Artista plástica cedeu ao apelo comprometido do construtivismo russo
Ainda jovem estudante universitária, a viver o período do 'apartheid' na África do Sul, a artista plástica portuguesa Ângela Ferreira foi influenciada pelo apelo "comprometido" do construtivismo, uma corrente artística que nasceu da Revolução Russa, há um século.
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Cultura Reflexão
"Procurávamos modelos de outros artistas da História que nos dessem luzes de como trabalhar e produzir arte iluminada para fazer avanços estéticos, mas que fosse também engajada, comprometida social e politicamente", explicou a artista, contactada pela agência Lusa.
A artista, de 57 anos, tem vindo a dedicar grande parte do seu trabalho à reflexão sobre o passado colonial e ao discurso pós-colonial, tendo sido escolhida para a representação oficial portuguesa na Bienal de Arte de Veneza de 2007.
Vencedora da 11.ª edição do Prémio Novo Banco Photo, Ângela Ferreira tem vivido entre Portugal e a África do Sul, onde completou estudos na Michaelis School of Fine Arts da Universidade de Cape Town, em 1985, passando a residir depois em Lisboa.
Ainda jovem universitária "contestatária" e, depois, a iniciar as primeiras exposições, enquanto vivia a última década do 'apartheid', Ângela Ferreira recordou à Lusa que sentiu então a necessidade, em conjunto com outros artistas, de "produzir aquilo que refletia o que são pessoas decentes, numa sociedade ignóbil", na África do Sul.
Período conflituoso iniciado em 1917, a Revolução Russa derrubou a autocracia e levou ao poder o Partido Bolchevique, de Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine.
Para os especialistas, é consensual que a arte do período da revolução russa foi determinante para os desenvolvimentos artísticos na arte ocidental do século XX, e que aquele movimento estético-político, que deu origem, pouco depois, ao construtivismo, foi um dos momentos mais importantes desse século, apesar de ter durado pouco.
Essencialmente, o construtivismo negava uma "arte pura", e visava abolir a ideia de que a arte é um elemento especial da criação humana, separada do mundo quotidiano, e que deveria, em vez disso, ser inspirada nas novas conquistas de um Estado operário, nas técnicas e materiais modernos, servindo objetivos sociais e a construção de um mundo socialista.
"As nossas referências não se ficavam pelo construtivismo russo, mas era um exemplo máximo da solução deste problema social. Foi um período muito curto, livre e experimental, que reuniu vários homens e mulheres das áreas da cultura, como a escultura, o teatro, o cinema", comentou a artista portuguesa que, desde os anos de 1990, aborda na sua obra as relações entre África e a Europa, os problemas pós-coloniais e as relações geopolíticas.
Para Ângela Ferreira e outros artistas com quem convivia, este movimento tornou-se uma espécie de referência: "A história do construtivismo é completamente abafada. Muitos artistas foram perseguidos, mas deixaram um legado incrível, ao qual tivemos acesso de forma clandestina".
Na altura, vivia-se um boicote cultural na África do Sul, mas os artistas tinham redes e formas de ultrapassar as proibições, conseguindo livros e imagens interditas de artistas que constituíam para eles uma espécie de "guião".
"As pessoas viajavam com obras escondidas, e tivemos acesso aos livros sobre o construtivismo e outros materiais" de artistas russos como Lyubov Popova e Gustav Klutsis, que se tornaram modelos de práticas artísticas.
Ângela Ferreira gostava particularmente de Gustav Klutsis, e fez trabalhos a partir dos desenhos do artista russo. Um deles intitula-se "For Mozambique", uma instalação criada em 2008, com desenhos em torno da independência de Moçambique.
Esta obra reúne uma série de três trabalhos que foram adquiridos, respetivamente, pelo Museu Berardo, a Fundação Calouste Gulbenkian e o FRAC Bretagne - Fonds régional d'art contemporain, em Rennes, na França.
Na opinião da artista, os princípios do construtivismo - que completaram um século este ano - continuam válidos, porque "são uma combinação do gozo do objeto estético e a ideologia que levou ao seu desenho".
"O meu trabalho continua a ser reivindicativo e aplico esta metodologia de usar a arte como forma de transmitir ideias. Estas questões ainda são um campo importante na minha pesquisa", resumiu a artista, questionada pela Lusa.
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