Aqueles com quem nunca tinha trabalhado a nível de composição foram o David Fonseca, apesar de já ter interagido com os Silence 4 e de ter cantado com ele, em 2003, no ‘Irmão do Meio’, e o Pedro da Silva Martins, alguém com quem nunca tinha interagido. Para quem não saiba, o Pedro da Silva Martins é compositor dos Deolinda, um tipo com grande talento, e a música que ele me deu é muito surpreendente. Deu-me bastante trabalho mas deu-me um gozo muito concreto – aliás, está lá a palavra “concreto” - de fazer essa música. Ao fazer as canções torno-as, naturalmente, minhas. Não ficam objetos estranhos. Claro que eu acho que na canção que fiz com o José Mário Branco, ‘Mariana Pais, 21 Anos’, reconhece-se muito a marca do José Mário.

Notícias ao Minuto'Nação Valente' é o 18.º disco de originais de Sérgio Godinho© D.R

Foi um bom reencontro.

Sim, fiquei muito contente. Ele é um parceiro de primeira data. Nos nossos dois primeiros discos, há canções, como o ‘Charlatão’, que têm música do José Mário e letra minha, e que está nos dois discos. Já há muito tempo que não interagíamos, e eu achei que valia a pena. O José Mário é um grande compositor e um grande melodista, tem essa dualidade. Ainda por cima, tem uma marca e eu pessoalizei muito as canções, mas tenho consciência que ao cantar essa canção, ‘Mariana Pais, 21 anos’, cantei com ecos de José Mário Branco. Foi semiconsciente, semi-inconsciente, porque canto à minha maneira.

Às vezes mandamos embora os melhores, e isso faz parte da psique portuguesaUm dos temas mais marcantes do disco é mesmo a música ‘Nação Valente’. A letra acaba por ser quase um manifesto daquilo que deve ser a luta do país. Concorda com esta ideia?

Não um manifesto no sentido ideológico. Acho que essa canção, que acabou por dar título ao disco, é uma canção que será a que se refere de uma maneira metafórica ao nosso país e ao momento presente, chamemos-lhe o pós-troika. Tem muitas referências a isso. “Não quero ver-te acorrentada/Não quero pôr-te numa gaiola/De mão estendida por esmola”. Ainda estamos endividados, mas não tanto como estivemos, e estamos, sobretudo, com perspetivas de recuperação melhores. É uma forma de acreditar no povo. O povo é muitas vezes passivo, e é volátil também.

Tenho uma canção chamada ‘Só Neste País’ que fala um bocado em euforia e depressão, esses dois estados de alma que nos habitam, e que nos habitaram desde sempre. Temos culturas, historicamente, um bocado traumáticas. Não quero fazer aqui uma aula de história, mas tivemos a inquisição, expulsámos os judeus que tinham o saber. A cidade de Amesterdão, por exemplo, cresceu com os judeus portugueses. A Sinagoga Portuguesa é a mais importante da Europa. Depois, houve os jesuítas que também tinham um grande saber. Às vezes mandamos embora os melhores, e isso faz parte da psique portuguesa. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me absolutamente português e acredito não numa missão mas numa vontade. “Há que ir em frente/Nação Valente”. Claro que uso as palavras do Hino, porque digo “Há de haver outra solução/Para esta tão valente nação”. É porque somos valentes. É um desejo e uma necessidade. Depois, quando falo de “Fronteiras antigas/Fronteiras abertas/Quero um país de ideias libertas” é também essa coisa de termos uma identidade e estarmos abertos ao outro.

O Maio de 68 foi muito importante e deu-me uma consciência que transportei depois para o 25 de AbrilNuma altura em que vemos no discurso político, noutros países principalmente, o ataque ao outro, qual é a importância de cantar sobre a tolerância?

É importante pensar no outro como parte integrante de nós. É uma mensagem humanista no fim de contas. Continuamos a viver, apesar de ela estar mais encoberta, esta crise terrível dos refugiados. É preciso que tenhamos o espírito aberto ao outro. E quando noutros países da Europa vemos a ascensão de extrema-direita, apesar dos recuos na Holanda e em França, porque apesar de todos os defeitos Macron não é Marine Le Pen… Acho que em Portugal, nos tempos mais próximos, não vai acontecer, porque ainda há anticorpos muito grandes do tempo do fascismo e do Salazarismo. Mas, às vezes, basta aparecer uma pessoa que saiba explorar isso, e é sempre um perigo potencial. Não posso dizer que estamos no maior perigo, há uma democracia consolidada, que tem muitos defeitos, como a corrupção, a desigualdade, a injustiça, mas “Há que ir em frente/ Nação Valente”.

Passou grande parte da sua juventude no estrangeiro. Este ano, assinalam-se os 50 anos do Maio de 68 em França. Viveu intensamente esse período?

Sim, vivi por dentro. Ajudei a construir barricadas e ocupámos a casa dos estudantes portugueses, um lugar de elite para os filhos do regime. O que recordo é um bom abalo. Vivi uma vida diferente durante aquele tempo. Vi um país desperto, cantei em fábricas ocupadas com o José Mário Branco e com uma cantora francesa chamada Colette Magny. Eu estava a começar a cantar, ainda compunha pouco. Fiz, na altura, uma canção em francês sobre esses acontecimentos, mas que nunca gravei. Foi muito importante e deu-me uma consciência que transportei depois para o 25 de Abril. De repente, a Direita acordou, o De Gaulle, que andava fugido, acordou, e depois acabou. Ordem. Aquilo foi uma contra-ação de algo que se pensava irreversível. Aprendi nesses dias que a história é feita de avanços e recuos. Logo a seguir ao 25 de Abril, toda aquela história das conquistas irreversíveis, eu dizia ao que já tinha assistido. Agora, o 25 de Abril foi uma data charneira, não estou a desvalorizar, pelo contrário. Pessoalmente foi importantíssimo, porque me permitiu voltar, que foi o menos se pensarmos no país.

Nesse tempo em que estava no estrangeiro, como olhava para o que se passava em Portugal?

Estava no estrangeiro porque não podia voltar, era logo recambiado para África. Já nem tinha passaporte, como é que ia a Portugal? O meu pai era completamente anti-Salazarista, cresci nesse ambiente. Nunca me passou pela cabeça ir para a Guerra Colonial. Mesmo em tempos de paz, não sei se faria ou não o serviço militar, não era algo que me desse alguma forma de prazer [risos]. Sou muito avesso a isso. Muito, muito avesso. Portanto, como é que olhava? De uma maneira completamente crítica, mesmo quando veio Marcello Caetano. Aliás, os meus primeiros discos são do tempo de Marcello Caetano. O primeiro foi retirado e depois reposto, mas a censura já não era o que era. Não tinha uma coerência interna.

Não nos podemos abstrair da música, porque uma boa letra sem uma boa música não vai a lado nenhumPelo impacto que canções como ‘Liberdade’ tiveram e ainda têm, vê-se, acima de tudo, como um cantautor de intervenção social?

Não. Nem sei o que é essa palavra. Foco tanto coisa. Nem eu sou, nem o Zeca [Afonso] era. Há canções que são mais dirigidas aos movimentos sociais, até políticos, mas isso é tudo integração na cabeça das outras pessoas. Por exemplo, canções como ‘Espalhem a Notícia’ ou ‘Primeiro Dia’ dizem alguma coisa ou não às pessoas. Continuo a cantar a ‘Liberdade’, “a paz, o pão/ habitação”, porque faz sentido e gosto dela musicalmente também, e isso é sempre importante. Não nos podemos abstrair da música, porque uma boa letra sem uma boa música não vai a lado nenhum.

É uma música que marca muito aqueles tempos antes do 25 de Abril.

Essa como outras. O meu primeiro disco [‘Sobreviventes’] começa com a ‘Que Força é Essa’ e acaba com a ‘Maré Alta’. “A liberdade está a passar por aqui”? Ainda não estava.

Mas exprimia a vontade que ela existisse.

Sim, que ela existisse. Essa afirmação, sim.

Notícias ao MinutoO romance 'Coração Mais que Perfeito' saiu em 2017. "Descobri uma nova voz. E essa nova voz narrativa começou a dar-me um grande gozo"© Rita Carmo

No ano passado, foi lançado o seu primeiro romance ‘Coração Mais Que Perfeito’. O que o levou a escrever um romance?

Para dizer a verdade, seguiu a quase sequência do livro de poemas e do ‘Vidadupla’. É um livro que contém nove contos, que foram feitos em sequência. Descobri uma nova voz. E essa nova voz narrativa começou a dar-me um grande gozo. Começou a ser uma espécie de prazer criativo continuado. Quando acabei os contos, senti que tinha de passar para algo de mais fôlego, mais contínuo. Criar personagens e persegui-las, fazê-las crescer e fazer com que elas se interrogassem e me interrogassem. Durante ano e meio, trabalhei quase quotidianamente, não muito tempo por dia, principalmente à noite, nesse romance, ‘Coração Mais Que Perfeito’. Tenho outro terminado numa primeira versão e estou agora a revê-lo. Portanto, sairá em setembro. É outra voz criativa, muito diferente de escrever canções. Escrever canções é a conjugação de duas formas de expressão, tem códigos próprios, rimas e métrica, tudo isso. Escrever tem uma música própria, diga-se, mas escrever ficção é uma outra respiração.

Quando saí de Portugal precisava de ter mundo, como a ‘Mariana Pais’. Eu precisava de ter mundo, estava abafadoO que pode desvendar sobre o próximo romance?

Zero. Zero menos um [risos].

Teatro, cinema, música, literatura. Considera-se o ‘Homem dos Sete Instrumentos’?

Acho que sou um bocado renascentista nesse aspeto. Não faço divisão entre as artes. O ato de criar, a vontade de criar e até a urgência de criar, às vezes, é aquilo que me move. Claro que no caso da canção há o outro lado, o de estar nos palcos e transportar a canção para os outros, ali em frente. Isso ainda é outra coisa. Considero ainda uma outra arte, seja boa ou má, autónoma. Uma coisa é o intérprete, outra coisa é o criador, o compositor, o letrista. São várias partes de mim.

Fala de gente a lutar/Luta de fio a pavio/Para poder recuperar/O direito a respirar”. É uma passagem que o define?

É aquilo que nós estávamos a abafar, o país que tínhamos. Quando saí de Portugal precisava de ter mundo, como a ‘Mariana Pais’. Eu precisava de ter mundo, estava abafado. Portanto, sim, com certeza que é um desejo premente.

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