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O doloroso 'Silêncio' de Scorsese na pele de um jesuíta português

'Silêncio' estreia nas salas portuguesas a 19 de janeiro e retrata um importante período da história, as missões jesuítas portuguesas no Japão, no século XVII, numa altura em que o Cristianismo foi banido pelo regime local. O Notícias ao Minuto já viu a longa-metragem e dá as primeiras impressões.

O doloroso 'Silêncio' de Scorsese na pele de um jesuíta português
Notícias ao Minuto

08:00 - 18/01/17 por Anabela de Sousa Dantas

Cultura Filmes

Martin Scorsese traz ao grande ecrã, com ‘Silêncio’, um conflito que sempre trabalhou nos seus filmes: o da fé e da moralidade.

Tome esse conflito a forma de dúvida como em ‘A Última Tentação de Cristo’ (1988), de sentimento de culpa como em ‘Mean Streats’ (1973), ou nos deixe brincar com os limites da moralidade como em ‘The Departed’ (2006), o realizador norte-americano sempre conduziu o espetador a uma série de perguntas, sobrepondo o processo inquisitivo à necessidade de resposta.

Pois ‘Silêncio’, baseado no romance homónimo de Shúsaku Endô, trata isso mesmo. A história é centrada em dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), que, no século XVII, viajam até ao Japão em busca do seu mentor, o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), que, de acordo com as informações recebidas por carta, terá cometido apostasia para se salvar da purga aos cristãos implementada pelo governo.

O filme começa com a súplica de Rodrigues e Garupe para poderem partir em busca de Ferreira, desvalorizando os rumores de abjuração por parte do missionário, enviado ao Japão para espalhar a palavra de Deus.

A viagem que se segue leva Rodrigues e Garupe a procurar um guia que os leve ao encontro dos cristãos que ainda vivem escondidos, esperando, em última instância, encontrar Ferreira. Os dois jesuítas têm de viver como fugitivos, para escapar à perseguição do temível Inquisidor Inoue (um incrível Issey Ogata).

É nesta viagem que Rodrigues e Garupe são testados na sua fé, perante um Deus que não responde, enquanto os seus seguidores são submetidos a torturas como serem queimados vivos, colocados com a cabeça para baixo a sangrar ou deixados presos a uma cruz à mercê da subida da maré. A única solução é o derradeiro pecado: renunciar à fé cristã.

"Como posso explicar este silêncio às pessoas?", questiona Rodrigues a dada altura. As perguntas que não querem calar vão assaltando o espetador ao longo do filme. Se Deus vê tudo e está em toda a parte, um crente que é obrigado a apostatar comete um pecado mesmo que no seu âmago mantenha a fé cristã? Valerá a fé mais por aquilo que se diz publicamente do que por aquilo em que se acredita interiormente, estando Deus em todas as coisas, mesmo no silêncio? E quando Deus declara que está dentro de cada um de nós, será essa uma resposta em si mesma?

Quem está à espera do movimento e da energia de Scorsese em filmes como ‘Lobo de Wall Street’ (2013) vai ficar desapontado. O realizador filma esta viagem espiritual de forma solene, deixando o espetador focado apenas na intensidade dramática do argumento, adaptado em conjunto com Jay Cocks (que também trabalhou com Scorsese no argumento de ‘Gangs of New York’, de 2002, ou ‘Idade da Inocência’, de 1993).

O livro ‘Silêncio’ foi apresentado a Scorsese por um arcebispo num visionamento de ‘A Última Tentação de Cristo’ em Nova Iorque, em 1988. Desde então tornou-se um projeto pessoal, pois falava de um tema que o realizador admitiu estar presente na sua vida “desde a infância”. Scorsese escreveu a introdução da edição de 2007 do livro, onde patenteou aquilo que traz agora ao grande ecrã:

O Cristianismo é baseado na fé mas se estudarmos a sua história vemos que teve de se adaptar várias vezes, sempre com muita dificuldade, para que a fé pudesse continuar a florescer. É um paradoxo, e pode ser muito doloroso: à primeira vista, acreditar e questionar são termos contraditórios. Mas eu acredito que andam de mãos dadas. Um nutre o outro. Questionar pode trazer uma grande solidão mas se coexistir com a fé – verdadeira e persistente – pode resultar no mais feliz sentido de comunhão. É esta dolorosa travessia paradoxal – da certeza à dúvida, à solidão, à comunhão que o Endo percebeu tão bem

Trata-se de um filme sobre fé, sobre dúvida e sobre medo, num momento em que a fé religiosa, as dúvidas e o medo desfiguram os mapas políticos mundiais. Scorsese não responde a nenhuma pergunta, nem sara nenhuma ferida, mas decalca-as, num relato de dois homens de fé impetuosos, cuja missão se torna numa discussão contra a ortodoxia e numa lição sobre diferenças culturais num período importante da história portuguesa e japonesa.

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