"Um dia, quando for seguro, quando não houver consequências pessoais por chamar as coisas pelos nomes, quando for demasiado tarde para responsabilizar seja quem for, sempre teremos sido todos contra isto", escreveu Omar El Akkad num 'tweet', no dia 25 de outubro de 2023, quando os bombardeamentos em Gaza se intensificaram.
Na altura, ainda se estava longe de saber que a situação se estenderia até aos dias de hoje, quando a frase se mantém atual e foi transformada em título de um livro, lançado em fevereiro deste ano e publicado agora em Portugal pela Tinta-da-China.
Nesta obra, que tem sido descrita pela imprensa internacional como "quebra" do jornalismo tradicional, em que a neutralidade é abandonada, para dar lugar a uma postura moral ativa, o autor, que é escritor e jornalista, recorre à sua experiência em zonas de conflito para dar uma perspetiva pessoal e crítica sobre os acontecimentos em Gaza.
Organizado em dez ensaios interligados - 'Partida'; 'Testemunha'; 'Valores'; 'Linguagem'; 'Resistência'; 'Ofício'; 'Males Menores'; 'Medo'; 'Despedida'; 'Chegada' -, o livro combina elementos de memória pessoal, jornalismo e reflexão filosófica.
Cada capítulo tem como ponto de partida uma imagem, um facto, um acontecimento relacionado com os ataques em curso na Faixa de Gaza, que abrem caminho a que o autor depois interligue o tema com recordações pessoais de infância e de emigração, com a sua experiência profissional, enquanto correspondente em zonas de conflito, e testemunhos pessoais, assim como com casos reais de resistência, protesto ou intervenção moral.
Antes de tudo disso, o livro começa com o relato de uma menina palestiniana retirada dos escombros de um edifício bombardeado em Gaza, e que pergunta aos que a transportam se vão levá-la para o cemitério, porque acredita já estar morta.
Este momento serve como metáfora e motor de arranque para explorar a forma como a violência torna a vida quotidiana uma constante expectativa de morte, e como a linguagem e a perceção do sofrimento se deformam quando se vive sob bombardeamentos.
Entre os episódios citados pelo autor ao longo do livro, contam-se alguns dos mais mediáticos, como o de Hind Rajab, a menina palestiniana de seis anos que sobreviveu ao ataque de um míssil que destruiu o carro onde viajava com a família. Sozinha entre os corpos dos familiares, conseguiu contactar o Crescente Vermelho Palestiniano com quem falou, chorou e implorou ajuda, para, dias depois, ser encontrada morta junto aos seis familiares que a acompanhavam, perto de uma ambulância carbonizada que tentara socorrê-la.
A morte de jornalistas palestinianos que arriscam as vidas para documentar o que acontece em Gaza, o soldado norte-americano que se imolou em Washington, como protesto contra a cumplicidade dos EUA no conflito de Gaza, ou a criação de um novo acrónimo - CFSSF - Criança Ferida sem Sobreviventes na Família - pelos médicos, face à quantidade de crianças que dão entrada no que resta dos hospitais "com membros amputados, a pele queimada, larvas a sair das feridas", são outros episódios evocados.
Na sua análise, Omar El Akkad aborda a hipocrisia do ocidente, criticando a indiferença e a empatia seletiva, especialmente em relação à Palestina, e apontando a disparidade entre o apoio a causas como a Ucrânia e a indiferença face ao sofrimento em Gaza.
O autor questiona também os valores do liberalismo ocidental, que dão primazia ao poder e ao conforto material em detrimento dos direitos humanos universais.
A responsabilidade moral e artística também é visada, com Omar El Akkad a desafiar o meio cultural a refletir sobre o papel da arte em tempos de crise, questionando a relevância de produções que não abordam diretamente as injustiças contemporâneas.
Omar El Akkad, que migrou com os pais desde cedo, acreditava que no Ocidente encontraria a liberdade e a justiça.
"Ao longo de 20 anos como jornalista, El Akkad cobriu guerras, revoltas e manifestações. Mas foi sobretudo ao assistir ao massacre em Gaza que os verdadeiros contornos do paradigma ocidental se revelaram: grande parte das suas promessas são um logro, e há muitos grupos de seres humanos que o Ocidente não encara enquanto tal", descreve a Tinta-da-China, sublinhando que este livro "é uma crónica dessa dolorosa constatação, um debate moral sobre o que significa, enquanto cidadão, talhar um qualquer sentido de possibilidade numa era de carnificina".
A crítica internacional tem elogiado a obra pela sua coragem e clareza, com o jornal The Guardian a descrever o livro como uma "crítica catártica à hipocrisia ocidental sobre Gaza" e a destacar a eloquência e a honestidade de El Akkad.
Numa resenha ao livro feita para o jornal, a romancista Dina Nayer escreveu: "Brutal, raivoso mas sempre inatacável na sua lógica".
A Chicago Review of Books apontou a importância do livro enquanto apelo à reflexão sobre a liberdade e a responsabilidade moral no contexto global.
O Santa Barbara Independent comparou o estilo de El Akkad com James Baldwin em 'Da próxima vez, o fogo', e com o jornalismo de Robert Fisk, o histórico correspondente britânico no Médio Oriente, pela sua capacidade de denunciar injustiças, e sublinhou a forma como o autor denuncia o duplo padrão: os discursos oficiais proclamam valores como a defesa da vida ou a proteção de civis, mas depois falham em agir, ou suavizam o impacto das suas políticas.
Omar El Akkad nasceu no Egito, cresceu no Qatar, mudou-se para o Canadá na adolescência, e vive atualmente nos Estados Unidos da América.
Ganhou, por duas vezes, tanto o Pacific Northwest Booksellers Association Award como o Oregon Book Award na categoria de ficção.
Os seus livros foram traduzidos para 13 línguas e o seu romance de estreia, 'American War', foi considerado pela BBC como um dos cem romances que ajudaram a moldar o mundo. "Um Dia, sempre Teremos Sido Todos contra Isto" marca a estreia do autor na não-ficção.
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